Breve comentário sobre nossos corpos
Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.
A sexualidade é uma ficção. A sexualidade não é algo com o qual nascemos, nossa propriedade privada assegurada por jusnaturalismo, mas algo que acoplamos ao corpo, esse corpo-projeto de realização infindável. Assim como não nos é algo assegurado por vias deterministas, ela também não compreende unicamente uma faixa etária que se iniciaria com a puberdade e encontraria seu declínio lá pelos quarenta anos. A sexualidade é algo que impregna cada fibra de nossas vidas, nos constituindo como seres sexuad@s. Com isso, quero dizer que ela se exerce, é sendo, ou seja, em hipótese alguma se é de uma vez por todas. Vamos conficcionando corpos sexuados ao mesmo tempo que vamos conficcionando nossa personalidade.
Há quem diga que nasceu assim, assado. Poderia-se falar de essência, se por essência compreendêssemos um modo de ser qualquer. Daí se desdobraria numa essência modal, ou seja, um modo de ser variável, mutante, em oposição a uma essência substancial, ou seja, um modo de ser que atende uma determinação substancial.
De qualquer forma, corpos sexuados.
O processo de sexuação do corpo, que ocorre paralelamente ao processo de constituição mesma do corpo, corresponde a um processo no qual se perpassam e se integram múltiplos elementos procedentes de disposições sociais diferentes, cada uma delas portando variedades, seja de matizes, seja de possibilidades, que sua combinação resultará única em cada pessoa. Nossa forma de ser, nosso modo de viver, de nos expressar como seres sexuados que somos, serão sincopadamente individuais e coletivos. A opacidade é muito mais interessante do que a luz médica que se lança sobre o indivíduo. O corpo é uma tessitura social densamente complexa.
Os corpos, enquanto sexuados, também são preparados para a sexuação. Assim, um corpo designado masculino pelo discurso médico pode ter uma força física notável porque seu corpo foi preparado desde criança para a tonificação muscular, ao passo que um corpo designado feminino teve o seu corpo preparado para outras atividades. No contexto brasileiro chegamos a ter instituído o decreto de lei nº 3199, Art. 54, que determinava que mulheres não deveriam praticar esportes que não fossem “adequados à sua natureza”. Esse decreto de lei é de 1941. As mulheres, principalmente de periferia, jogavam futebol desde 1920, ao menos até onde se tem registro. Em 1940 o Estádio do Pacaembu, em São Paulo, foi palco para uma partida feminina polêmica entre as equipes Cassino Realengo e Sport Club Brasileiro. Polêmico pois futebol era considerado um esporte masculino e violento, o que, segundo a moral e os bons costumes, não condizia com a corporeidade feminina. O decreto de lei é parte constituinte de um sistema judiciário. Sistema esse que foi implantado pela burguesia, para a qual a mulher possuiria os atributos de “recatada e do lar” - pra quem não sofre de amnésia, esse enunciado soará familiar -. Aqui nos deparamos com uma questão: para quê foi feito o corpo? Para nada. Nem mesmo para procriar. Quem vai definir as funcionalidades do corpo é o regime de organização social no qual este se insere. As funcionalidades decorreriam dos instrumentos dispostos para, tanto se compreender, quanto se construir o próprio corpo. Quando se visa conservar uma noção fechada de gênero, é que entra em jogo a ideologia de gênero. A narrativa que diz que o óvulo foi feito para ser fecundado, e que o esperma foi feito para fecundar, esconde o sexismo que gera essa narrativa. Cientistas não são pessoas operando fora do regime de organização social no qual pessoas não-cientistas operam. Trabalhos como os de Emily Martin, Sandra Harding, Honna Haraway, Rebecca kukla, Steven Rose, Lewontin, Kamin, trazem perspectivas interessantes a esse quesito.
Conforme conficcionamos nossos corpos e nossas sexualidades o nosso corpo vai se preparando para o prazer, o contato, a intimidade e o vínculo afetivo. Não qualquer prazer, nem qualquer contato, intimidade e vínculo, mas aqueles para os quais temos preparado nosso corpo. Há uma educação sentimental em jogo, ela nos apresenta os instrumentos que utilizamos na conficcção de nossos corpos. Pra falar sobre a educação e o seu objeto eu me apoiarei na concepção da mesma apresentada por Dermeval Saviani em seu livro Pedagogia histórico-crítica, no qual consta que “o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo”. Compreendendo que vivemos num regime de organização social capitalista, ou seja, cada elemento do cotidiano se encontra micro e macrologicamente posicionado, situado, pelo sistema capitalista, não acho nem um pouco ousado dizer que temos nossa força de trabalho explorada desde o momento de nosso nascimento. Muita das vezes trabalharemos gratuitamente e nem nos daremos conta. A educação sentimental em questão inferirá na condução de nossa sexualidade, reduzindo sua territorialidade a partir da criação de fronteiras, as quais delimitarão para quê serve cada parte do corpo. Reduzindo sua territorialidade, se reduz também seu campo de possibilidades. Assim, o corpo passa daquilo que Freud designará perverso polimorfo, ou seja, um corpo cuja totalidade é ela mesma uma totalidade erótica, de excitação, para um corpo cisgênero e heterossexual, o qual terá sua sexualidade reduzida aos órgãos genitais, convenientemente designados “órgãos sexuais”. Daí brotam zonas erógenas, áreas a serem estimuladas, as quais só servem para legitimar uma suposta diferença sexual. Corpos sexuados, sexualidades centro-genitalizadas.
E se gozássemos com o corpo inteiro? Preparamos nossos corpos para o prazer (auto ou compartilhado), ou melhor, um prazer. E se gozássemos com o corpo inteiro? Segundo o Dicionário Priberam de Língua Portuguesa, o gozo diz respeito a uma sensação ou emoção agradável, satisfação. Goza-se da vida. O gozo também é sinônimo de prazer sexual. E se compreendêssemos outras sensações corpóreas que não somente a ejaculação de esperma como sendo gozo? Não sentimos uma sensação agradável quando choramos em determinados contextos? Não sentimos uma sensação agradável quando cagamos depois de segurar durante um tempo? E o mijo que sai com força acompanhado de um “ah”? E o vômito que sacia nossa angústia quando estamos embriagad@s? E o espirro que vem acompanhado de uma sensação breve de arrepio e sacolejo? Quê é o suor? E se todas essas possibilidades fossem disposições morfológicas do gozo? De quê destituímos nossos corpos ao reduzirmos nossa sexualidade aos genitais? Que territórios constituímos ao realizarmos tal centralização? Não estaria ela vinculada à formação dos Estados? De que dispomos senão uma dinâmica de violência que estatiza a realização de nossas potências somáticas? Mas veja, não se trata de se reconciliar com o corpo. De modo algum pretendo cair nesse erro de raciocínio. O que se trata é inventar novos corpos, novas ficcionalidades políticas. Cuidado, ficções não são coisas falsas. Elas são demasiadamente verdadeiras, a ponto de provocar terror interrogar suas propriedades? Afirmar a ficcionalidade dos corpos implica afirmar que suas realidades são passíveis de alteração, de modificação, que não há substância alguma que lhe constitua como propriedade privada, como in-divíduo. Afirmar a ficcionalidade das posições e das coisas é afirmar a possibilidade - o que, por sua vez, é uma demanda do campo do impossível no atual regime - de transição das coisas e de suas posições. Trata-se de transtornar, provocar transtornos, sem desculpas.
[1] Por conficção eu compreendo a ação de ficcionar coletivamente.
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