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O Banheiro e a Ideologia

Vimos a repercussão em diversos sites sobre as pichações nos banheiros femininos da Unicamp, como no site acapa e no portal Fórum. Enunciados como “NÃO DEIXE QUE OS MACHOS OCUPEM OS NOSSOS ESPAÇOS” (que é também parafraseado por “NÃO DEIXE QUE OS MACHOS INVADAM OS SEUS ESPAÇOS”) podem ser vistos grafados nas cabines dos banheiros. Pretendo neste texto compreender como estes enunciados conseguem produzir sentidos em especial me atentado para as relações que envolvam as categorias de presença e ausência, visível e invisível, realizado e não-realizado, etc.

A forma como os significados destas pichações circularam nas redes sociais pareciam extremamente transparentes: era “óbvio” que se tratava de um ataque transfóbico. Mas para compreender como estes sentidos se tornaram tão necessários, é preciso se “fazer de bobo ou desentendido” por um instante. Com isso estaremos dizendo que, antes de um sentido necessário para estes enunciados, eles são extremamente opacos. Percebam a ausência explícita a qualquer palavra que remeta diretamente à transgeneridade e, mesmo assim, os sentidos acerca da transfobia apareceram de forma preponderante. Onde estão esses “implícitos” que são fundamentais para que os enunciados signifiquem o que eles de fato significam? Afinal, quem são os machos e de quem seriam os “nossos” ou os “seus” espaços? De que espaço feminino estamos falando? Será que estamos falando só sobre banheiro ou de todo e qualquer espaço significado enquanto feminino?

Estes enunciados remetem a uma memória sobre o que significa um “espaço feminino” e qual sujeito seria este “invasor” em contraposição a um sujeito “nós” que enuncia. No caso, o próprio local onde foram grafados significa e é igualmente significado pelas pichações. É o banheiro feminino pichado de forma com que este banheiro é significado como “seu” (que é parafraseado por “nosso”), assim como pela presença do símbolo do feminino desenhado. Um espaço que é “seu” que desliza para o “nosso” e que está à mercê de uma “ocupação” (que é parafraseado por “invasão”) pelos “machos”.

Quem são os machos que invadem nossos espaços, afinal de contas? Sabemos, a partir de relação com o interdiscurso (toda memória social que ressoa em todo discurso) que mulheres trans*, transexuais e travestis são indesejadas nestes espaços significados como femininos. Sabemos também de vertentes do feminismo que são mais “indigestos” a esta questão. Curioso notar que mulheres transgêneras são indesejadas também no banheiro masculino, mesmo que por “outras” razões. O que está posto é a tensão entre a forma de se significar “mulher trans*” como aquela que é “na verdade” – seja por um determinismo social ou biológico – um homem ou não-mulher. Ao mesmo tempo em que paradoxalmente não seria um homem (um Homem). Somos de toda forma este vão simbólico agonizante entre Homem e Mulher que é tido como menos humano pois nosso gênero não é devidamente significado de acordo com as inteligibilidades cisgêneras. É dessa contradição fundamental que se desdobram as inúmeras “polêmicas”.

Contradição que envolve também o que se vê e o que não se vê: a verdade sobre uma mulher (e a legitimação da “verdadeira mulher”) é significada num espaço entre o visível e o invisível, como também pelo sentido e o não-sentido. O que se encontra não-visível mas é significado pela sua presença fantasmagórica e imaginária: um genital escondido atrás das roupas. Assim como a relação da imagem com algo que desvelaria ou escamotearia o “sexo real” da pessoa. Acontece, no entanto, que o real do sexo é de outra ordem: ser mulher ou homem é uma realidade complexa entre o que se estabilizou e aquilo que foge ao logicamente estabilizado, num jogo complexo de imagens (imaginário) e de sentidos (simbólico) que se ligam pelo funcionamento da ideologia na relação entre língua e história. Ou seja: não se trata da presença de algo como pura referência no mundo ou mesmo separações em traços semânticos (“sim” ou “não”; “é mulher” ou “não”), mas sim a relação do “está” com “não-está”, “é” com “não é” que é mediada através da inscrição da ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins últimos, o alhures, o além e o invisível (PÊCHEUX, 1990).

