O que é Transfeminismo? Uma breve introdução
*Texto publicado originalmente sob o título “O que é e porque precisamos do transfeminismo” como um capítulo do livro “A quem pertence o corpo da mulher? Reportagens e ensaios”, publicado pela ONG Repórter Brasil. Para referências bibliográficas, por favor use a versão impressa.
*Essa postagem refere-se somente à introdução do texto, para ler ele inteiro por favor baixe a versão em PDF aqui: O que é Transfeminismo?
Há algum tempo, uma “nova” corrente feminista tem ganhado força no debate da sociedade em geral. Nova entre aspas, pois nos Estados Unidos essa corrente já existe há pelo menos duas décadas, impulsionada tanto por teorias acadêmicas quanto por movimentos ativistas autônomos. No Brasil, assim como ocorreu com o feminismo tradicional há muitas décadas atrás, veio importada desses mesmos movimentos e teorias que buscam, sobretudo, a emancipação das pessoas trans*[1]. O transfeminismo surge como uma corrente feminista voltada às questões das pessoas trans*. Frustradxs com a falta de visibilidade e até mesmo exclusão dentro do próprio movimento feminista, as pessoas trans* se organizam para lutar em prol de sua emancipação e autonomia, frente uma estrutura que mantém essas pessoas à margem. Tal estrutura pode ser definida através do que se convencionou chamar de cissexismo. Desenvolverei essa ideia mais à frente.
Dessa forma, essa corrente surge da necessidade de auto-organização e emancipação das pessoas trans*, cansadas de ocupar o lugar marginal nas políticas LGBT. As macro (e micro) políticas gay-lésbica sempre advogaram por pautas exclusivas de suas identidades, criando uma hierarquia de pautas onde as questões trans* figuravam/ram o final da lista. E, mesmo quando alcançados direitos historicamente demandados pela comunidade gay, como o casamento homoafetivo, o descaso para com a população trans* era/é tão grande que tais conquistas da comunidade gay-lésbica figuram na perda de direitos da população trans*, como vimos no caso recente do Reino Unido[2].
Por isso, as políticas de representatividade gay-lésbica para as pessoas trans* eram inexistentes ou, ainda, nocivas. Havia a necessidade de auto-organização, e de um movimento que estivesse fortemente relacionado com a emancipação e autonomia de pessoas trans*. O feminismo havia se mostrado muito útil em suas políticas de empoderamento, colocando as mulheres como o centro de sua luta, transmitindo elementos-chave para conceder autonomia e empoderamento às mulheres sujeitos de suas políticas. Contudo, o sujeito do feminismo figurou o grande problema entre as questões trans* e as questões do feminismo. Grande parte das correntes feministas não aceitava mulheres trans* em seus círculos, pois partiam de uma mentalidade bioessencialista que relegava mulheres trans* à categoria homem/masculina - seja por terem um genital considerado masculino, ou por considerarem que mulheres só são mulheres se designadas como tal no momento do nascimento[3]. Esse pensamento impediu que o feminismo tradicional abrigasse mulheres trans* embaixo de sua categoria de mulher universal, e foi amplamente criticado não só pelo ativismo trans* como também pelo Feminismo Negro, que observou que a ideia da mulher universal representava, na realidade, a mulher branca, heterossexual e de classe média. Nas palavras de Audre Lorde[4]:
É uma arrogância acadêmica particular supor qualquer discussão sobre teoria feminista sem examinar nossas muitas diferenças, e sem uma contribuição significante das mulheres pobres, negras e do terceiro mundo, e lésbicas. E, ainda assim, estou aqui como uma feminista negra e lésbica, tendo sido convidada a comentar no único painel nesta conferência no qual dados sobre feministas negras e lésbicas são representados. O que isto diz sobre a visão desta conferência é triste, num país onde racismo, sexismo e homofobia são inseparáveis. Ler esta programação é presumir que mulheres lésbicas e negras não têm nada a dizer sobre existencialismo, o erótico, a cultura e o silêncio das mulheres, o desenvolvimento da teoria feminista, ou heterossexualidade e poder.
Assim, as feministas que escreveram sobre questões trans* geralmente relegaram as mulheres trans* à categoria homem/masculina, ignorando o fato de que a sociedade as trata como mulheres, estando sujeitas, por isso, às formas comuns de machismo. Como colocou Julia Serano:
Na realidade, as poucas feministas não-trans que escreveram sobre nós no passado comumente basearam suas teses na suposição de que nós somos, na realidade, “homens” (e não mulheres), e que nossa transição física para mulheres e nossas expressões de feminilidade representam uma apropriação da cultura, simbolismo e corpos das mulheres. Além disso, configurar um desrespeito com o fato de que nos identificamos, vivemos e somos tratadas como mulheres pelo mundo, tais abordagens falhas ignoraram uma oportunidade importante para examinar questões muito mais relevantes: as formas pelas quais o sexismo tradicional molda as suposições populares sobre mulheres transexuais, e porque tantas pessoas em nossa sociedade sentem-se ameaçadas pela existência de “homens que escolhem se tornar mulheres”. (SERANO, 2007, p. 6)[5].
Dessa forma, não encontrando espaço político nem na comunidade gay-lésbica e nem no feminismo tradicional, surge então um movimento auto-organizado que partilha de praticamente todas as ideias feministas tradicionais, e as absorve em prol de políticas trans* de emancipação. É importante colocar aqui que o transfeminismo também surgiu da necessidade de se combater o machismo instalado na comunidade trans*, através de uma ótica feminista aplicada às questões trans* (por isso transfeminismo). Daí a necessidade de se criticar uma forma estereotipada de se perceber as pessoas trans*, especialmente as mulheres trans*, dentro dos veículos de comunicação tradicionais, e por vezes também os alternativos.
É importante ressaltar a importância da aliança entre o feminismo cisgênero (não trans*), seja ele tradicional ou feminismo negro, das trabalhadoras sexuais, socialista etc., e o transfeminismo. O transfeminismo não vem para substituir nenhum feminismo, mas sim para pedir que as feministas cisgêneras sejam parte de nossa luta como aliadas e também apoiar a luta de todas as outras mulheres que não são trans*. Como bem lembrou Emi Koyama em seu famoso texto Manifesto Transfeminista:
(…) O Transfeminismo não é sobre se apoderar de instituições feministas existentes. Ao contrário, é sobre ampliar e avançar o feminismo como um todo através da nossa própria liberação e trabalho em coalizão com todas as outras pessoas. O Transfeminismo luta por mulheres trans e não trans , e pede às mulheres não trans para lutarem por mulheres trans também. O Transfeminismo engloba políticas de coalização feminista nas quais mulheres com diferentes vivências e histórias lutam umas pelas outras, pois se não lutarmos umas pelas outras, ninguém irá.[6]
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