Arquivo do mês: agosto 2012

Ceces e Fernandas

Fernanda Milan é uma trans* da Guatemala que solicitou asilo para a Dinamarca, foi colocada em dormitório masculino a revelia de seus pedidos e como conseqüência, mesmo em ala separada, foi estuprada por vários homens dentro de seu quarto e agora enfrenta possibilidade de deportação

Cece McDonald é uma trans* negra estadunidense que, ante o perigo de ser assassinada por um crime de ódio, se protegeu matando seu agressor no processo e foi condenada por ter sobrevivido.

Nos países que supomos mais avançados do mundo, seja na América do Norte ou Europa, a transfobia manda mensagem que está viva e passa bem.

O que cria a idéia de que Fernanda deveria ser colocada em um dormitório masculino? O que cria apatia em casos de estupros de mulheres trans*?

O cissexismo que tanto falo, cria essa noção de que, se você não “nasceu mulher” (designada mulher ao nascer) você é homem. Não importa como você se identifica nem sua aparência. O documento que o Estado nos impõe como identificatório é a ultima verdade das identidades: lá está escrito seu nome e seu sexo. Essa cultura cissexista genitalizante tem que acabar, pois só com seu fim teremos mais coerência nessas decisões que envolvem a alocação de pessoas trans* em ambientes ocupados por pessoas cis.

“Ora, mas se uma mulher trans* fosse colocada no mesmo local que mulheres cis, estas últimas correriam riscos”. Quais riscos, me pergunto?

Muitas feministas (mas não só) recorrem a esse argumento ao mesmo tempo em que reforçam o mote “não banalize o estupro”. Considerar que um pênis por si só pode estuprar não é banalizar estupro? Desconsiderar que existe violência sexual entre mulheres cis lésbicas não é banalizar estupro?

Se o machismo é criado, como defendemos; se ninguém nasce machista, mas torna-se; e principalmente, se (a citação feminista mais conhecida), ninguém nasce mulher, mas torna-se, qual é a coerência de supor que uma mulher trans*, por (suposição) não possuir uma vagina e sim um pênis, tem (segundo algum dado místico) mais possibilidades de estuprar alguém?

Essa lógica é essencialista, genitalizante, e logicamente cissexista. A noção cis das identidades trans* cria a falsa ilusão de que somos estupradoras em potencial por possuirmos genital diferente do esperado, um genital “masculino” ou então através do argumento da verdade da socialização masculina que exclui tantas variáveis (inclusive da parcial ou total perda de privilégios masculinos na infância, quando muitas de nós apresentávamos comportamento “feminino” e considerado inferior como tal na lógica machista). (Minha vida em cor de rosa é um exemplo – apesar de um pouco estereotipado – dos nossos “problemas de gênero” já encontrados na infância, inseridxs na cultura ciscêntrica e machista).

Ceces e Fernandas estão por aí, a serem presas, torturadas, estupradas, agredidas, assassinadas², assediadas³, tendo suas demandas e humanidades negadas, relegadas ao terreno da abjeção, ou como diz Butler, experienciando “an unlivable life” ou uma vida incapaz de ser vivida.

Mas nesse jogo do “quem-estupra-quem” sabemos quem perde: aquelx que foi estuprada: e nesse caso, Fernanda.

¹ Como podem ver no hiperlink, felizmente existe uma campanha em andamento para evitar a deportação de Fernanda.

² Felizmente estão surgindo projetos para monitoramento de assassinatos motivados por transfobia, chamados de transmurders, por associações trans européias. Monitoram inclusive o Brasil. Cf. http://www.transrespect-transphobia.org/en_US/tvt-project/tmm-results.htm

³ Graças ao estímulo de programas como do Zorra Total; aliás outro dia vi para vender o DVD, porque não é suficiente veicular pela TV podre, temos que espalhar o preconceito por outras mídias.

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Um pouco acerca das identidades trans* masculinas

[Aviso: alguns dos links contém linguagem cissexista, porém foram escolhidos por estarem em língua portuguesa].

O feminismo, pelo menos as correntes mais ativas, sempre se propôs a desestereotipar o gênero tanto o lido como “masculino”, como o “feminino”. Aspas porque o feminino e masculino são tão relativos, que já nem mesmo eu sei a que exatamente me refiro quando os evoco – talvez às idéias já preconcebidas do gênero.

