A retirada da transexualidade da classificação de doenças e o sofrimento psíquico
Por Beatriz Pagliarini Bagagli
Um dos aspectos talvez mais difíceis de serem discutidos quando falamos sobre a despatologização das identidades trans é sobre o sofrimento psíquico relacionado (ou não, ai entra a questão) ao corpo. No último post da Sofia Favero ela nos lembrou de um aspecto muito importante sobre a mais recente retificação do CID, que retirou as identidades trans da classificação de doenças: ainda existem critérios diagnósticos para incongruência de gênero que estabelecem um sofrimento ligado ao corpo e uma “herança nosológica, na qual travestis e pessoas trans continuam tendo de apresentar (clinicamente, talvez) uma relação conflituosa com quem são”.
Antes de nos atermos mais especificamente sobre essa herança nosológica e a questão do sofrimento psíquico expressada pela noção de desconforto (ou ainda “dislike with the one’s primary or secondary sex characteristics”) ou incongruência de gênero, temos que ressaltar o avanço histórico que significa a retirada das identidades trans ao mesmo tempo em que há a inclusão de uma nova categoria, “incongruência de gênero“, para que as pessoas trans ao redor do mundo não fiquem desamparadas para o acesso de cuidados médicos específicos, como cirurgias e acompanhamento de reposição hormonal. A própria categorização de “incongruência de gênero” na seção de “condições relacionadas à saúde sexual” demonstra um inegável avanço, pois novamente desassocia de questões referentes a transtornos ditos “mentais”. Posto isto, e portanto, entendendo a necessidade da existência de alguma categoria que salvaguarde as pessoas trans, podemos discutir outros aspectos mais sutis, que dizem respeito a como este documento entende e descreve o que seria uma “incongruência de gênero”, quais e como as noções de “desconforto” são mobilizadas e significadas neste documento e portanto como o “sofrimento” acaba sendo compreendido, mesmo que de forma mais ou menos implícita. Aí sim temos muito campo de discussão.
Existe uma ideia tácita de que o sofrimento psíquico é tanto causa como justificativa da transexualidade/travestilidade/identidades trans. Além disto, o sofrimento é visto tacitamente como uma espécie de justificativa absoluta para demandas de alteração corporal - o que podemos problematizar, aliás. Isso precisa ser abordado com muita cautela.
Primeiro, como entendemos a categoria de “sofrimento psíquico”. O sofrimento demanda, de uma forma geral, ser sanado. É uma ideia senso comum a respeito de qualquer tipo de sofrimento.
Mas quando falamos de sofrimento psíquico, é interessante pensar numa perspectiva que considere outros aspectos para além da necessidade de acabarmos com um sofrimento. É preciso que o sofrimento psíquico de uma pessoa seja reconhecido socialmente. É preciso que a voz de uma pessoa que sofre seja ouvida e que seu sofrimento ganhe inteligibilidade. Quando o sofrimento é compreendido (ou melhor: acolhido) intersubjetivamente, socialmente e institucionalmente a própria existência da pessoa que sofre ganha sentido. Dai essa pessoa vai poder existir para além das cercas limitantes do seu sofrimento. Isso não é exatamente a mesma coisa que sanar o sofrimento a qualquer custo, é saber ouvi-lo. A psicanálise, por mais problemática que ela tenha sido com as identidades trans, é capaz de mostrar esse tipo de “princípio”.
Reconhecer a existência do sofrimento psíquico relacionado ao corpo sempre foi uma faca de dois gumes para pessoas trans. Existe a crença disseminada de que existe um sofrimento quase essencial de pessoas transexuais que emanaria do próprio corpo, pelo fato de existirem características (lidas como “sexuais”, designadas frequentemente como caracteres sexais primários e secundários) nos corpos das pessoas transexuais que “depõem contra” suas identidades.
