Supremacia branca, antissemitismo e “disforia de gênero de início rápido”: qual é a relação?
Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Acredito que pouca (ou mesmo nenhuma) pessoa esteja comentando isso em português, então eu gostaria aqui de explicar como o pseudodiagnóstico de “disforia de gênero de início rápido” decorrente de “contágio social” proposto por Lisa Littman em 2018 é utilizado “convenientemente” por discursos antissemitas e de supremacia branca atualmente. Pode parecer estranho a princípio, mas é isso mesmo que você leu.
Primeiro é importante que você saiba minimamente do que se trata a “controvérsia” do artigo de Littman e porque esse pseudodiagnóstico, além de não ter base empírica nenhuma, e possuir “problemas” metodológicos que evidenciam que o estudo não diz nada além da percepção de pais transfóbicos que rejeitam a identidade trans de seus filhos; é enviesado pela cisnormatividade como uma forma de negar a identidade de gênero de jovens trans (principalmente de jovens transmasculinos, esse aspecto vai ser importante aqui) e, por isso, é amplamente replicado em meios “gender critical”/TERFs. Segundo, é sempre bom ter em mente que com recrudescimento do reacionarismo e do (neo)fascismo a nível mundial, não é de se estranhar que o antissemitismo e o racismo também cresçam juntos. Isso nos ajuda a avançar na compreensão de como a transfobia, o racismo e o antissemitismo se mesclam atualmente, assim como a articulação entre o movimento dito “gender critical”/TERF e a extrema direita.
Em discursos “gender critical” atuais, a aceitação de pessoas trans, particularmente de jovens trans, e o aumento do número visível de pessoas trans, fazem parte de uma trama secreta “transhumanista” de “judeus bilionários” de “mutilarem” os corpos desses jovens (particularmente os transmasculinos, vistos equivocadamente como “lésbicas confusas”) e, com isso, enfraquecerem e derrubaram os ditos valores ocidentais e “substituírem” a população branca (conferir neste sentido a teoria conspiratória da “grande substituição” e alegações de “genocídio branco”), pois essas “meninas” ficariam estéreis. As hipóteses de Littman ganharem tanta visibilidade midiática não me parece fortuito, porque, além de vender manchetes sensacionalistas, elas se encaixam perfeitamente nesta narrativa racista pelo seguinte motivo: a suposta condição de “disforia de gênero de início rápido” seria “típica” de um subgrupo muito específico de jovens transmasculinos – “adolescentes vulneráveis brancas de classe média/média alta de países ocidentais (vulgo EUA) com bom acesso a recursos educacionais”.
Percebam que há a criação, mesmo que inconsciente, sutil ou espontânea, de um estereótipo a respeito de uma “jovem branca indefesa” oriunda de um país ocidental que precisa ser protegida do discurso trans “contagioso” que a levaria “mutilar” o seu próprio corpo e se identificar como homem trans/transmasculino. Outros corpos, negros e não brancos, sem útero e não “ocidentais”, não estariam predispostos a sofrerem igualmente com a “disforia de gênero de início rápido via contágio social” – justamente porque esses corpos nem ao menos importam para a supremacia branca desde o princípio, pois não exigem o mesmo tipo de controle e disciplina daqueles corpos com útero. No discurso supremacista branco “úteros brancos” são “valiosos”, e a hipótese de Littman entra como uma luva para construir a ideia de que “úteros brancos” estão sendo “perdidos” pela esterilidade que as alterações corporais de afirmação de gênero podem acarretar. O texto de David Futrelle, por exemplo, mostra que um supremacista branco citou o livro de Abigail Shrier “Irreversible Damage: The Transgender Craze Seducing Our Daughters”, que se baseia, por sua vez, na hipótese de contágio social de Littman.
Percebam também que para este discurso racista e conspiratório não existe escolha individual legítima de uma pessoa trans em buscar alterações corporais que melhoram sua qualidade de vida. A ênfase aqui é sempre em uma força maior, oculta e maligna que influencia as pessoas “certas” (“meninas brancas”) a fazerem algo errado (“mutilarem seus corpos”). Isso justifica obviamente discursos e atos transfóbicos e racistas, tendo em vista a necessidade de justamente conter o “contágio social” da identidade trans sobre corpos que possuem os tais “úteros brancos valiosos”. A ideia de que alterações corporais que geram infertilidade são mutilações (e “mutilações” serem algo terrível) é um tópico bastante enfatizado por discursos TERFs tradicionais e por este movimento “gender critical” de tendência mais neofascista e busca justificar a inferiorização e a estigmatização de corpos trans.
Por mais críticas que podemos ter em relação ao discurso liberal, categorias clássicas a respeito da escolha intencional e racional do sujeito individual me parecem como uma forma simples e eficiente de contrapor este tipo de discurso racista+transfóbico e expor o seu caráter conspiratório.
Imagem: Pink News.
Obrigada por seu texto, muita coisa a se pensar sobre isso e realmente, não vi ninguém falando.
A expressão “contágio social” também do muito sobre essa ideia estapafúrdia.
Excelente texto parabéns. Me instigou a ler mais sobre.
Pingback: O ponto em que Vladimir Safatle está errado sobre E. Roudinesco: sobre jovens trans | Transfeminismo