Sobre mulheres cujo próprio lugar de “mulher” é negado
Por Raíssa Éris Grimm.
é impossível a gente entender
o patriarcado
olhando apenas sobre “opressão contra mulheres”
como se fosse um universal.
O patriarcado oprime mulheres, todas,
mas é necessário demarcar que o patriarcado HIERARQUIZA mulheres:
demarca uma linha entre “boas” e “más” mulheres,
e aciona - sobre mulheres bem específicas - processos de desumanização
que lhes coloca sobre um lugar de “não-mulheres”, ou de “menos mulheres”.
Entendam:
ser marcada como uma “não-mulher” não é o mesmo que ser tratada como um homem, de ser reconhecida no mundo dos privilégios masculinas.
Ser marcada como uma “não-mulher”
é ser posicionada fora do registro do humano -
é ser lida como uma coisa e/ou como uma monstruosidade, como uma aberração.
É necessário entender que:
há mulheres que são oprimidas (têm sua liberdade cerceada, sua vida econômica limitada)
sem que seu estatuto de humanidade seja negado -
mulheres cuja vida, mesmo limitada pelo machismo, se inserem no tecido social, são protegidas (ainda que de forma limitada) por leis, se inserem em redes de apoio familiar -
enquanto há mulheres
que não são apenas oprimidas - são desumanizadas,
destituídas de direitos Básicos, marginalizadas (inclusive por suas famílias), criminalizadas, marcadas socialmente como párias.
Essas linhas não são fixas.
É impossível entendê-las olhando pra recortes de opressão de forma congelada, sem entender como se manifestam numa rede complexa.
Diria que mesmo entre nós, mulheres trans e travestis (que experimentamos um processo de negação desumanizante da nossa mulheridade),
existem recortes de privilégio/opressão que marcam possibilidades
de inserção na categoria do que nossa sociedade considera como “humano”. Tais como:
raça, posições de classe, aceitação/não-aceitação da família, escolarização, inserção no ativismo.
É certo que o machismo e a transfobia nos afeta a todas - mas não nos atingem da mesma forma.
Mesmo entre nós, a categoria da “abjeção” não nos atinge de forma linear -
é, portanto, necessário que não romantizemos
posições de opressão de uma forma fixa
ignorando outros privilégios que podem estar presentes.
(ser uma dissidente de gênero na universidade
não o mesmo que ser uma dissidente de gênero na periferia).
Mas o ponto é que o feminismo cisgênero, branco, heterossexual acadêmico
segue, constantemente, ignorando
que não basta o conceito de “machismo” para compreender como o patriarcado funciona -
não basta tratar outras opressões como conceitos secundários a se incorporar “depois”.
O patriarcado nunca foi dissociado do racismo. Da transfobia. Da heteronormatividade. Do capacitismo. Da gordofobia. Da opressão de classes
enquanto sistemas que operam,todos,
no controle do corpo das mulheres,
na violência contra mulheres - inclusive
sobre mulheres
a quem o próprio lugar de “mulher” foi negado
pelo racismo, pela transfobia, pela lesbofobia, pelo capacitismo, pela dominação de classes, pela bifobia, pela gordofobia, pela putafobia.
Imagem: Dino Santos - CUT-SP (3ª Caminhada pela Paz: Sou Trans, Quero Dignidade e Cidadania). Veja também na Ponte Jornalismo.