Um pouco acerca das identidades trans* masculinas

[Aviso: alguns dos links contém linguagem cissexista, porém foram escolhidos por estarem em língua portuguesa].

O feminismo, pelo menos as correntes mais ativas, sempre se propôs a desestereotipar o gênero tanto o lido como “masculino”, como o “feminino”. Aspas porque o feminino e masculino são tão relativos, que já nem mesmo eu sei a que exatamente me refiro quando os evoco – talvez às idéias já preconcebidas do gênero.

Por exemplo, o feminismo lutou (luta) contra um modelo de masculinidade que cerceia a liberdade do homem cis em seus aspectos sociais e que produz e reproduz as bases do machismo. Como disse Berenice Bento certa vez “nem mesmo na lógica mais heterossexista do mundo: se vai ter um filho, o homem não pode ser preparado para tal?” (citação de cabeça). O machismo afeta também os homens, como sabemos: Homem não chora, não demonstra emotividade, porque afinal homem é “racional”; homem tem que ser “pegador”, exalar testosterona; e todos aqueles estereótipos que conhecemos – tão “bem” reproduzidos por aí, pela(s) mídia(s), pela(s) literatura(s), políticas públicas e afins.

Ora se homem tem que ser o “modelo de masculinidade” machista, “oposto” do “feminino”, certamente homem jamais pode engravidar.

Recentemente voltou ao “debate” a questão de homens trans* grávidos, após a notícia de Thomas Beatie ter seu casamento invalidado pelo juiz considerar que “mantinha órgãos internos femininos”. Outra notícia chamou atenção, acerca de um homem que amamentou sua criança.

Beatie engravidou no passado, pois não realizou histerectomia. A revelia dxs médicxs, interrompeu temporariamente a administração de T (testosterona) e levou ao fim uma gravidez.

Se o feminismo se dispõe a desestereotipar os comportamentos ditos masculinos em relação a homens cis, não há porque o transfeminismo não fazer o mesmo; aliás, segue que esse talvez seja um de seus principais objetivos.

Uma afirmação de Beatie é a chave para esse texto, porque desgenerifica os processos e práticas: “Ter um filho não é um desejo masculino ou feminino, é um desejo humano”.

Ora se engravidar fez de Beatie menos homem, o que dizer de mulheres cis estéreis? E as trans* que, até onde sabemos, nunca terão a capacidade de engravidar? Por analogia então são menos mulheres? Porque órgãos internos podem determinar quem “é” ou não de determinado gênero? O gênero não é da ordem do pessoal e do subjetivo? Do sentir e ser conforme identificações pessoais?

Gerar uma criança (ou não gerar) certamente não faz de ninguém mais ou menos homem – ou mulher.

Somos nós quem construímos nossas identidades e construímos também nossos corpos – conforme nossa necessidade ou desejo pessoal – nós trans* sabemos isso muito bem.

Homens trans*: vocês não são menos homens por possuírem seios/moobs/(ou como quiserem se referir a esta morfologia); vocês não são menos homens por não possuírem um falo; ao passo que possuir ou não um falo não faz de ninguém homem ou mulher – eu bem sei disso!

Não há nada de “feminino” ou “masculino” em seus corpos; existe sim uma morfologia lida socialmente como tal, mas não há nada de intrinsecamente masculino ou feminino, não existem “órgãos femininos”. Vocês são homens caso decidam engravidar e continuarão sendo caso não desejem. O que faz de vocês homens, é simplesmente o fato de se identificarem como tal.

Obviamente que não estamos aqui a criticar a necessidade pessoal de alteração corporal, mas sim a mostrar que, com ou sem tal alteração, seu gênero é válido – tão válido quando de um homem cisgênero (não-trans*).

Eu sou uma mulher trans* que escolheu (por ora) não realizar cirurgia genital. Estou certa de que sou mulher, tão mulher quanto qualquer outra mulher, seja ela intersexo, cisgênera, trans*– “operadas” ou não. Meu corpo não me define – eu sou o que sou e tenho orgulho de meu corpo, porque meu corpo me satisfaz e creio que devemos usar esse critério – intimo – e não cairmos nas armadilhas da “satisfação dx outrx”.

O que “satisfaz” sexualmente uma pessoa - me pergunto? Ter um pênis? Certamente que não, senão estaríamos sumariamente ofendendo mulheres cis lésbicas. O que cria essa expectativa cheia de ansiedade para com a satisfação alheia? Parece-me que, na verdade, são a prática, a performance, o cuidar do corpo alheio, os elementos essenciais – aquelas perguntas tão simples mas que fazem uma enorme diferença: “tudo bem?”, “quer que eu pare?”, “posso continuar?”, “você está gostando” – e/ou variações das mesmas, mas que indique o cuidado que devemos ter com o corpo das pessoas, aquele cuidado que é ameaçado sob as alegações do “tamanho é documento”. Se possuir ou não um pênis não é critério de “bom sexo”, certamente que tê-lo maior ou menor também não o é.

Quando deixamos de pensar do bem estar dx outrx sob pretensas alegações que determinadas morfologias irão xs satisfazer mais ou menos? Por que reproduzimos esses estereótipos quando sabemos que uma transa mal cuidada, apática – por maior que seja o tal pênis – pode ser símbolo de frustrações? Quando deixamos de nos comunicar com as pessoas, sinceramente, para que possamos nos entender sexualmente sem falsas sensações?

Homens trans* vocês são homens exceto quando desejarem deixar de se identificar como tal. Vocês são homens independentemente de serem heteros, bis ou gays. Tenho certeza de que são capazes de dar e/ou receber prazer – com ou sem um falo – e qualquer pessoa que disser o contrário não é digna de atenção. Qualquer pessoa que diga o contrário não conhece seu próprio corpo e não deseja conhecer o corpo dxs outrxs. Não merecem nosso respeito, pois não respeitam as identidades trans*.

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Arquivado em Cissexismo, Reflexões, Trans*

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