Seguindo as postagens de cunho pessoal, muitas delas motivadas pela época de Festas, Helena Brito nos escreveu este relato. Nessa época, geralmente estamos mais vulneráveis, pois muitxs somos obrigadxs a lidar com nossas famílias que nem sempre nos recebem de braços abertos.
Minha identidade ficou perdida num limbo durante 25 anos, vivi como gay porque foi mais fácil para expor a sociedade, é mais bem aceito, pelo menos na minha família e no meio que frequento. Mas e quando você chega em um ponto que não acredita em nada da sua vida? Que olha para trás e vê um rastro de coisas inacabadas? Que nada que fez ao longo de sua vida parece ter a sua assinatura? Que não se vê?
Pois bem assim me encontrei no aniversário de 25 anos e uma frase que ressoava na minha cabeça: “e se você deixar mais para frente e se arrepender disso?”. Quanto tempo mais viveria assim?
E aí decidi enfrentar a situação, comecei aos poucos a revelar para alguns amigos próximos, família não nesse momento, não é a hora, precisarei estar com a cabeça 100% para poder sentar e abrir o jogo, apesar de já desconfiarem, não saberei as suas reações.
Ainda não saio como mulher, não acho propício o momento, uma peça ou outra, um pouco de maquiagem para aliviar a pressão interna e nada mais. Terei que ser paciente, terei que ser forte.
Tem dias que me olho no espelho e não me enxergo, parece que sou outra pessoa, ou que habito um outro corpo dentro do meu corpo; tem dias que tomo banho e me acho a mulher mais linda que conheço (mas ainda esses dias são poucos). Isso é a Disforia de Gênero, é só um nome para um misto de sentimentos que nos abatem, talvez uma tentativa de me patologizar e me enquadrar em algo, mas isso vai passar.
Uma outra questão é o fato de ser soropositiva para HIV, a condição de ser soropositiva te lança em um espécie de sobrevida, como se fosse uma cidadã de 2º grau, muitos ao saberem disso vão julgar achando mil coisas sobre você, sua vida, o que te levou até isso, e não ligando para os seus sentimentos. Vou ter que me fazer forte acima disso também.
Tudo isso irei enfrentar, as vezes enxergo o real significado da frase “a ignorância é uma benção”, mas nem tudo será tristeza, os amigos mais importantes, mais uma vez provaram o valor da amizade, todos me apoiam e me querem feliz.
Dei o primeiro passo: fui ao ambulatório de saúde integral para transexuais e travestis dentro do CRT. Quero fazer tudo certo, quero fazer direito com acompanhamento médico e tudo aquilo que tenho direito, porém foi um dia tenso, foi como ultrapassar uma barreira que talvez não só o mundo, mas também eu me impus: que tenho que aceitar o que os outros acham quem eu sou, que viveria como gay ao longo da vida e isso bastaria. Teve momentos ontem que por pouco não voltei para a minha cama e me enfiei nos meus travesseiros para me proteger de tudo. Mas não voltei, segui em frente e marquei a minha primeira consulta, porém só em Março, a procura lá é maior do que esperavam, não estou sozinha.
E aí eu volto a questão: minha identidade. Quem eu sou? Sou Helena, nasci forte e com 25 anos já de luta e preparo para isso, terão momentos que me sentirei no lodo, mas não serão todos, vou lutar, continuarei a estudar, vou me forçar e vou vencer. Sou mulher, e agora mais do que nunca.
Helena Brito
Lendo os textos de Hailey Kaas e outros depoimentos na página transfeminismo.com eu consigo identificar o quanto também tenho vivido em uma espécie de limbo nestes últimos anos, ainda que de não tão dificil resolução. Acho que sou uma pessoa cisgênro, ou seja, tenho a genitália regulada com o gênero feminino (se é que dá pra pensar desta forma) que me foi atribuído naquele distante 10 dezembro de 1962 –tempo em que para saber durante a gestação se o neném era menina ou menino, só mesmo pelo formato da barriga, pela lua, alguma simpatia… – e me sinto relativamente confortável quanto este aspecto. Porém o disforia me assalta quanto se trata do transitar em espaços nos quais eu preciso comprovar a minha identidade atual e isto tem me causado alguns transtornos. Para início de conversa, por conta de ter me deparado com situações autoritárias e machistas desde a tenra idade, sempre rejeitei a ideia de um dia me casar. Mas, em meio aos debates e lutas estudantis, fundação do partido dos trabalhadores, teatro, etc…, o casamento aconteceu e o meu problema de identidade veio junto no pacote. Na hora do registro no cartório, a cartorária (me recordo até hoje seu nome – Heloisa) afirmou que eu teria que acrescentar ao meu nome o sobrenome do meu companheiro. Fiquei chateada, eu tinha quase certeza de que não já não precisava mais, perguntei se ela estava certa disso, ela respondeu afirmativamente. Então deixei por isso mesmo, afinal, talvez isto nem fosse tão importante assim, era só eu não usar aquele “apêndice” no final de meu nome. E é o que tenho feito desde então, mas ai a gente se depara com os problemas legais e os desconfortos. Nestes 22 anos de sociedade conjugal, me acompanha uma vontade louca em não abdicar do meu nome. Sempre converso sobre este desconforto com meu companheiro, até fomos juntos buscar solução para isto e, segundo advogados, neste caso só o divórcio. Iniciamos o processo, mas interrompemos devido a questões de partilha, guarda das filhas, etc…, achamos que iria gerar muitos problemas. Então…, continuo assim. Atualmente estou fazendo alguns documentos para ir ao Pedagogia 2013 em Cuba e novamente se apresenta esta questão. O Banco pra fazer o upgrade do meu cartão de crédito pergunta: quem sou eu? A Polícia federal pra fazer o passaporte pergunta quem: sou eu? E eu respondo que eu quero ser Neusa Maria Tavares Portilio e eles me respondem que isto está errado, que eu tenho que mudar meus documentos para o nome de casada. Putz! Que merda esta porra de sociedade calcada na figura masculina, que merda esta cultura machista, as coisas até mudam legalmente, mas demoram demais pra mudar de fato, e a gente vai se deixando levar. E esta é apenas um pequeno ponto, fora o imenso iceberg submerso de desconfortos que a gente encontra no dia a dia, gerados pelo simples fato de sermos mulheres, ainda que branca e cisgênero.
Abraços
Neusa Portilio
Olá Neusa! Essa situação que você relata é realmente uma grande violência, fruto da imposição das convenções do casamento. Ninguém deveria ser obrigadx a abdicar do próprio nome, assim como deveriam poder, se quisessem, alterar o nome. Quanto a ser cisgênero, eu costumo falar que é complexo, porque as identidades são complexas. Sugiro que “ser” cis tem mais haver com políticas de representação e privilégio do que um sentimento interno per se. As identidades não são fixas e nem estão cravadas na pedra. Espero que consiga resolver seu problema com o nome sem grandes dificuldades. :)
O que achei interessante na leitura deste post e suas repostas é a intensidade do sentimento de desadequação dos dois seres humanos que escrevem e como cada um reage no seu dia a dia a esta questão.
Inconformidadecim oadrões que oprimem é sempre um sentimento libertário !
Boa sorte as duas em suas batalhas.