“Consertem a Sociedade. Por favor.”
As palavras finais de uma adolescente transgênera são um alerta para que paremos de tentar ‘consertar’ crianças trans e comecemos a fazer a reparação de seus mundos devastados
por Jake Pyne (publicado originalmente em 14 de janeiro de 2015). Tradução de viviane v.
No dia 28 de dezembro de 2014, Leelah Alcorn, uma garota trans de 17 anos, deixou uma nota de suicídio publicada em seu blog no Tumblr, e caminhou em direção à sua morte diante de um trailer na estrada interestadual 71 de Ohio.
“Não fiquem tristes”, sua nota diz. “A vida que eu viveria não valeria a pena… porque sou uma pessoa trans”. Suas palavras finais foram “Consertem a sociedade. Por favor”.
Apesar de haver muitos elementos que desconhecemos sobre a vida de Leelah, sabemos que seus pais a rejeitavam, e então a levaram a terapeutas que também a rejeitaram — terapeutas que tentaram consertá-la, ao invés de consertar a sociedade. Na noite de domingo [11 de janeiro], a criadora da série de tv ‘Transparent’, Jill Soloway, dedicou sua premiação no Golden Globe Awards [prêmio de tv e cinema estadunidense] a Leelah. Agora o Instituto Estadunidense de Direitos Humanos Transgêneros lançou uma petição demandando que a Administração Obama proíba o tipo de tratamento que Leelah recebeu — tratamento que objetiva corrigir a identidade de gênero ou orientação sexual de uma pessoa.
Por várias razões, pessoas canadenses [e brasileiras] precisam prestar atenção a esta tragédia estadunidense. Em primeiro lugar, o centro global para a correção de identidade de gênero em crianças e adolescentes é localizada em Toronto, e tende a aconselhar pais e mães a rejeitar a identidade trans de suas crianças. Em segundo lugar, algumas das pesquisas mais fortes contra esta perspectiva se originam em Ontario. E terceiro, nesta semana, pessoas assistentes sociais canadenses lançaram uma declaração considerando tais tratamentos “antiéticos”.
[A importância deste suicídio para o contexto brasileiro se refere à existência de ‘tratamentos’ similares de ‘correção’ de identidade de gênero e orientação sexual a partir de perspectivas religiosas fundamentalistas — muitas vezes apresentadas a partir de relatos de ‘ex-gays’ e ‘ex-travestis’ -, e mesmo à ampla e generalizada incompetência e insuficiência de pessoas profissionais da saúde em considerar a diversidade de gêneros a partir de perspectivas não patologizantes e não desumanizantes.]
O tratamento que Leelah recebeu tem uma história controversa. Nos anos 60, pessoas pesquisadoras da Universidade da Califórnia começaram a estudar e tratar o que elas compreendiam como a crise de saúde mental de meninos femininos. O objetivo era de “ajudar” crianças ao fazê-las evitarem serem gays ou trans. Terapeutas frequentemente recrutaram pais para modificar suas crianças, e a feminilidade entre aquelas designadas ‘homens’ foi particularmente selecionada para ser eliminada. Assim como as terapeutas de Leelah, algumas destas primeiras pessoas clínicas estiveram inspirados pela religião. Outras simplesmente queriam “ajudar”.
Durante décadas, esforços para curar a homossexualidade foram fortemente criticados e eventualmente declarados antiéticos pela Associação Estadunidense de Psiquiatria e pela Associação Nacional Estadunidense de Assistentes Sociais em 2000. Em 2012, o estado da Califórnia tornou ilegal o tratamento para evitar a homossexualidade. No entanto, tratamentos com o objetivo de evitar a transexualidade nunca levaram ao mesmo nível de revolta, e continuam até hoje. De fato, tão recentemente como 2012, pessoas clínicas do Serviço de Identidade de Gênero de Toronto no Programa para Crianças, Jovens e Famílias do Centro para Dependência e Saúde Mental (CAMH) escreveram no Journal of Homosexuality, “nós não temos uma desavença particular com a prevenção do transexualismo como um objetivo de tratamento para crianças”.
Para sumarizar mais de 100 artigos publicados, a clínica de identidade de gênero da CAMH para crianças as encoraja à conformidade com as expectativas do sexo que lhes é designado no nascimento. Neste modelo de tratamento, mães e pais têm uma função ativa na modificação da criança. Em 2006, a Rádio Pública Nacional (NPR) publicou uma história em que esta clínica orientou uma mãe a retirar os brinquedos cor-de-rosa adorados por sua criança [designada menino no nascimento], e a impedi-la de se vestir com roupas brilhantes e brincar com meninas. A criança foi uma vítima de um ataque violento na área de recreio, e ao invés de ser orientada a como valorizar sua criança, a como apoiar seu valor único, e como defender seus direitos e segurança, sua família foi ensinada a ajudá-la a se ajustar a um mundo sem graça e intolerante. Não é surpreendente que a clínica seja alvo constante de controvérsias, e uma rápida busca na rede confirma que o responsável pela clínica, Dr. Kenneth Zucker, se mantém como um para-raios de críticas.
É importante notar que há várias diferenças entre o tratamento que Leelah Alcorn recebeu versus aquele oferecido no CAMH. A terapia de Leelah foi fundamentada na religião. Este não é o caso do CAMH. As pessoas terapeutas de Leelah tentaram corrigir seu gênero enquanto ela era uma adolescente, enquanto na clínica do CAMH, adolescentes trans são considerades como uma conclusão precipitada, e a clínica tem seu foco em crianças que são descritas em publicações como mais “maleáveis”.