Disputa em relação ao banheiro

Determinar a palavra “mulher” como “trans*” é algo que desestabiliza o logicamente estabilizado em relação ao próprio gênero. Logo, discutir se mulheres trans* “podem ou não podem” utilizar o banheiro feminino é sobretudo uma disputa semântica de uma palavra. E a forma de argumentar para a exclusão destas pessoas destes espaços públicos não tem nada de neutro. É ideológico e toda argumentação em relação a esta questão se ancora sobre determinados sentidos sobre homens e mulheres que são postos em tensão pelas disputas políticas. Uma distribuição de sentidos que separa quem é mais ou menos humano na medida em que seriam homens e mulheres de verdade, em detrimento daqueles que seriam “menos” ou simplesmente “não seriam”.

A ideologia se materializa num discurso que vai então significar o que é uma mulher de verdade, ou uma mulher mais verdadeira que outras que seriam “semi” verdadeiras ou mulheres falsas (que são paradoxalmente homens ao mesmo tempo em que não são homens). Assim como o “perigo” que representaria (relação do hipotético com o real) às mulheres cisgêneras o “ingresso” destas outras (?) mulheres “invasoras” (!). Perigo que diz respeito, sobretudo a algo que vai do hipotético ao concreto: “é estuprador (em potencial)” ou “não”; “é homem (em potencial)” ou “não”. A ideologia é a argamassa tapa-buracos dos eventuais furos que a argumentação de um discurso direciona. Vamos então tentar observar esse movimento, mas, sobretudo como o discurso a favor da exclusão destas mulheres de usarem o banheiro público se esburaca em inúmeras contradições e incoerências frente ao real.

Argumentar sobre quem “merece” ocupar o banheiro não se resume a uma discussão sobre lógica (ou cognição), tampouco a um suposto aspecto burocrático-jurídico ou a uma mera pragmática de um uso civilizado do banheiro. É onde a semântica para de funcionar que estamos, espaço intermediário entre o que está logicamente estabilizado e o que não está, na junção do simbólico com o político.

Os discursos que tomam como evidente o perigo da utilização do banheiro por mulheres trans* desvela o peso histórico (através da relação com a memória) que nos impede de pensar as mulheres trans* como sujeitas do seu próprio gênero; mas sim, ora objetos silenciáveis (pouco importaria qual banheiro de fato essas pessoas usariam, já que não se pensa a mulher trans* enquanto um sujeito que ocupa o espaço público e que necessitaria utilizar, por isso, um banheiro e com isso, pouco ou nada se preocupa acerca da possibilidade de assédio às mulheres trans* que frequentem o banheiro masculino e/ou feminino) ora estupradores em potencial (mulheres cis precisam se precaver de estupradores potenciais sendo a permissão da entrada destas “invasoras” no banheiro uma espécie de “brecha” para que elas fiquem a mercê de ataques). Ironicamente (ou cinicamente), quando se pensa (ou se constata?!) que mulheres trans* também precisam mijar e cagar, não raro se advoga pela presença de um terceiro banheiro, figura essa que parece mais uma retórica do “deixa disso”. Sabemos não somente o que representaria um terceiro banheiro (segregação), mas sobretudo da necessidade de se abster do debate da situação concreta (já que, além de ser extremamente inviável a construção de terceiros banheiros em todos os espaços, não se resolve de fato a contradição desta questão). A relação se põe, novamente, entre o realizado, o não-realizado e o ainda-não-realizado como pretensa forma de se abster do debate (ou mesmo do político).

Para entendermos a relação necessária entre língua (o aspecto simbólico) e o ideológico, trago o trecho do texto “DELIMITAÇÕES, INVERSÕES, DESLOCAMENTOS” de Michel Pêcheux que citei mais acima:

[…] a questão histórica das revoluções concerne por diversas vias ao contato entre o visível e o invisível, entre o existente e o alhures, o não-realizado ou o impossível, entre o presente e as diferentes modalidades da ausência. Não seria o caso de designar ao mesmo tempo como esta questão, onde o real vem se afrontar com o imaginário, diz respeito também à linguagem, na medida em que ela especifica a existência do simbólico para o animal humano?

