Sobre “destransição”, arrependimento e cisgeneridade
Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Discutir “destransição” sem se atentar para a discussão simultânea sobre a cisgeneridade compulsória e transfobia é leviano. Sim, to falando sobre a matéria que saiu no Globo.
Centrar a problemática sobre as incertezas e as possibilidades de arrependimento que envolvem a transição sem antes assinalar as violências que envolvem a própria naturalização da cisgeneridade como a expectativa neutra sobre a vida das pessoas pode fazer funcionar relações de poder bastante perversas sobre pessoas trans. Isso porque é simplesmente um passo para adotar uma perspectiva que aloca a suposta origem dos sofrimentos psíquicos na identidade trans em si (o fato de alguém ter transicionado) e não nas estruturas de exclusão e estigma social que recaem sobre pessoas trans.
Exigir uma suposta “certeza” para que pessoas trans possam ter autonomia sobre seus corpos faz parte do mesmo circuito de poder que relega a certos corpos e expressões o posto de abjeção. Criar sistemas de veridição sobre a pretensa transexualidade “verdadeira” com base no argumento das “pessoas arrependidas” faz parte do mesmo sistema de poder que gera sofrimento para pessoas que se arrependem, para pessoas que vivenciam fluidez de gênero, que habitam a indeterminação em relação às suas identidades de gênero.
A ideia de que seria necessário o poder médico decidir sobre quem é trans de verdade para supostamente evitar que pessoas se arrependam precisa ser criticada e superada. E se com base na justificativa de evitar com que pessoas se arrependam e não sofram não estivéssemos, desde o princípio, produzindo mais sofrimento ou o próprio sofrimento que antes julgávamos prevenir?
Isto porque é a própria ideia sobre ser “trans de verdade” que cria margens que excluem os sujeitos de poderem habitar uma zona de indeterminação em relação às suas próprias identidades de gênero. É o próprio discurso da “transexualidade verdadeira” que produz o sofrimento psíquico de pessoas “arrependidas” com a transição. É o próprio discurso que toma a cisgeneridade como algo natural, como se fosse manifestação espontânea de uma verdade acerca dos gênero, que produz o sofrimento psíquico de pessoas que se encontram “arrependidas”.
Quem discute o arrependimento acerca da decisão pela cisgeneridade? Porque, aliás, não se coloca a cisgeneridade nos mesmos termos em que colocamos a transgeneridade, a saber, do sujeito ser instado a estabelecer uma “escolha” subjetiva com base em um saber sobre si, uma “decisão” de si para si supostamente extremamente delicada em relação à sua própria vida? Porque não se discute os arrependimentos de anos de “armário”, de imposição da cisgeneridade? Não seria exatamente porque não se enxerga o “estar no armário” em termos de tomada de decisão? Como se a decisão só pudesse estar em poder sair dele, enquanto a sua permanência é tomada como pressuposta, como se fosse um estado existencial neutro, como se estivéssemos tratando de um estado existencial “bruto” sobre o qual as decisões sobre as possibilidades de transição iriam incidir apenas a posteriori e em caráter contingencial.
Para de fato podermos discutir “destransição” quando falamos de identidade de gênero já passou da hora de entendermos que a decisão que um sujeito deve fazer em relação à sua própria identidade de gênero está longe de se resumir tão somente a uma saída do armário da cisgeneridade. Já chegou a hora de abandonarmos a ideia de que a cisgeneridade seria uma espécie de estado existencial bruto, uma mera matéria prima que as modificações transgêneras dariam forma. Se manter dentro do armário deve ser visto como uma decisão igualmente dramática, que deveria exigir igualmente um trabalho subjetivo (intenso) que tanto se exige daquele sujeito que deseja transicionar: “você tem certeza que deseja permanecer no armário?”; “você tem certeza realmente que deseja ratificar às expectativas em relação à cisgeneridade?”. Porque não fazemos essas perguntas? Porque tais perguntas não são igualmente enunciáveis? Porque tais perguntas incidem unidirecionalmente para a saída do armário trans e não sobre a sua permanência?
A decisão, a escolha que um sujeito deve tomar incide sobre um aspecto deveras muito mais essencial, que diz respeito à própria posição que o sujeito deve estabelecer em referência ao estar “dentro” ou “fora” do armário: neste aspecto, se manter dentro do armário também é algo que deveríamos refletir profundamente sobre, ao invés de simplesmente assumirmos como se fosse algo da esfera do natural, do evidente, do meramente pressuposto como neutro.