Embora o sofrimento que isto acarrete seja verdadeiro para muitas pessoas trans, pode nem sempre ser uma verdade fixa para todas as pessoas trans, não nos mesmíssimos termos, não nos mesmos termos que a cisgeneridade como um pensamento hegemônico nos vê e compreende. Nós pessoas trans não apenas sofremos e o corpo não é só e nem sempre motivo de sofrimento psíquico. O sofrimento que decorre do corpo não é critério necessário nem suficiente para determinar a identidade trans, tampouco é capaz de nos definir, tampouco somos capazes de definir uma única forma de sofrimento relacionado ao corpo.
Se, por um lado, o sofrimento foi mobilizado como forma de reconhecimento identitário, médico, social e jurídico e justificativa para alterações corporais ao longo do tempo do movimento trans, há de se reconhecer suas validades (e limitações), pois se trata da forma como pessoas trans puderam existir em contextos de adversidade. Apelar para o sofrimento como “justificativa” de nossas existências e demandas por acompanhamento médico não deve passar criticamente desapercebida por nós, pois nos coloca em outra posição de vulnerabilidade.
Quando uma travesti é barrada pelos protocolos médicos de receber hormonioterapia por não desejar fazer uma cirurgia de redesignação sexual, por exemplo. Esta travesti pode não estar sofrendo em virtude diretamente de UMA parte corpo (que é tida como central pelo pensamento-cis), mas em virtude da própria noção excludente de sofrimento dos discursos médicos que desconsideram sua existência como legítima, como uma existência viável e plena de sentido (para boa parte do discurso médico hegemônico, não faria “sentido” tomar hormônios sem manifestar sofrimento pela genitália e demandar a cirurgia de redesignação). A travesti então poderá sofrer por não receber a hormonioterapia que precisa e demanda, ela sofrerá pelo fato de ter que arcar com a auto medicação em virtude de seu sofrimento nem ser reconhecido como sofrimento pelo discurso médico hegemônico.
Vejam só: pessoas podem sofrer justamente por não serem vistas como pessoas que sofrem o suficiente, por não se enquadrarem num modelo prévio que estabelece o que é um “sofrimento de verdade”. Como então reconhecer este “tipo’ de sofrimento? Isso passa por uma reconfiguração do que se reconhece como sofrimento.
Por isso eu argumento que uma demanda por alteração corporal e acompanhamento médico não precisaria ser justificada tão somente pelo sofrimento que uma pessoa tem pelo próprio corpo ou por uma noção pré-concebida de sofrimento que não dê conta da singularidade e multiplicidade. Acreditar na ideia de que o sofrimento é o que nos define é potencialmente problemático, pois isso dá brechas a discursos que visam “curar” a transexualidade de forma indireta.
Radfems e fundamentalistas religiosos estão se aproveitando disto. Se eles não podem mais articular discursos que visem “curar” a transgeneridade diretamente, vão se utilizar dos mais diferentes subterfúgios ao associar as identidades trans a um sofrimento subjacente que este sim poderia ser “curado”. Daí entram as mais diversas teorias colonizatórias sobre subjetividade trans. Ao se livrar do sofrimento de “outra forma”, que não pelas alterações corporais que pessoas trans demandam, a transexualidade é “curada” por vias indiretas. Por isso é importante superar o discurso do sofrimento absoluto. Isso não implica desconsiderar o sofrimento. O sofrimento psíquico vem de várias formas. Não existe uma única forma “codificável” pela qual simbolizamos nossos conflitos com nossos corpos, nem sempre nossos “conflitos” permanecem os mesmos, não existe uma única e fixa forma de “ler”, interpretar e reconhecer o sofrimento psíquico.
Paradoxalmente, o sofrimento deixa de ser algo passível de reconhecimento de um sujeito singular para se tornar critério diagnóstico excludente. Então se algumas pessoas trans não conseguem articular o discurso do sofrimento a partir dos critérios de inteligibilidade hegemônicos não são consideradas pessoas trans “de verdade”. É como se pessoas trans que não sofressem o “bastante” não tivessem razão o “suficiente” para serem o que reivindicam ser, o que é uma inversão perversa do princípio de reconhecimento e escuta do outro. Quando vamos nos aprofundar nestas questões sem criação de pânicos morais?