Por exemplo, o feminismo lutou (luta) contra um modelo de masculinidade que cerceia a liberdade do homem cis em seus aspectos sociais e que produz e reproduz as bases do machismo. Como disse Berenice Bento certa vez “nem mesmo na lógica mais heterossexista do mundo: se vai ter um filho, o homem não pode ser preparado para tal?” (citação de cabeça). O machismo afeta também os homens, como sabemos: Homem não chora, não demonstra emotividade, porque afinal homem é “racional”; homem tem que ser “pegador”, exalar testosterona; e todos aqueles estereótipos que conhecemos – tão “bem” reproduzidos por aí, pela(s) mídia(s), pela(s) literatura(s), políticas públicas e afins.

Ora se homem tem que ser o “modelo de masculinidade” machista, “oposto” do “feminino”, certamente homem jamais pode engravidar.

Recentemente voltou ao “debate” a questão de homens trans* grávidos, após a notícia de Thomas Beatie ter seu casamento invalidado pelo juiz considerar que “mantinha órgãos internos femininos”. Outra notícia chamou atenção, acerca de um homem que amamentou sua criança.

Beatie engravidou no passado, pois não realizou histerectomia. A revelia dxs médicxs, interrompeu temporariamente a administração de T (testosterona) e levou ao fim uma gravidez.

Se o feminismo se dispõe a desestereotipar os comportamentos ditos masculinos em relação a homens cis, não há porque o transfeminismo não fazer o mesmo; aliás, segue que esse talvez seja um de seus principais objetivos.

Uma afirmação de Beatie é a chave para esse texto, porque desgenerifica os processos e práticas: “Ter um filho não é um desejo masculino ou feminino, é um desejo humano”.

Ora se engravidar fez de Beatie menos homem, o que dizer de mulheres cis estéreis? E as trans* que, até onde sabemos, nunca terão a capacidade de engravidar? Por analogia então são menos mulheres? Porque órgãos internos podem determinar quem “é” ou não de determinado gênero? O gênero não é da ordem do pessoal e do subjetivo? Do sentir e ser conforme identificações pessoais?

Gerar uma criança (ou não gerar) certamente não faz de ninguém mais ou menos homem – ou mulher.

Somos nós quem construímos nossas identidades e construímos também nossos corpos – conforme nossa necessidade ou desejo pessoal – nós trans* sabemos isso muito bem.

Homens trans*: vocês não são menos homens por possuírem seios/moobs/(ou como quiserem se referir a esta morfologia); vocês não são menos homens por não possuírem um falo; ao passo que possuir ou não um falo não faz de ninguém homem ou mulher – eu bem sei disso!

Não há nada de “feminino” ou “masculino” em seus corpos; existe sim uma morfologia lida socialmente como tal, mas não há nada de intrinsecamente masculino ou feminino, não existem “órgãos femininos”. Vocês são homens caso decidam engravidar e continuarão sendo caso não desejem. O que faz de vocês homens, é simplesmente o fato de se identificarem como tal.

Obviamente que não estamos aqui a criticar a necessidade pessoal de alteração corporal, mas sim a mostrar que, com ou sem tal alteração, seu gênero é válido – tão válido quando de um homem cisgênero (não-trans*).

Eu sou uma mulher trans* que escolheu (por ora) não realizar cirurgia genital. Estou certa de que sou mulher, tão mulher quanto qualquer outra mulher, seja ela intersexo, cisgênera, trans*– “operadas” ou não. Meu corpo não me define – eu sou o que sou e tenho orgulho de meu corpo, porque meu corpo me satisfaz e creio que devemos usar esse critério – intimo – e não cairmos nas armadilhas da “satisfação dx outrx”.

O que “satisfaz” sexualmente uma pessoa - me pergunto? Ter um pênis? Certamente que não, senão estaríamos sumariamente ofendendo mulheres cis lésbicas. O que cria essa expectativa cheia de ansiedade para com a satisfação alheia? Parece-me que, na verdade, são a prática, a performance, o cuidar do corpo alheio, os elementos essenciais – aquelas perguntas tão simples mas que fazem uma enorme diferença: “tudo bem?”, “quer que eu pare?”, “posso continuar?”, “você está gostando” – e/ou variações das mesmas, mas que indique o cuidado que devemos ter com o corpo das pessoas, aquele cuidado que é ameaçado sob as alegações do “tamanho é documento”. Se possuir ou não um pênis não é critério de “bom sexo”, certamente que tê-lo maior ou menor também não o é.

