NENHUM HOMEM MEDIOCRE MERECE SER AMADO POR UMA TRAVESTI
Texto de Ana Flor Fernandes Rodrigues.
A necessidade em escrever esse texto surgiu de uma urgência afetiva que, durante muito tempo, travestis e mulheres transexuais foram submetidas. Uma das pautas mais recorrentes no debate transfeminista brasileiro é o direito ao afeto. Justamente por esse motivo, acredito que é de suma importância levantar algumas questões.
No ano retrasado, 2015, tive o imenso prazer de ler o texto, lançado no site das Blogueiras Negras, da minha querida amiga Maria Clara Araújo: “Por que os homens não estão amando as mulheres trans?”. Nesse texto, ela elaborava uma crítica sobre a solidão das mulheres trans e travestis está diretamente ligada a nossa estrutura e construção social machista e transfóbica.
http://blogueirasnegras.org/2015/10/17/por-que-os-homens-nao-estao-amando-as-mulheres-trans-2/
No caso desse escrito, além de dar continuidade ao debate sobre afetividade, o meu intuito é tentar subverter a ótica de que, apesar de uma construção machista e transfóbica, se homens não estão se relacionando conosco, é porque não nos merecem.
Aproveito desde já, nesse momento, para reconhecer que essa é mais uma visão entre tantas outras. O movimento transfeminista no Brasil é diverso, e carrega consigo variadas colocações. Logo, escrevo muito mais no sentindo de produzir questionamentos, do que lançar certezas.
Falar sobre afeto e travestilidade é um desafio imenso. Tentar ressignificar o que foi construído por uma história cisgênero, mais ainda. Principalmente quando para uma parcela das travestis o amor foi visto como um campo que permaneceu entre os desejos de um coração vazio. Mas, além disso, sobre como nos foi imposto que era necessário conceber o fato de estar sozinha enquanto algo ruim e prejudicial.
Prontamente, não só para mim, mas para muitas de nós, a ausência do outro pode significar estar incompleta. Ouso dizer que grande parte até já projetaram um sujeito ideal para “o caminho da felicidade”. Eu mesma já fiz isso diversas vezes. Ele nunca existiu, mas vez ou outra eu o criava para me sentir bem e amada. Outrora me via aceitando migalhas de homens que, sequer, teriam coragem de andar comigo em público ou me assumir como namorada.
Todas essas situações me levavam a refletir se, de fato, esses homens mereciam o privilégio de estar ao meu lado. Lembravam-me, de forma perturbadora, de um documentário da Netflix chamado “What Happenened, Miss Simone?”, que conta sobre a vida de Nina Simone, mulher negra, ativista e cantora atemporal que teve sua carreira quase que destruída por um homem medíocre, seu marido.
Muitos desses conflitos me traziam questionamentos. Parece que pensar dessa forma, para algumas pessoas, poderia soar egoísta demais. Umas nomeariam de “close barato”. Eis que os discursos se repetiam nos espaços onde a temática do afeto era conversada. Me via muito atenta, curiosa, ansiosa para o desfecho das histórias amorosas de cada travesti. Adorava ouvir “sou mais eu, ele que se dane” quando elas se referiam ao término de um relacionamento por conta de um garoto que, supostamente, teria sido escroto.
Os anos foram passando, os debates de gênero e sexualidade, por consequência, acabaram sendo potencializados nas esferas de grande, médio e pequeno porte. Mulheres trans e travestis se viram na difícil tarefa de reestruturar uma sociedade que tem como objetivo nos eliminar. Contudo, começamos também a ver como possibilidade nos tornar autoras e protagonistas das nossas próprias narrações. O que, por um longo tempo, pareceu distante e inalcançável.
Assim sendo, constatei que era um período gostoso para questionar por qual motivo precisaríamos de alguém que não nos enxergava como uma possibilidade afetiva concreta. Em outras palavras: seria muito mais gostoso se permitir aos prazeres da vida sozinha do que deixar um homem medíocre destruir nossa autoestima.
Comecei a colocar em prática aquilo que tanto refletia e pensava. A sensação de se colocar em primeiro lugar era deliciosa. Receber uma mensagem no whatsapp de um boy me convidando para ir a sua casa de madrugada, enquanto todos dormiam e responder com “eu não preciso disso” preenchia um sentimento de que, enquanto uma travesti, eu seria muita areia para um carrinho de controle remoto carregar.
Em uma das suas produções mais recentes, o álbum Pajubá, Linn da Quebrada, em parceria com Liniker, canta uma música chamada “Serei A do Asfalto”. Um dos trechos dessa faixa, diz o seguinte: “serei a do asfalto, rainha do luar, entrega o seu corpo somente a quem possa carregar”.
É exatamente sobre isso que estou falando aqui. É sobre perceber que, talvez, você mesma seja dona de si. É reconhecer que, muitas vezes, não precisamos depender do outro quando temos nós mesmas. E que, além disso, o fato de sermos incríveis significa que não devemos, nem precisamos estar ao lado de qualquer um. Para estar conosco, como dito no decorrer desse texto, faz-se necessário reconhecer que não somos pouca coisa. Logo, se relacionar com uma travesti é um privilégio, e nem todo mundo deve gozar dele. Ou seja: nenhum homem medíocre deve ser amado por uma travesti.