Hoje de manhã ao ler uma nova postagem feita no blog do Sakamoto, me deparei com um texto bastante problemático. Após discutir o assunto na comunidade Transfeminismo do FB, decidimos escrever um email de resposta ao texto:
Tranfeminismo
Em relação ao texto “O mundo não é preto e branco, e sim colorido. Vamos falar de sexo?” escrito por Claudio Picazio e publicado no Blog do Sakamoto.
Prezado Sakamoto,
Somos parte de um grupo do FB intitulado Transfeminismo. Somos transfeministas, o que significa que encontramos no feminismo um terreno fértil de combate ao machismo como também para teorização/desconstrução de gênero; porém o feminismo por si só, pautado em uma perspectiva biologizante/determinista de corpo, não pode dar conta (quando não age com transfobia) da multiplicidade de corpos e gêneros que necessitam de empoderamento, em especial as pessoas trans* - as quais são sempre colocadas a margem por todos os outros campos do saber e ativistas, quer seja o feminismo ou a militância gay e lésbica.
O texto em questão infelizmente perpetua o tipo de pensamento que visamos combater - reproduz uma lógica binarista que presta desserviço para os esforços do ativismo trans* em despatologizar sua ID.
Primeiramente, pautado em estudos pseudocientíficos (ou talvez só a opinião própria mesmo), o autor classifica o sexo como em número de 2. Uma rápida incursão histórica problematiza essa visão (cf. Laqueur, Berenice Bento), além de que reforça a biologia como o destino – premissa falsa nas quais um conhecimento popular que se quer científico se baseia.
Ademais, pessoas intersexo não são “hermafroditas”, esse termo é muito ofensivo e rejeitado pelas organizações internacionais (cf. OII – Organization Intersex International), além de que o mito da pessoa intersexo que tem “duplicidade” já caiu por terra, pois é um mito pseudocientífico (cf. novamente os textos da OII e também Transfeminismo.com – Dez idéias falsas sobre pessoas intersexo).
Ora se as próprias pessoas – sujeitos do texto de Picazio – apontam falhas em tal discurso, porque não foram ouvidas?
Qual(is) foram os estudos de campo feitos, que ouviram pessoas travestis para que a classificação “Uma travesti tem a sua identidade dupla, ou seja, ela se sente homem e mulher ao mesmo tempo”? Porque o caráter binarista dessa afirmação não foi questionado? (cf. novamente Berenice Bento)
Novamente a “ciência” parte de premissas falsas para conferir inteligibilidade aos eventos que julga anormais, pautada em um idealismo estrutural que não se sustenta frente teorias materialistas históricas nas quais o sujeito histórico é levado em consideração.
As pesquisas que norteiam a psiquiatria, psicologia e psicanálise (os saberes psi), são pautadas em achismos impregnados com a ideologia (e idealismo) da divisão sexo/ gênero e de que tanto o sexo quanto o gênero devam permanecer em número de dois. “Talvez o sexo fosse o gênero desde o início” e o sexo seja entendido em termos pré-discursivos (cf. Butler) – daí a suposta neutralidade da ciência, pois o sexo aparece acriticamente por um saber que visa regular e reproduzir os sistemas opressores de gênero, colocando sempre a margem aquel@s que cruzam seus limites.
Nós pessoas trans* e aliad@s cis, transfeministas, não podemos aceitar a reprodução dessa visão que rege os documentos oficiais pseudocientíficos CID E DSM, os quais patologizam e diagnosticam pessoas trans, sempre em relação ao destino biológico cissexual.
Queremos ser ouvid@s e não queremos pessoas que utilizam suas posições de poder (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas) para proferir pseudoverdades sobre nós – somos NÓS quem decidimos quem somos, como nos identificamos, quais são os limites de nossos gêneros - não aceitamos as afirmações que distorcem a identidade de gênero ( “Para entendermos a sexualidade e por uma questão didática, vamos analisá-la sobre quatro aspectos diferentes e interligados: Sexo Biológico, Identidade Sexual, Papeis Sexuais e Orientação Sexual do Desejo. Repito essa divisão é didática, pois todos os aspectos se entremeiam, formando dentro de nós aquilo que chamamos identidade de gênero.) (grifo nosso).
Quem pode falar por nós somos nós mesm@s, e não alguém que se julga no direito de capturar nossas experiências e nossa identidade.
Repudiamos esse texto, pois mais uma vez, ele só serve para reforçar valores hegemônicos, prestando desserviço para a luta transfeminista.
Esse email será publicado também em http://transfeminismo.com/.
Atenciosamente,
Transfeministas