Por Leda Ferreira
Olá. Meu nome é Leda Ferreira. Sou uma mulher trans*. E minha cor favorita é rosa. Permita-me contar sobre como descobri isso.
Eu nunca tive afinidade com nenhuma cor em particular. Por muitos anos não soube responder qual era minha cor preferida. Sempre respondia: “nenhuma”, apenas para ouvir réplicas de que todo mundo tem uma cor favorita. Não sei se isso é verdade, mas eu não via nenhuma cor como favorita. Foi somente aos dezoito anos, quando já estava na faculdade, que entendi qual era minha cor favorita. E foi de um jeito bem incomum, imagino.
No início do meu curso foi Sistemas de Informação, comecei a experimentar com o prompt de comando do Windows. Comecei a usar a linha de comando, a aprender seus recursos. E por fim me vi capaz de fazer nela coisas que não podia fazer de outra forma - e através ela aprendi muita coisa que me foi útil depois.
Ainda nos meus primeiros dias experimentando com a linha de comando, descobri um comando: COLOR, que ele permitia mudar a cor do terminal. Eu não estava restrita, portanto, a usar um terminal preto com texto branco. Vi a sintaxe do comando, e comecei a experimentar as combinações. E descobri duas combinações que me seduziram naquele instante: COLOR DF e COLOR FD.
“COLOR DF” deixa o terminal rosa, e o texto branco. “COLOR FD” faz o oposto, deixa o terminal branco e o texto rosa. Nenhuma outra combinação de cor de fundo e cor de texto me agradou mais que essas duas. Num primeiro momento não sabia qual era a melhor, mas em pouco tempo descobri que a segunda é mais tolerável aos meus olhos, quando se trabalha em frente a um terminal por muito tempo. Na primeira combinação, o rosa predomina e dificulta a leitura do texto branco. Na segunda combinação, no entanto, o rosa é delicado, suave. Deixa a tela bonita, e se harmoniza com o fundo branco. O contraste é suficiente para a leitura confortável.
E foi assim que, após uma infância e uma adolescência sem sentir nenhuma afinidade por cores, descobri que eu - que, àquela altura, ainda me via como homem (ou tentava) - gosto de rosa. A experiência de descobrir que tenho uma cor preferida tão tarde na minha vida teve um certo impacto em mim. Tanto que ainda me lembro de como me senti naquele momento. Simplesmente descobri uma pequena coisa sobre mim mesma que até então não sabia: que minha cor preferida era rosa. A minha segunda reação foi: “tá bom, eu gosto de rosa. Agora, o que eu faço com essa informação? Sou homem, não posso ter nada rosa. De que me adianta ter uma cor preferida?”
Curiosamente, descobrir que rosa é minha cor preferida me trouxe a necessidade de eleger outra cor como preferida - necessidade que até então eu não tinha sentido. Como já disse acima, sempre tinha dito que não gostava de cor nenhuma. Pois a partir daquele dia, eu tinha uma outra cor preferida: preto. Fatos na minha vida me levaram a tentar passar uma imagem sombria, mórbida. Queria que outros me encarassem dessa forma. E na minha cabeça, ter preto como cor preferida ajudava nesse intento.
Avancemos alguns anos. Após um longo caminho, me aceito como mulher transexual e inicio minha transição. Senti essa necessidade, a de alterar meu corpo para melhor refletir o que sou por dentro. E, entre outras coisas que até então não aceitava, pude finalmente reconhecer - e externar publicamente - que minha cor favorita é rosa. E comecei por comprar uma mochila feminina, rosinha. Também comprei um par de sapatos femininos lilás e um par de tênis femininos nas cores preta e roxo, decorado com motivos florais prateados. Eu gosto de todas as cores desse gradiente, que varia entre rosa e violeta.
Dias atrás eu voltei do trabalho, entrei no quarto em que durmo e descobri que a roupa de cama tinha sido trocada. A cama estava com uma colcha rosa, decorada por cima com padrões geométricos num tom diferente de rosa, e aos lados por roxo com motivos florais brancos em relevo. A fronha dos travesseiros também era rosa. E naquele momento me senti invadida pela mesma sensação de quando descobri que rosa é minha cor favorita, anos antes. Naquele momento, soube o motivo de rosa ser minha cor preferida.