A existência do invisível e da ausência está estruturalmente inscrita nas formas linguísticas da negação, do hipotético, das diferentes modalidades que expressam um “desejo”, etc., no jogo variável das formas que permutam o presente com o passado e o futuro, a constatação assertica com o imperativo da ordem e a falta de asserção do infinitivo, a coincidência enunciativa do pronome eu com o irrealizado nós e a alteridade do ele (ela) e do eles (elas)… Através das estruturas que lhe são próprias, toda língua está necessariamente em relação com o “não está”, o “não está mais”, o “ainda não está” e o “nunca estará” da percepção imediata: nela se inscreve assim a eficácia omni-histórica da ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins últimos, o alhures, o além e o invisível. (p.8)

Muito se argumenta a favor da exclusão (ou, ao menos, de uma suspeita vigilância) de mulheres trans* do banheiro tendo em vista os perigos de homens com más intenções “aproveitarem” o ensejo (!) para estuprar as mulheres. No entanto, em que medida, paradoxalmente, o irrealizado do estupro vêm a ser imaginariamente realizado sob a forma da ausência? Em que medida uma mulher trans*, simbolizada enquanto “potencial homem” que desliza para “potencial estuprador” e “potencial estupro” não é tomada imaginariamente, dada o próprio funcionamento da ideologia, como o próprio ato realizado do estupro e do estuprador? Efeitos simbólicos que se materializam e se deslocam no imaginário e vice-versa afetando registros distintos. Amálgama entre duas ordens, do hipotético e do concreto, do não-(ainda)-realizado e do já-realizado.

Para entender estes movimentos de sentidos é necessário não observar estritamente os fatos de linguagem, mas sobretudo observar o que precisou ser interditado simbolicamente (silenciado) para que toda essa argumentação faça sentido. Se deve interditar qualquer possibilidade de que as mulheres cisgêneras sejam as suas próprias estupradoras… o que nos remete a vários aspectos da memória acerca de uma suposta “docilidade” que seria inerente a todas mulheres (cisgêneras). Se estamos, contudo, no universo do ainda não-realizado é de suma importância notar o que, do ainda não-realizado, é tido como impossível. O não-realizado estupro da mulher trans*, por sua vez, é tido como possível, dada sua relação parafrástica com “homem”. Percebam que se tratam de relações linguísticas que sustentam toda uma forma de argumentar em favor da exclusão destas mulheres. Igualmente, o que se toma como evidente é de que seria possível diferenciar visualmente mulheres cisgêneras das transgêneras, o que novamente é extremamente falho. Não há nenhum critério inequívoco para determinar visualmente quem seja transgênero ou cisgênero.

Em um mundo transfóbico, se torna uma atividade de militância “desembaraçar” o nó daquilo que a ideologia une enquanto não-realizado/impossível do realizado que cerca as questões da mulher transgênera. Aqui nos colocamos na necessidade de linearizar a ordem dos registros do simbólico, imaginário e real sem que isso signifique ser “neutro”. O que eu me proponho aqui é pensar o que significa a exclusão de espaços públicos por pessoas que já são excluídas de inúmeras instituições, o que implica na tomada de posição transfeminista. Em suma: advogar pela expulsão de mulheres trans* dos banheiros femininos baseando-se na argumentação da “presença do ainda não realizado” estupro é incorrer em um posicionamento transfóbico. É mesclar duas ordens distintas, a do imaginário (as imagens fluidas e a relação do que ainda é não-realizado e do campo do hipotético) com do simbólico (a Lei, o sentido discreto que direciona uma intervenção no real do banheiro no sentido de expulsar as mulheres indesejadas). Esta junção, tomada como ordem natural das coisas pela ideologia, é fatal para nós transgêneros.

A questão do real retorna incessantemente de modo a nos questionar se de fato é justificável a simbolização da mulher trans* enquanto homem (ou homem hipotético) que desliza para estuprador (ou estuprador hipotético). O que significa falar sobre quem pode ou não usar o banheiro. É nosso papel atuar nestas áreas de forma a deslocar a transparência destes efeitos imaginários que conjugam o possível e o impossível. O fato mesmo de o estupro estar sempre sob a iminência de um “perigo de estupro” não torna a presença ou ausência de “legalidade” do uso do banheiro por mulheres trans* nesta exata medida irrelevante? Em relação à prática do crime, a ausência de mecanismos que protegem a mulher transgênera de utilizar o banheiro não pode impedir o ato do estupro (por quem quer que seja). Um crime, por definição, transgride uma lei, e leis não tornam crimes impossíveis. Pelo contrário, a lei prevê mesmo o ato criminoso e apenas estipula punições. Neste sentido é necessário pensar – sabendo dos inúmeros jogos de espelhos entre o “não está”, o “está” e o “pode estar” da ideologia e do imaginário – em que medida a proteção (campo concreto) às mulheres transgêneras neste quesito significaria risco (campo hipotético) às mulheres cisgêneras. De minha parte, fica evidente a falha argumentativa.

Written by Beatriz

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