Quando deixamos de pensar do bem estar dx outrx sob pretensas alegações que determinadas morfologias irão xs satisfazer mais ou menos? Por que reproduzimos esses estereótipos quando sabemos que uma transa mal cuidada, apática – por maior que seja o tal pênis – pode ser símbolo de frustrações? Quando deixamos de nos comunicar com as pessoas, sinceramente, para que possamos nos entender sexualmente sem falsas sensações?

Homens trans* vocês são homens exceto quando desejarem deixar de se identificar como tal. Vocês são homens independentemente de serem heteros, bis ou gays. Tenho certeza de que são capazes de dar e/ou receber prazer – com ou sem um falo – e qualquer pessoa que disser o contrário não é digna de atenção. Qualquer pessoa que diga o contrário não conhece seu próprio corpo e não deseja conhecer o corpo dxs outrxs. Não merecem nosso respeito, pois não respeitam as identidades trans*.

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Um pouco sobre sexo e sexualidade

Essa postagem tem um caráter mais pessoal.

Ontem eu vi uma imagem que, segundo a discussão que seguiu na comunidade do TF, (caso ainda não conheça, cf. aqui: http://www.facebook.com/groups/transfeminismo/ ) era para ser subversiva.

Mas tudo naquela imagem para mim era triggering, me despertava disforia* e me deixou bastante para baixo.

A imagem era um Ken e uma Barbie, a Barbie ajoelhada simulando início de sexo oral com a legenda “Kd caraio” e na postagem da foto a tag #decepções. Isso tudo porque @s bonec@s não tem genital (quem se lembra de Barbie sabe).

Nem vou discorrer do porque disso ser cissexista, o ponto aqui é outro.

Nós, trans*, somos constantemente associadas com o ilegítimo, não-real, falsidade, engodo, etc. daí termo em inglês como “trap” (armadilha). Especialmente as mulheres trans* - de quem me sinto mais apta a falar, pois sou uma. Além disso, nos espaços psi somos induzidas a esconder nossa sexualidade, nossos desejos; a esconder a existência de nossos genitais, esconder nossos gozos, orgasmos. Eis o resultado da higienização binarista trans*, da assepsia sexual de nossos desejos.

A disforia*, como já disse anteriormente, é uma construção social. Ela é criada a partir desses discursos que visam demonizar e ojerizar o corpo trans*, situá-lo fora do humano e fora do desejável – exceto quando servimos ao machismo fetichista, ou seja, aos “t-lovers”.

Ontem, me senti anormal. Um corpo estranho, uma morfologia grotesca e ao mesmo tempo quis anular minha sexualidade, meus desejos, minha libido. Ontem me senti assexuada¹.

Conversando com um amigo percebi que não tinha do que me envergonhar. Pensei também em como eu poderia pregar empoderamento para as pessoas trans* através desse blog e do conjunto de textos e imagens que espalho, sem me amar. Sem me sentir desejável, sexy, amada. Sem querer gozar e fazer outr@s gozarem.

Somos sujeitos com desejos, como quaisquer outras pessoas. Desejamos e queremos ser desejad@s.

Somos hetero, homo, bi, pan; somos lésbicas e somos gays.

Temos pênis, vulvas, peitos/seios; somos depilad@s ou pelud@s, temos cabelo comprido ou curto, somos alt@s e baix@s, gord@s e magr@s… Temos estrias e celulites – como qualquer outra pessoa. Temos tesão.

Pela liberdade sexual das pessoas trans*, pela liberdade de gozar sem sermos ojerizadas, pela liberdade de desejar e sermos desejadas, pela liberdade de transar com quem quisermos sem sermos hipersexualizadas. Pela liberdade também de nos prostituírmos com segurança.

Sou mulher, sou trans*, sou gorda. Tenho pênis, gosto dele, gozo com ele. Dou, como, chupo, lambo, beijo, abraço, afago – como qualquer outr@.

