Arquivo do mês: julho 2011

Sobre alguns xingamentos, expressões, machismo e discursos

Recentemente, houve uma discussão da qual eu “participei” (note as aspas) via twitter e nos comentários de um blog.

Estou fazendo esse post porque conversando com um colega via twitter, surgiram-me questões que eu acho que deveriam ser colocadas aqui.

Bom, quando eu digo “tal coisa é baiana” “vai tomar no cu”, “aquela vadia”, estou sendo preconceituoso?

Ateus falarem “ai meu deus” nega suas ‘IDs ateístas’?

Começando pelo fato de que, seu discurso não é seu, ele também é de outras pessoas que mantém traços similares ideológicos discursivos e principalmente, ele não é seu porque existem aquelas vozes que são anteriores a sua formação como sujeito, vozes que produzem e reproduzem diversos discursos, aos quais você assimila, julga e reproduz.

Não existe nenhum discurso que seja destituído de parcialidade, em termos estritos não existe discurso imparcial, porque o próprio discurso é uma ‘parcialidade’. Quando eu discurso eu estou reproduzindo aquelas ‘vozes’ que vieram antes de mim e que eu ajudo a manter justamente através de sua reprodução. Essas vozes são os discursos das instituições que te formaram e que construíram seu subjetivo pelo poder da ideologia (ver Aparelhos ideológicos de Estado, do Althusser). Então, o discurso do pai/patriarcado, o da família, da escola, da igreja, são todos discursos ‘pré-dados’, assimilados por você e reproduzidos por você, e por isso o discurso nunca é só seu nem meu.

Dada a ilusão da neutralidade das palavras, dos textos, dos enunciados, ou seja dos discursos, as pessoas comumente acham que, por exemplo, mesmo não sendo religiosas ou mesmo sendo pessoas ateias, falar “ai meu deus” não tem conotação religiosa, e costumam evocar o argumento da ‘automatização “natural” de expressões que perdem seu significado inicial por serem exaustivamente repetidas fora de seu “contexto original”’, ou o argumento da intencionalidade que vem geralmente junto com o da semântica “eu não acredito nisso, não usei nesse sentido” e evocam a semântica, apenas para fazer uma análise reducionista de sentido.

Usei o exemplo com pessoas não religiosas ou ateias, mas acontece da mesma forma com pessoas que se intitulam como pertencente a um determinado grupo de identificação.

De fato, quando uma pessoa que se considera não religiosa (ou ateia) usa expressões como “ai meu deus”, “jesus” “misericórdia” etc. não implica ‘inverdade’ de sua posição ideária em relação a religião, ou seja, não significa que essa pessoa esteja mentindo, alias essa noção de ‘mentira’ e de apontar que alguém é ‘incoerente’ em termos de suas posições ideárias é bastante problemática na medida em que eu não tenho autonomia para dizer o que você ‘é’ ou deixa de ser, em que você acredita ou não, pois quando eu faço isso eu quero desmentir seu discurso, desmentir seu ideário ao apontar que você não ‘verdadeiramente’ o segue, e eu não poderia nunca fazer tais afirmações.

É claro que podemos traçar incoerências no discurso, e é com o discurso que vamos ‘trabalhar’ e não com a pessoa, muito embora sujeito e discurso não possam ser separados, o sujeito não tem controle de seus discursos, e é por isso que esses são os mais interessantes, pois revelam aquelas vozes ditas anteriormente, por mais que este sujeito queira esconder ou tente manipular é impossível, pois quando enunciamos/discursamos estamos exprimindo nossa subjetividade sem querer e ai não há controle algum.

Voltando nas expressões, como afirmado, não é o caso de dizer que uma pessoa não religiosa ou ateia esteja ‘traindo’ seus ideários quando evoca as tais expressões do dia-a-dia, porém, partindo do ponto que elas se automatizaram (nas sociedade cristãs), isso significa apenas uma estratégia da ideologia de se ‘embutir’ no discurso sem ser percebida. Essa automação que muitas vezes parte despercebida não é nada menos que o discurso cristão, tão ‘cravado’, tão intrínseco em nós que chega no ponto em que não percebemos que o estamos evocando, pois mesmo que o sujeito não tenha a intenção, ou seja não evocou a expressão para usa-la em seu contexto religioso, o discurso É o discurso da religião se reproduzindo, pois o sujeito não tem controle dessa ‘intenção’, e assim o discurso da religião cristã se reproduz e se reproduz eternamente. tanto isso é verdade que se a intenção fosse o critério máximo de controle do discurso, poderíamos ter resignificado ou mesmo a expressão teria morrido.