Uma vez estava assistindo a um “documentário” no Discovery Channel, que dizia que o cérebro dos seres humanos se adaptou para considerar verde como a cor mais “repousante”, e que esse seria o motivo pelo qual achamos jardins e parques bonitos, por exemplo. Isso foi antes de eu ir para a faculdade. E mais uma vez, não me identifiquei com isso. Eu nunca vi verde como cor repousante. Vi mais como cor selvagem. E quanto mais escura, mais selvagem. Verde trás à minha mente a ideia da luta eterna pela sobrevivência. Pode até ser que toda a humanidade exceto eu veja o verde como cor repousante, mas certamente eu não vejo.
Para mim, rosa é a cor mais repousante. Ela inunda minha mente com paz e tranquilidade. Traz à minha mente a ideia de leveza, de delicadeza, de cuidado. Mesmo durante a infância, anos antes de admitir que essa é minha cor favorita, eu já dormia melhor com lençóis e colchas rosas. A cor contribuía para meu sono, descanso e paz interna de forma que cor nenhuma tinha feito.
Então, a conclusão disso tudo é: minha cor preferida é rosa porque para mim é a cor mais repousante. O que foi? Achou que o motivo de rosa ser minha cor favorita é porque é considerada uma cor “feminina”, e eu me descobri como mulher transexual? Não. Uma coisa não tem nada a ver com outra. Não há nenhum motivo lógico para o gênero feminino estar ligado à cor rosa do que a construção social, pura e simples. A ideia de que rosa está ligado à feminilidade foi o que me levou, por tanto tempo, a ocultar de mim mesma a verdade simples e irrelevante de que gosto de rosa. Deixar de negar minha feminilidade, e ao invés disso, abraçá-la, tornou desnecessário ocultar isso. Entretanto, não passei a gostar de rosa por me assumir como mulher. Nem foi gostar de rosa que me levou a me questionar e chegar à conclusão de que sou transexual.
Similarmente, eu gostava de brincar de bonecas e de casinha com outras meninas na infância. Preferia isso às brincadeiras de contato com meninos. Alguns profissionais consideram isso como um possível indicador de uma mulher transexual na sua infância. Mas eu pessoalmente não acredito que brincar de bonecas na infância necessariamente vá tornar um menino uma mulher transexual, e nem gay. Acredito que os meninos brincarem de boneca e casinha na infância pode contribuir para que se tornem bons pais.
Eu gostava de brincar de bonecas e casinha na infância, me descobri uma mulher trans* na vida adulta e sou feminina. Mas, é apenas uma coincidência que na sociedade em que vivemos, brincadeiras como casinha e bonecas são consideradas femininas. Não foi brincar de bonecas e casinha na infância que fez de mim uma mulher. Foi a minha identificação latente com o gênero feminino que o fez. Da mesma forma que uma mulher ter maior identificação com esportes de contato e a cor azul não a torna menos feminina, os aspectos da minha personalidade que expliquei acima não me tornam mais feminina em relação aos homens, por exemplo.
Se a sociedade fosse o oposto do que vemos, e bonecas fossem brincadeira de homens, argumentariam que não sou transexual dizendo que eu gostava de bonecas na infância: “você não pode ser mulher, porque brincava de bonecas na infância, como qualquer homem. Se você fosse mulher, teria brincado de luta, de futebol, de carrinhos”. E muitas pessoas trans* hoje em dia passam por algo similar. São submetidas a esse mesmo tipo de questionamento, ao buscarem o atendimento que sentem que precisam: estão usando as brincadeiras de infância delas como argumento contrário à identidade de gênero que elas manifestam, para negar a estas pessoas o direito de expressar seu gênero da forma que consideram melhor. Esse tratamento que está sendo dado a quem não se encaixa no que a sociedade espera dos gêneros, ignorando o que estas mesmas pessoas dizem e pensam sobre se mesmas, é cissexista, injusto e tem que acabar. E não participar da luta pelo fim desses preconceitos seria trair o que eu sou.
Bom, acho que expliquei porque gosto de rosa, não é? Beijão.