Às vésperas do Natal, nós trans* sabemos como é extremamente complicada a relação com nossa família, e devido às festas, muitxs temos que reencontrar nossa família. Seja por obrigação social ou porque queremos viver harmoniosamente, o fato é que a maioria sabe que são poucas as famílias que realmente compreendem e procuram nos tratar pelos pronomes corretos. De qualquer forma, encontros familiares no geral sempre nos rendem alguma pérola transfóbica e/ou no mínimo, alguma situação constrangedora. Infelizmente esse tipo de situação só nos deixa mais ansiosxs e nervosxs. Pedi para que pessoas trans* me enviassem relatos que tivessem relação com a época das Festas, ou simplesmente relação com como cada família lida com nossa transexualidade.
O primeiro relato é de uma pessoa que prefere manter-se no anonimato, e chama-se “Saindo do Armário 2.0″.
Houve um dia que não dormi direito. Foi anteontem, eu acho. Digo que acho porque ainda sinto o momento bem dentro de mim. Levantei sem ter deitado, fui pra cozinha e fiz café. Minha mãe sentou a mesa e nos pomos a desembaraçar o passado; O assunto acabou chegando bem perto do meu jeito e como consequência, da minha sexualidade. Minha avó acordou também e foi tomar seu café da manha, se sentando a minha frente. Achei que o circo tava armado. O melhor seria levantar e sair de fininho enquanto eu ainda possuía minha sanidade e todos meus membros estavam colados ao corpo.
Mas então minha avó me perguntou se eu seria capaz de sair com uma crente que ligou para nossa casa com o intuito de “me ajudar”. A perguntar era certeira. Aquele sair não era sobre igreja, ou um passeio. Mas sair. Eu disse que sim.
Ela entendeu, disse que não esperava por aquilo, mas entendeu. E ela tem 74 anos.
Prosseguindo com o rol de perguntas que minha avó começara eu perguntei para minha mãe se ela não se importava, se ela entendia. Ela disse que uma mãe jamais abandona o filho, haja o que houver. Engraçado que na primeira tentativa havia sido uma tempestade. Mas também houve meias palavras. Meias confissões. Quando numa manhã de sábado resolvemos por todas as cartas na mesa foi Full House!
Bom, as duas pessoas mais importantes na minha vida me compreendem, ou tentam compreender da maneira delas. No mesmo dia minha avó fez uma torta pra mim. De frango. Com requeijão.
Bom, me sinto bem melhor.
Engraçado pensar que as pessoas mais velhas na minha família foram as que aceitaram com mais serenidade. Agora estou com os dois pés balançando pra fora do armário. Mas agora o negocio é comigo. Devo encher os pulmões para dizer quem sou e não desconversar quando alguém toca no assunto. Não há mais motivo para temer tocar os pés no chão.
Meu natal tem potencial para ser um dos melhores da minha vida. Terá tios e tias chatos e bêbados? Parentes provocadores? Pode até ter. Mas não estou mais sozinho. Vou beber e comer muito. Assistir algum especial fajuto de natal e quem sabe começar um concurso de piadas de mau gosto. Enfim, comemorar o nascimento de Jesus com toda a pompa que o interior é capaz, apesar de seu nome ser usado o ano todo para justificar homofobia e transfobia. No entanto, não consigo deixar de imaginar um Jesus totalmente oposto ao que os cristãos fundamentalistas tentaram me empurrar. Um Jesus que estaria muito mais interessado em se sentar a uma mesa com pessoas como eu, transmitindo amor,sorrindo,tomando muito vinho, cerveja e multiplicando e repartindo o tender. Talvez até contanto piadas de corintianos. Mas não se preocupe, Jesus também sabe contar piadas sobre são-paulinos, palmeirenses e qualquer time que você pedir. Ele, na realidade, é gente boa.