Apesar destas diferenças, também há algumas similaridades muito importante. Uma delas, a de que ser uma pessoa trans/transgênera é visto como um destino infeliz, e pais e mães que rejeitam uma criança trans são encorajados a persistir nesta rejeição. Em 2012, Ken Zucker e colegas escreveram no Journal of Homosexuality: “Se pais e mães… querem reduzir o desejo de suas crianças em serem do outro gênero, a perspectiva terapêutica é organizada em torno deste objetivo.”
De acordo com a comunidade trans e suas pessoas apoiadoras, isto é ofensivo. De acordo com mais e mais pesquisas, isto é perigoso.
Algumas pessoas podem acreditar que ser trans é tão difícil que acarreta, em si mesmo, em desfechos como suicídio. No entanto, uma equipe de pesquisa de que faço parte (Trans PULSE) observou que há muito mais elementos envolvidos nesta questão. Percebemos que tendências suicidas entre pessoas trans variam de acordo com os níveis de transfobia e violência a que elas são expostas. A suicidabilidade varia conforme aquelas pessoas que queiram fazer a transição, como Leelah queria, efetivamente possam fazê-la. De maneira importante, a suicidabilidade varia de acordo com o quanto de apoio social e familiar uma pessoa tem. Para pessoas trans jovens em particular, quando elas têm forte apoio de mães e pais para sua identidade de gênero, seus riscos de tentativa de suicídio caem em 93 porcento. De fato, conforme nossas observações mais recentes, mães e pais são pessoas ímpares na vida de uma pessoa trans, no sentido de que seu apoio (ou falta de) tem um impacto sobre o risco de suicídio das pessoas suas filhas por todas suas vidas.
Se ainda não está explícito, a ironia trágica é esta: pais e mães que desejam proteger pessoas trans jovens de uma vida difícil ao tentarem evitar que sejam trans, contribuem eles mesmos para as condições insuportáveis das quais elas podem tentar escapar através do suicídio. A Leelah sabia disso intimamente. Em sua nota de suicídio, ela descreveu a rejeição de seus pais contra sua identidade e escreveu: “Se você está lendo isso, pais e mães, por favor não digam isso às suas crianças… isso fará com elas odeiem a si mesmas.”
Por esta razão, especialistas como o Dr. Edgardo Menvielle em Washington DC e o Dr. Herbert Schreier e a Dra. Diane Ehrensaft na Califórnia orientam mães e pais de que tentar mudar uma criança trans é “coercivo” — é uma perspectiva que “causa danos” e que “deve ser evitada”. De fato, um estudo recente apresentado por Dr. Birgit Moller na Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero (WPATH, no inglês) em Bangkok no ano passado observou que 11 em 13 especialistas internacionais acreditam que tentar corrigir crianças gênero-inconformes é “antiético”.
Ao invés de correção, muitas pessoas clínicas estão utilizando uma perspectiva “afirmativa” em que pessoas jovens de gêneros inconformes recebem apoio para explorar e expressar o que são. Para algumas, isso pode significar uma transição de gênero. Para outras, não. Mas de acordo com os Drs. Menvielle, Schreier e Ehrensaft, a tarefa de pais e mães é de aprender como se tornar defensores de suas crianças — aprender como consertar o mundo em torno delas, ao invés de consertá-las. Dado que esta não é uma tarefa fácil, no ano passado a Rainbow Health Ontario [um programa canadense de apoio à saúde de pessoas LGBTQ] trabalhou com um comitê de 40 pessoas médicas, terapeutas e famílias de Ontário para lançar uma série de folhetos que oferecem assistência a pais e mães.
Em um artigo de 1985, o responsável pela clínica, Dr. Ken Zucker, previu que as objeções ao modelo do CAMH era improvável. Ele afirmou: “Parece que a prevenção do transexualismo é um objetivo que nunca vai receber oposição sistemática”. Entretanto, a recente petição pela proibição de tais tratamentos prova o contrário. Assim como o faz a declaração desta semana por parte de assistentes sociais canadenses, afirmando que: “Qualquer tentativa de uma pessoa profissional para alterar a identidade ou expressão de gênero de uma pessoa jovem, no sentido de alinhá-las a normas sociais, é considerada antiética e um abuso de poder e autoridade”.
A Leelah nos pediu para que consertássemos seu mundo. Não o pudemos fazer a tempo. Mas as pessoas adultas em sua vida não somente falharam em consertar as coisas para ela: ainda por cima, tentaram consertá-la. As consequências foram devastadoras. “Não fiquem tristes”, ela nos diz em sua nota de suicídio. No entanto, é muito tarde para isso. Nós estamos tristes, Leelah. E muites de nós estamos furioses também.
A morte de Leelah Alcorn é um alerta para que paremos de consertar crianças trans, e comecemos a consertar seus mundos despedaçados, de maneira que elas possam finalmente ter uma chance em uma vida que, nas palavras de Leelah, “valha a pena viver”.
Jake Pyne é uma pessoa pesquisadora na comunidade trans de Toronto, Trudeau Scholar e Vanier Scholar na McMaster School of Social Work.