Arquivo do mês: janeiro 2013

Microagressões ou um dia como trans* na sociedade cissexista

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Hailey Kaas

A pessoa X é uma pessoa trans*. Mais especificamente, é uma mulher trans*. Todos os dias, quando acorda, sua primeira dificuldade é em tomar banho e se arrumar para sair. No banho, se vê como algo feio e indesejado; Na hora de escolher suas roupas, não consegue satisfazer-se, pois acredita que nenhuma lhe “cai bem”. Por “cair bem”, a pessoa x sabe que ela espera, mesmo que inconscientemente, que aquela roupa vá lhe garantir o “direito” de ser vista como mulher sem a questionarem ou importunarem. Ela olha seu rosto no espelho e repara, novamente, em como seus pêlos faciais estão aparentes, por mais que tenha passado a lâmina cuidadosamente. Pensa: “preciso juntar dinheiro urgentemente para fazer aquela tal de depilação a laser”.

Ela gosta de maquiagem, mas evita usar. Seu maior medo é ser vista como aquelas personagens do Zorra Total. Por outro lado, deseja avidamente esconder as marcas dos pêlos faciais e algumas curvas que ela considera masculinas.

A pessoa X sai para trabalhar. Na rua, coloca óculos de sol e fones de ouvido. Não quer olhar para as outras pessoas e perceber que estão lhe observando, julgando, criticando, ojerizando. Prefere pensar que não existe ninguém ao redor, e desesperadamente imerge nas músicas que ouve para desligar-se do mundo.

Eventualmente, acaba ouvindo algum xingamento aqui e ali, pois a força do grito ultrapassa a capacidade de abafo dos fones. Entre “traveco” e “bicha”; “que pouca vergonha” e cantadas em forma de piadas transfóbicas, ela pega o transporte público.

Ela trabalha em um Call Center. Lá, atende com o nome civil apesar dos pedidos feitos à administração para que pudesse atender com seu nome correto.

No trabalho, sente vontade de ir ao banheiro. Sabe muito bem que deve segurar, pois não a deixarão utilizar o banheiro feminino, e usar o masculino está fora de cogitação. Segurar a urina não é nada perto da humilhação e medo que tem de ir ao banheiro.

Após o trabalho, ela vai ao banco, uma vez que necessita sacar o valor do aluguel. No caixa, o atendente solicita seu RG; Logo vemos uma risadinha e um “Sr. tal” pronunciado em alto e bom tom na frente de todos.

Volta rapidamente para casa, pois tem medo de andar na rua quando escurece. Lembra bem de conhecidas que foram agredidas em ruas próximas. “Se nem os gays estão seguros naquele bairro chique”, pensa, ao lembrar-se do famigerado caso da lâmpada fluorescente.

Chega em casa e vai correndo ao banheiro. Depois, vê a novela e usa o computador que felizmente conseguiu adquirir depois de juntar algum dinheiro. Participa de grupos trans* e se informa sobre hormônios e cirurgias. Está ansiosa e feliz, pois amanhã irá a sua primeira consulta naquele centro famoso que abriu em São Paulo.

Mal sabe a pessoa X que os médicos do centro a olharão com desdém e com pouca, senão nenhuma preocupação real com sua saúde e bem estar. Em poucos meses ela irá ao tal centro apenas por obrigação e para obter a receita de hormônios (e assim pegar de graça na farmácia).

Antes de ir dormir, pensa, mais uma vez, como irá falar com seus pais sobre essa questão. Não sabe como irão reagir, mas tem quase certeza de que será negativamente.

A pessoa X sou eu, são minhas amigas trans*, são meus amigos trans*, somos todxs.

As situações vividas por muitas pessoas trans*, chamadas aqui de microagressões, ocasionam não raro estresse e depressão. As microagressões concorrem para nos expulsar cotidianamente dos espaços sociais, como se fôssemos um mal a ser extinto. As pessoas que nos maltratam, o fazem com o objetivo consciente ou inconsciente de realizar a assepsia social necessária para se livrarem das pessoas que consideram anormais. Desejam acabar com a “pouca vergonha” desses “sujeitos privilegiados”, como costuma dizer aquele famoso pastor.

Desde no espaço privado, em casa, até nos espaços de socialização, não estamos um minuto sequer em paz.

Por isso, nessa semana da visibilidade trans peço que, ativistas ou não, nos eduquemos sobre as questões trans* - em especial sob a ótica (trans)feminista. Dar um pouco de dignidade, paz e conforto para essas pessoas, significa transformar suas vidas em possíveis, em fazê-las vivíveis e consequentemente, um pouco menos desumanizadas.

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O que o Transfeminismo significa para mim

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Leda Ferreira

Eu ainda me lembro daqueles primeiros meses de pânico silencioso e desespero. Eu tinha me descoberto - e aceitado - como uma mulher transgênera, e minha mente estava cheia de dúvidas sobre como eu faria para transicionar. Como iria arranjar dinheiro para as cirurgias estéticas para me tornar uma mulher bonita. Quanto iria gastar em roupas. Tinha tantas coisas para fazer! Eu não sabia qual fazer primeiro.