E NADA do que me falarem irá me fazer odiar meu corpo e meu genital. Meu corpo é lindo e sexy.

Ou como diz o tumblr: FABULOUS FAT


¹ Nota: não confundir com assexual.

- Agradeço aos lymdos Felipe C. Ferrari, Felipe Lima e Júlio Sandes que me ouviram nesses dias, sobre meu desconforto com meu corpo e sexualidade.

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GUEST POST: Por que gosto da cor rosa

Por Leda Ferreira

Olá. Meu nome é Leda Ferreira. Sou uma mulher trans*. E minha cor favorita é rosa. Permita-me contar sobre como descobri isso.

Eu nunca tive afinidade com nenhuma cor em particular. Por muitos anos não soube responder qual era minha cor preferida. Sempre respondia: “nenhuma”, apenas para ouvir réplicas de que todo mundo tem uma cor favorita. Não sei se isso é verdade, mas eu não via nenhuma cor como favorita. Foi somente aos dezoito anos, quando já estava na faculdade, que entendi qual era minha cor favorita. E foi de um jeito bem incomum, imagino.

No início do meu curso foi Sistemas de Informação, comecei a experimentar com o prompt de comando do Windows. Comecei a usar a linha de comando, a aprender seus recursos. E por fim me vi capaz de fazer nela coisas que não podia fazer de outra forma - e através ela aprendi muita coisa que me foi útil depois.

Ainda nos meus primeiros dias experimentando com a linha de comando, descobri um comando: COLOR, que ele permitia mudar a cor do terminal. Eu não estava restrita, portanto, a usar um terminal preto com texto branco. Vi a sintaxe do comando, e comecei a experimentar as combinações. E descobri duas combinações que me seduziram naquele instante: COLOR DF e COLOR FD.

“COLOR DF” deixa o terminal rosa, e o texto branco. “COLOR FD” faz o oposto, deixa o terminal branco e o texto rosa. Nenhuma outra combinação de cor de fundo e cor de texto me agradou mais que essas duas. Num primeiro momento não sabia qual era a melhor, mas em pouco tempo descobri que a segunda é mais tolerável aos meus olhos, quando se trabalha em frente a um terminal por muito tempo. Na primeira combinação, o rosa predomina e dificulta a leitura do texto branco. Na segunda combinação, no entanto, o rosa é delicado, suave. Deixa a tela bonita, e se harmoniza com o fundo branco. O contraste é suficiente para a leitura confortável.

E foi assim que, após uma infância e uma adolescência sem sentir nenhuma afinidade por cores, descobri que eu - que, àquela altura, ainda me via como homem (ou tentava) - gosto de rosa. A experiência de descobrir que tenho uma cor preferida tão tarde na minha vida teve um certo impacto em mim. Tanto que ainda me lembro de como me senti naquele momento. Simplesmente descobri uma pequena coisa sobre mim mesma que até então não sabia: que minha cor preferida era rosa. A minha segunda reação foi: “tá bom, eu gosto de rosa. Agora, o que eu faço com essa informação? Sou homem, não posso ter nada rosa. De que me adianta ter uma cor preferida?”

Curiosamente, descobrir que rosa é minha cor preferida me trouxe a necessidade de eleger outra cor como preferida - necessidade que até então eu não tinha sentido. Como já disse acima, sempre tinha dito que não gostava de cor nenhuma. Pois a partir daquele dia, eu tinha uma outra cor preferida: preto. Fatos na minha vida me levaram a tentar passar uma imagem sombria, mórbida. Queria que outros me encarassem dessa forma. E na minha cabeça, ter preto como cor preferida ajudava nesse intento.

Avancemos alguns anos. Após um longo caminho, me aceito como mulher transexual e inicio minha transição. Senti essa necessidade, a de alterar meu corpo para melhor refletir o que sou por dentro. E, entre outras coisas que até então não aceitava, pude finalmente reconhecer - e externar publicamente - que minha cor favorita é rosa. E comecei por comprar uma mochila feminina, rosinha. Também comprei um par de sapatos femininos lilás e um par de tênis femininos nas cores preta e roxo, decorado com motivos florais prateados. Eu gosto de todas as cores desse gradiente, que varia entre rosa e violeta.

