Ontem eu quis ter uma vagina.
Hoje não quero mais.
Ontem eu achava meus peitos pequenos.
Hoje não acho mais.
Ontem eu achava que não tinha curvas.
Hoje não acho mais.
Ontem eu tinha obsessão por depilação a laser no corpo todo.
Hoje, não tenho mais.
Ano passado, eu imaginava ter uma vagina enquanto fazia sexo.
Esse ano, não imagino mais.
O “ontem” e “hoje” são metáforas para indicar não só passado e presente, antes/depois, mas “em um momento” e “em outro”.
Sou Travesti? Sou Transexual? Sou Transgênero?
Meu nome é Hailey Kaas e quem lê este blog provavelmente me conhece ou talvez já ouviu falar.
Em 2010, eu iniciei o programa do Centro de Referência e Treinamento (CRT DST/AIDS) o qual inclui dois anos de acompanhamento psicológico + terapia hormonal, culminando na entrada da fila do SUS para realizar a CRS – Cirurgia de Redesignação Sexual.
Até então, por mais “confusa” que eu estivesse, sempre acreditei que o acompanhamento psicológico iria me ajudar a compreender se eu “queria” ou não realizar a CRS, muito embora na época eu estivesse certa de que queria. Então, em um fatídico dia no ciclo de debates que antecede a parada LGBT de São Paulo, ouvi pela 2ª vez Berenice Bento falar (a primeira havia sido em 2008, no IV Congresso ABEH). Bento explicou como os processos de legitimação das identidades trans* adotados pelo estado – o programa todo que culmina na cirurgia juntamente com as exigências do laudo (e às vezes da CRS) para se alterar o prenome ou o sexo nos documentos – direcionavam pessoas trans* que não se identificavam com a narrativa tradicional medicalizada da transsexualidade a de certa forma mentir e/ou modificar suas narrativas para se submeterem a todo processo, com o objetivo de obter o laudo e com isso garantir uma “melhor posição” na sociedade.
Nesse dia percebi que era exatamente isso o que eu estava fazendo. Reuni coragem e comentei publicamente com Bento sobre isso logo após o fim da palestra, no tempo reservado para as perguntas - e essa foi a primeira vez que eu assumi publicamente que eu não me encaixava nesse modelo de narrativa tradicional.
Outro dia, um sujeito da área médica com quem discuti no FB me disse que essa (minha) narrativa, então, era a característica do que se categoriza como travesti.
Mas ai é que está o problema disso, esses sentimentos não são fixos, tampouco estáveis.
Explico: Durante esse ano, já desejei ter seios grandes; depois não mais; depois novamente; já desejei ter uma vagina sem abdicar do meu pênis; depois não mais; depois novamente; já quis interromper os hormônios – e interrompi por falta de dinheiro – e adorei minha libido ter subido bastante, detestei ganhar novamente pelos na parte do colo abaixo do pescoço; voltei a tomar hormônios; quero parar de novo; não posso porque preciso fazer os exames hormonais que vão me garantir a carta da endocrinologista.
E se eu quiser tomar T injetando como fez Preciado? E se não gostar e resolver dobrar a dose de E? Devo colocar silicone? Devo realizar CRS? E o tal “arrependimento”, como fica dentro da narrativa tradicional do arrependimento, se eu gosto de ambos os órgãos? Não tenho nojo/aversão por pênis; não tenho nojo/aversão por vulva/vagina. Supondo que eu tivesse uma vulva, eu seria feliz. Eu tenho um pênis e sou feliz. Ou não. Talvez eu fosse infeliz; talvez daqui a alguns anos eu passe a detestar meu pênis. Mas esses sentimentos são inerentes ao sujeito? Nenhum discurso existe em um vácuo. Se assim o fosse, não precisaríamos lutar contra homofobia, transfobia, machismo, racismo etc., porque esses discursos não afetariam ninguém e consequentemente não haveria contra o que lutar, posto que esses fenômenos seriam casos isolados e não institucionalizados, como sabemos que é.
Mas tem dias que não sou feliz. São naqueles dias que o desprivilegio de ser trans* ataca com tudo. Essa semana, falando com um amigo próximo, relatei que eu odiava ser trans*. Isso mesmo: tem dias que eu odeio ser trans*. Sabe por quê? Porque sou carente e hiper insegura e nunca sei se as pessoas com quem me relaciono estão comigo pelo meu corpo (em forma de fetiche) ou porque gostam realmente de mim. Odeio ser tratada como menos interessante, porque não tenho uma genitália “regulada” com meu gênero de acordo com o pensamento cisgênero.
