É ‘basicamente’ isso
Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.
A medicina ocidentalizada tende a focar exclusivamente nas necessidades sentidas, ou seja, no tratamento de doenças. Isso pode parecer um tanto óbvio, mas se afastarmos um pouco mais o objeto dos nossos olhos, é possível compreender alguns outros contornos mais que o tornam aquilo que é.
Um dos efeitos desse distanciamento, que podemos chamar de “eumetria” (boa distância), é a compreensão de como fatores econômicos perpassam a forma como lidamos com uma doença. As sociedades ocidentalizadas, como se sabe, existem dentro de um regime de organização social que é o capitalismo. Isso significa que essas sociedades se preocupam única e exclusivamente com o lucro obtido, cabe dizer, da exploração do trabalho. O que temos observado é que essa forma de organização social tem gerado a precarização da forma de vida para a maioria e melhorado a forma de vida de uma minoria, conhecida como ricos.
O que essa precarização da vida tem a ver com a forma como lidaremos com uma doença? Como se sabe, o tempo inteiro se fala do mercado financeiro, de como podemos nos tornar empreendedores e mudar de vida. Quem não gostaria de mudar de vida? Acontece que, com a precarização da vida, nossos direitos básicos passam a ser identificados pela perspectiva liberal como privilégios, resultando na naturalização da miséria. É comum que se ouça “pobre não tem tempo pra ficar doente”, “isso é frescura”, e por aí vai. Nossa forma de vida anda tão precarizada que o básico, o cuidado básico, deixa de ser parte do nosso cotidiano. O mercado financeiro, esse mesmo para o qual trabalhamos exaustivamente, paga somente pela realização de um ato que possa ser medido em termos de resultado imediato. Necessidades não sentidas, como a prevenção, por exemplo, não fazem parte da realidade do mercado financeiro. A higiene é uma forma de prevenção. Quantas vezes não deixamos de lavar alimentos, lavar as mãos, tomar banho, acompanhar como anda nossa saúde, por conta da rotina asfixiante de trabalho? Sobre isso, Marx chegou a dizer n’O Capital, que “o tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalismo consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista.”
O mercado financeiro tenta ocupar até mesmo os espaços de tempo livre que raramente desfrutamos. As medidas preventivas não fazem parte da realidade das sociedades ocidentalizadas, e consequentemente, das medicinas ocidentalizadas, o que nos possibilita dizer que “medicina não é saúde” (mas isso é assunto para outro momento). Isso provavelmente ocorra porque as sociedades ocidentalizadas individualizam processos que são coletivos. A prevenção exige que se preste atenção noutros fatores que não apenas o individual, o que pode levar a reconhecer como o regime de organização social vigente não é de maneira alguma favorável às diversas formas de vida deste planeta. Tratar exclusivamente o indivíduo doente permite que problemas sociais sejam tratados como individuais. Podemos dizer que a separação entre necessidades sentidas e não-sentidas é artificial, socialmente construída, e sendo socialmente construída dentro do regime de organização social capitalista indica que a sua construção atende à manutenção desse mesmo regime de organização social.
Tentar compreender essas sutilezas possibilita que não assumamos a posição de “simplórios iconoclastas” que agem espontaneamente sem considerar que essa mesma espontaneidade depende de referências e essas referências, se não investigadas, podem muito bem ser favoráveis à manutenção do regime de organização social que essas pessoas acreditam estar atacando. Criticar indústria farmacêutica e repudiar cuidados médicos não são a mesma coisa.
Claro que desinformações (fakenews/boatos) auxiliam no pânico, mas talvez o fato de não nos preocuparmos com a prevenção no cotidiano nos assuste um pouco, pois neste momento é dela que mais precisamos.