 

Isso vale para xingamento também. por exemplo, por que ofendemos alguém com expressões ‘vai tomar no cú’? por que a prática do sexo anal se tornou um xingamento? ora, se fosse algo ‘ruim’, ninguém faria, e eu não preciso evocar aqui dados para saber que pessoas sentem prazer com tal ato, e inclusive eu me lembro que no meu ensino médio, cansada de ouvir esse xingamento como coisa ruim, para responder a quem o utilizava comigo eu retrucava “é pois é, eu bem que queria tomar no cu, arranja alguém pra me comer ok?”, pois a lógica do xingamento como sendo ofensivo só é ofensivo se você ligar ou que o ato é sujo/feio/imoral e que infelizmente sempre ligam também à homossexualidade masculina. Não é incomum associarem o ato do sexo anal com homossexualidade masculina, como se 1) mulheres não sentissem prazer nessa região 2) o ânus tivesse um recadinho dizendo que se for utilizado você vira gay 3) como se sexo gay fosse só penetração 4) como se sexo no geral fosse só penetração, como se o corpo todo não fosse zonas erógenas em potencial bastando apenas cada um se descobrir. Nem atentando ao fato que essas concepções de penetração no sexo gay são reproduções do modelo heteronormativo de sexo, é bastante ridículo se ater a tais pensamentos.

Quanto a polêmica de expressões como ‘vadia’, ‘vagabunda’, ‘puta’ e afins, tem caráter essencialmente machista, pois 1) seus ‘pares’ masculinos não tem a mesma conotação: ex. vadia = mulher imoral, puta / vadio = homem que não trabalha, folgado desempregado. Vagabunda é bem similar e puta = mulher imoral, prostituta / puto = homem muito irritado.

E tem vários outros exemplos como ‘homem da vida’ / ‘mulher da vida’, ‘aventureiro’ / ‘aventureira’ etc. Por que a mesma palavras tem conotações diferentes para homem e para mulher? Por que o xingamento para a mulher se alicerça na noção da moral, pois uma mulher puta e ‘rodada’ é também pior e mais imoral, passível de condenação e desprezo? E por que justamente quando em uma discussão quando se quer xingar alguma mulher geralmente apelam para tais xingamentos? Ora, justamente na tentativa de desmoralizar a mulher, a inferiorizar e julgar segundo preceitos morais.

Faça um pequeno flashback e veja quantas vezes você ouviu alguém xingando um homem de vadio, puto, prostituto, vagabundo e quantas vezes você ouviu o mesmo xingamento para mulheres. Não existe hegemonicamente julgamento moral sexual para o homem, pois por default este já tem que ser sexualmente ativo e ‘pegar geral’, e a mulher tem que ser recatada e virgem imaculada. E voltando no xingamento do ‘vai tomar no cú’ além de ser homofóbico como já dito, venho aqui lembrar que também é sexista, a medida que um homem é ‘menos homem’ se for gay, e na lógica no binário se você é ‘menos homem’ logo você é ‘mais mulher’, e isso também é ruim, degradante, afinal, porque eu vou ‘descer’ na escala social me assemelhando com o ‘feminino’? Para além da discussão que ‘feminino’ e ‘masculino’ renderiam uma série de posts por serem conceitos problemáticos, podemos ver que o machismo afeta a tod@s, homens, mulheres e outr@s, por estipular quais comportamento(s) são mais ou menos passiveis de julgamento, mais ou menos aceitáveis, ou mais ou menos veneráveis.

Pois bem, voltando no argumento da reprodução do discurso, sim, se eu xingo uma mulher de vadia, estou evocando todo esse discurso moral-machista, mesmo que eu mesm@ não me considere machista, ou mesmo feminista. Ninguém está livre das ideologias hegemônicas, pois são séculos e séculos de reprodução do mesmo discurso, que apenas se reconfigura para agir de outro modo. Assim como criticamos quem fala “eu não sou preconceituoso, mas…” porque sabemos que depois do “mas”certamente virá um discurso que irá contradize-lo, não podemos nos iludir achando que somos livres dos preconceitos. O primeiro passo é assumir. Desçamos de nossos pedestais do ativismo e dos defensores dos direitos humanos e ponderemos sobre nossos preconceitos. Somos sim racistas, sexistas, homofóbicos, em maior ou menor nível. Obviamente não se está a afirmar aqui que tudo bem ter esses preconceitos, pelo contrário, assumir é o primeiro passo para tentar nos livrar deles, e a luta meus amigos não é de alguns anos, a luta é na vida toda, pois somos bombardeados com os discursos hegemônico todos os dias, ainda os velados que tentam disfarçar seus preconceitos com elementos de ‘direitos humanos’ (vide Reinaldo Azevedo por ex.), e por isso a luta de combater nossos preconceitos é durante toda a vida.

Assim, querid@s, todos esse xingamentos, essas expressões, mesmo que não-intencionais, reproduzem sim discursos hegemônicos, e se nossa tarefa é combate-los, temos que perceber sua estratégia de se ‘embutir’ em nossos discursos como se fossem neutros.’

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Arquivado em Feminismo, Linguística, Religião