Isso, inclusive, é um prato cheio para relacionamentos abusivos. Pessoas trans* têm uma auto-estima, em geral, muito mais baixa do que pessoas cisgêneras. Isso faz com que estejamos altamente vulneráveis a relacionamentos abusivos. Esses dias, li no tumblr de um cara trans* falando que temos que eliminar esse pensamento que pessoas cisgêneras estão nos fazendo grande favor em se relacionar conosco e que não vamos encontrar mais ninguém que nos aceite. Não são incomuns os relatos de relacionamentos abusivos, especialmente de mulheres trans* com homens cis. Nossa auto estima é tão baixa, que aceitamos nos submeter a coisas que normalmente não nos submeteríamos, com medo do “e se ninguém mais me quiser”. Já aconteceu comigo algumas vezes, mas isso será assunto para outra postagem.
As narrativas que eu ouvi (e ouço) sobre a CRS, em grande parte evocam um desses motivos - conforto no sexo/relacionamento com outra pessoa, geralmente cisgênera - como principal e/ou de grande importância para a cirurgia. Em segundo lugar, vem o conforto de viver na sociedade sem discriminação. Quando questionadas, essas pessoas correm para embasar suas narrativas nas histórias tradicionais infantis de sofrimento psíquico disfórico* com seus corpos.
Isso quer dizer que todxs mentem ou estão erradas? Não. Quer dizer que há muito mais nas experiências de gênero do que um conjunto de suposições (pseudo)científicas a cerca do que é a transsexualidade – e certamente há muito mais na transsexualidade do que as narrativas tradicionais de sofrimento.
Aqui não se trata de negar a disforia*, mas sim de problematizá-la, localizá-la e intersecciona-la.
Alguns já me inquiriram desrespeitosamente, dizendo que eu tenho privilégio porque não sinto disforia*. Mas quem disse que não sinto? Como acham que é ter microseios e se relacionar com alguém que tem obsessão por peitos grandes e que repetia isso (quase) todo dia (como aconteceu recentemente)? Como faço para me sentir desejável em uma sociedade que repetidamente veicula uma imagem de mulher que para os padrões cisgêneros já é inexistente? O “corpo cisgênero” é exaltado em nossa sociedade. Não existem discursos que glorifiquem “corpos transgêneros” – e por “corpos transgêneros” entendam corpos que não mantém congruência com as morfologias legitimadas socialmente.
Parece-me que isso não é algo só da ordem do gênero.
Eu peso 115kgs. Ontem após o banho, me olhei no espelho (eu tenho um bem grande no quarto) e me achei fabulosa!
Hoje, não mais.
Todas as roupas que acho bonitas e tenho dinheiro para comprar não me servem. Quando eu pesava 70kgs – 7 anos atrás – M não me servia porque meu tronco/ombro era grande demais e as blusinhas ficavam curtas na cintura. Aos meus 18 anos, mais ou menos com 80kgs, eu calçava 39/40 sem problemas. Hoje, com 23 e 115kgs, perdi meus sapatos e preciso usar 42 (e as vezes 43).
Hoje quero emagrecer o suficiente para comprar roupas sem problemas. O que me reserva amanhã?
Por que existe em minha vida, essa montanha-russa de desejos e sentimentos que ora pendem para narrativa tradicional considerada legítima da transsexualidade e ora negam completamente em oposição?
Esse ano, no advento desse blog (que nasceu no final de 2011, mas só passou a ser relativamente ativo esse ano) juntamente com a criação da(s) comunidade(s) no FB, recebi muitas mensagens de pessoas dizendo se sentir em situações semelhantes -em uma espécie de limbo de gênero; um aparente beco sem saída; um impasse. Por que isso acontece?
Minha resposta seria: porque gênero não é, como se pensa, uma categoria estável. Aquelas pessoas que tentam capturar a subjetividade do gênero através de SOC’s, CID’s, DSM’s, ou repetindo os discursos hegemônicos sobre transsexualidade (mumificados pela psicologia…) sempre estarão fadadas ao fracasso. Não há aqui receita ou fórmula mágica. Gênero é o terreno do incerto, do incoerente, do descentro, das múltiplas identificações e similaridades e muitas vezes, das impossibilidades. Da(s) disforia(s)*, sim, mas também da auto-aceitação e do amor ao próprio corpo. Inclusive, quando afirmo que gênero é instável, incluo aqui pessoas cisgêneras. Nenhuma identidade é estável.
As narrativas tradicionais sobre a transsexualidade existem. Mas não só. Para elas, existem os documentos oficiais e as teses tradicionais. Para elas e todas as outras narrativas, existe o Transfeminismo.
Não existe narrativa legitima. Existem narrativas.
*Ressalto que a “disforia” aqui é colocada de acordo com o conjunto de preceitos médicos que visam definir disforia; ou seja, o termo disforia* é uma alusão aos conceitos médicos e não deve ser tomado como absoluto, pelo contrário, deve ser sempre questionado.