Dias atrás eu voltei do trabalho, entrei no quarto em que durmo e descobri que a roupa de cama tinha sido trocada. A cama estava com uma colcha rosa, decorada por cima com padrões geométricos num tom diferente de rosa, e aos lados por roxo com motivos florais brancos em relevo. A fronha dos travesseiros também era rosa. E naquele momento me senti invadida pela mesma sensação de quando descobri que rosa é minha cor favorita, anos antes. Naquele momento, soube o motivo de rosa ser minha cor preferida.

Uma vez estava assistindo a um “documentário” no Discovery Channel, que dizia que o cérebro dos seres humanos se adaptou para considerar verde como a cor mais “repousante”, e que esse seria o motivo pelo qual achamos jardins e parques bonitos, por exemplo. Isso foi antes de eu ir para a faculdade. E mais uma vez, não me identifiquei com isso. Eu nunca vi verde como cor repousante. Vi mais como cor selvagem. E quanto mais escura, mais selvagem. Verde trás à minha mente a ideia da luta eterna pela sobrevivência. Pode até ser que toda a humanidade exceto eu veja o verde como cor repousante, mas certamente eu não vejo.

Para mim, rosa é a cor mais repousante. Ela inunda minha mente com paz e tranquilidade. Traz à minha mente a ideia de leveza, de delicadeza, de cuidado. Mesmo durante a infância, anos antes de admitir que essa é minha cor favorita, eu já dormia melhor com lençóis e colchas rosas. A cor contribuía para meu sono, descanso e paz interna de forma que cor nenhuma tinha feito.

Então, a conclusão disso tudo é: minha cor preferida é rosa porque para mim é a cor mais repousante. O que foi? Achou que o motivo de rosa ser minha cor favorita é porque é considerada uma cor “feminina”, e eu me descobri como mulher transexual? Não. Uma coisa não tem nada a ver com outra. Não há nenhum motivo lógico para o gênero feminino estar ligado à cor rosa do que a construção social, pura e simples. A ideia de que rosa está ligado à feminilidade foi o que me levou, por tanto tempo, a ocultar de mim mesma a verdade simples e irrelevante de que gosto de rosa. Deixar de negar minha feminilidade, e ao invés disso, abraçá-la, tornou desnecessário ocultar isso. Entretanto, não passei a gostar de rosa por me assumir como mulher. Nem foi gostar de rosa que me levou a me questionar e chegar à conclusão de que sou transexual.

Similarmente, eu gostava de brincar de bonecas e de casinha com outras meninas na infância. Preferia isso às brincadeiras de contato com meninos. Alguns profissionais consideram isso como um possível indicador de uma mulher transexual na sua infância. Mas eu pessoalmente não acredito que brincar de bonecas na infância necessariamente vá tornar um menino uma mulher transexual, e nem gay. Acredito que os meninos brincarem de boneca e casinha na infância pode contribuir para que se tornem bons pais.

Eu gostava de brincar de bonecas e casinha na infância, me descobri uma mulher trans* na vida adulta e sou feminina. Mas, é apenas uma coincidência que na sociedade em que vivemos, brincadeiras como casinha e bonecas são consideradas femininas. Não foi brincar de bonecas e casinha na infância que fez de mim uma mulher. Foi a minha identificação latente com o gênero feminino que o fez. Da mesma forma que uma mulher ter maior identificação com esportes de contato e a cor azul não a torna menos feminina, os aspectos da minha personalidade que expliquei acima não me tornam mais feminina em relação aos homens, por exemplo.

Se a sociedade fosse o oposto do que vemos, e bonecas fossem brincadeira de homens, argumentariam que não sou transexual dizendo que eu gostava de bonecas na infância: “você não pode ser mulher, porque brincava de bonecas na infância, como qualquer homem. Se você fosse mulher, teria brincado de luta, de futebol, de carrinhos”. E muitas pessoas trans* hoje em dia passam por algo similar. São submetidas a esse mesmo tipo de questionamento, ao buscarem o atendimento que sentem que precisam: estão usando as brincadeiras de infância delas como argumento contrário à identidade de gênero que elas manifestam, para negar a estas pessoas o direito de expressar seu gênero da forma que consideram melhor. Esse tratamento que está sendo dado a quem não se encaixa no que a sociedade espera dos gêneros, ignorando o que estas mesmas pessoas dizem e pensam sobre se mesmas, é cissexista, injusto e tem que acabar. E não participar da luta pelo fim desses preconceitos seria trair o que eu sou.

Bom, acho que expliquei porque gosto de rosa, não é? Beijão.

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Breve nota sobre o VI congresso ABEH

Ocorreu em Salvador-BA na semana passada o VI congresso ABEH, o qual eu participei como ouvinte.

Vári@s teóric@s reconhecid@s participaram do congresso, que tinha a temática “Memórias, rumos e perspectivas dos estudos sobre a diversidade sexual e de gênero no Brasil”.

Farei apenas alguns breves comentários (que talvez sejam mais um desabafo) sobre o congresso, pois pretendo discorrer detalhadamente em outra postagem.

Apesar de o congresso ter separado uma mesa específica para discutir a despatologização das identidades trans*, a apresentação a Associação Brasileira de Homens Trans foi bastante fraca. Suspeito que essa nova associação seja um FTM Brasil institucionalizado - o que é bastante problemático.

Novamente contamos com Berenice Bento com sua fala energética e de certo modo muito empoderadora para tomar as “rédeas” da luta pela despatologização das identidades trans* - a qual segundo a colocação de Bento trata-se na verdade da despatologização do gênero, pois a classificação do DSM patologiza as expressões de gênero não cisgêneras - por conseguinte o gênero em si.

As duas falas de Bento foram muito poderosas - e eu simpatizo muito com ela. Mas até quando vamos depender da “boa vontade” de teóric@s cis, torcendo para que “acertem” (a revelia dos termos biologizantes que Bento utiliza sempre – sua única incoerência discursiva) na busca da humanização das pessoas que vivenciam a experiência não cisgênera?

Como lidar com pessoas trans* que reproduzem os discursos hegemônicos biologizantes ciscêntricos de gênero, que tanto prejudicam pessoas
trans*e cis?

Por que a colonização do “campo trans* do saber” continua reproduzindo discursos demasiadamente senso comum revestidos de ciência, mesmo em um congresso que procura desconstruir essas noções? Por que permanecem acríticos? Por que o assunto trans* permanece como “novidade” no Brasil e consequentemente nós não avançamos nas discussões promovidas pela própria teoria queer – a qual muit@s no congresso alegaram evocar?

Existe uma masturbação intelectual da “temática” identidades trans* - a exotificação e colonização pela academia ainda transmite a impressão de que o assunto é muito recente, mas sabemos que tem pelo menos 2 décadas – marco d@s teóric@s queer que impulsionaram os estudos sobre “pós-gênero” e identidades não-cisgêneras.

Parece-me também que existe uma disparidade entre discurso e prática.

Dentre discursos muito “libertários” de gênero, fui questionada sobre minha condição trans* por pessoas semi-desconhecidas. “O que isso importa” diziam uns, para logo em seguida questionarem se eu era cis ou trans*.

Dentro o lócus acadêmico, envolvidos pelo cosmo teórico, as pessoas possuem discursos libertários e progressistas, apontam e criticam várias problematizações sociais, mas fora desse contexto – na rua, em casa, no bar, enfim em seu dia-a-dia, repetem os mesmos discursos discriminatórios que criticaram anteriormente.

A prática está isenta de autocrítica, ou melhor, isenta de critica em sua totalidade.

Como esperamos reverter os discursos discriminatórios, se em 20 min. de apresentação somos muito críticos – mas em todas as outras horas do dia usamos expressões cissexistas, homo/bi/lésbofóbicas, racistas, ableístas, especistas, machistas, xenofóbicas, classistas e etc., arbitrariamente, como se nessas horas o discurso estivesse livre de seu poder reprodutivo/violento?

Talvez a academia precise criticar menos a sociedade e passar a se auto-criticar.

Viver é eternamente proferir discursos discriminatórios, tudo o que falamos e fazemos influi ou influirá negativamente na vida de outras pessoas – a eterna auto-vigilância é o preço do “humanismo” e da justiça social, se quisermos de fato ajudar a criar um mundo melhor.


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