Eu precisava começar a poupar dinheiro para fazer a Cirurgia de Readequação Sexual, obter acompanhamento psicológico que me desse laudo de transexualidade, comprar roupas, sapatos, aprender a me maquiar, ter sessões de fono para treinar a voz, etc etc etc. Precisava pensar no futuro. Em como faria para trabalhar e ganhar dinheiro, nessa nova condição em que eu enfrentaria ainda mais preconceito. Havia tantas escolhas para fazer! O caminho a seguir era sombrio e nebuloso.

Assim foram meus primeiros meses após me descobrir trans*. Foram noites sem dormir, angustiada, pensando no futuro, em como eu COMEÇARIA a trabalhar por esses objetivos, sem ter a menor idéia de como começar. Eu não conseguia pensar em outra coisa. Minha mente estava cheia de dúvidas e incertezas: eu conseguiria me hormonizar? Onde arranjaria dinheiro para fazer cirurgias estéticas? Eu realmente queria colocar silicone nos seios, mudar o rosto, fazer implante de cabelo, modelar a cintura e afins. De fato, ainda quero isso tudo exceto modelar a cintura.

Não foi uma época boa. Essa vida de dúvidas e incertezas já bastava para me esmagar. Cada vez que olhava para meu rosto, meu corpo, me odiava cada vez mais. Me via cada vez mais distante do que eu era por dentro. Cada dia era uma possibilidade de suicídio, como forma de terminar esse sofrimento.

Felizmente, entrei em contato com pessoas trans* na internet que me ajudaram a superar isso. O pessoal do Transfeminismo. Aprendi muita coisa com eles. A principal coisa que aprendi, e que me ajudou muito, foi a noção de que TODOS OS CORPOS TRANS* SÃO LINDOS. A noção de body-positive [corpo-positivo], adaptada para a realidade das pessoas transgêneras. A idéia de que o que faz um homem ou uma mulher não é exclusivamente sua anatomia.

Uma das coisas que mais me causava pânico era a idéia de que eu “ainda não era uma mulher”. Graças a essas idéias do Transfeminismo, eu consegui encontrar algum conforto. Entendi que, mesmo durante o tempo em que eu ainda não conseguisse iniciar minha transição, eu era uma mulher, e podia reivindicar esse reconhecimento.

Eu só pude começar a tomar hormônios, e por conta própria, sem acompanhamento, recentemente. Meu corpo está longe de parecer “feminino”, talvez nunca seja lido assim pela sociedade. Enquanto isso não acontece, eu tenho desejos legítimos e genuínos de me identificar como mulher da melhor forma possível, e me engajar nas expressões de gênero que a sociedade aceita como femininas: usar maquiagem, vestidos, sapatos etc. Me envolver em “coisas de mulher”. Enfim.

O fato de eu não fazer nada disso me causava tanto sofrimento quanto o meu corpo. Eu achava que só poderia fazer isso quanto parecesse uma mulher. Tinha medo de, tendo um “corpo masculino”, fazer essas coisas publicamente, e me tornar uma aberração, algo feio e ridículo, motivo de piada. E só tive coragem de fazer isso, e me sentir melhor, após absorver a noção do Transfeminismo de que um homem transexual continua sendo homem, mesmo que mantenha seus seios, e uma mulher transexual continua sendo mulher, mesmo que tenha pênis. Ou voz grossa. Ou seja, careca, como eu sou. Esse pensamento me deu força para, com todos esses atributos físicos, me vestir como mulher pela primeira vez, e passar a viver dessa forma. A trabalhar e sair na rua dessa forma.

Se não fosse pelo Transfeminismo, eu ainda estaria naquela fase de pânico e desespero, me sentindo presa em meu próprio corpo, como se ele me impedisse de ser o que sou. Hoje, posso ser o que sou, mesmo que meu corpo tente ser uma âncora que me impeça de sair do lugar. Eu tenho corpo, voz e resto “de homem”, as pessoas me vêem na rua como uma aberração. Elas nem me lêem como um gay afeminado “pintosinho”, se fosse isso já estaria bom, pois elas estariam, mesmo remotamente, reconhecendo que tudo está vagamente relacionado à minha sexualidade e identidade de gênero. Ao invés disso, elas preferem acreditar que estou sob o efeito de drogas. Ou que sou um maníaco.

Eu espero que algum dia tenha atributos que me permitam ser vista como mulher, ou algo próximo. Pelo menos, algo que as pessoas não precisam temer, uma pessoa inofensiva que só está sendo ela mesma. E só posso ter algum conforto enquanto isso não acontece, por me apegar à noção do Transfeminismo de que todos os corpos trans* são lindos, inclusive o meu. Ele não é como eu quero, e reivindico sim, o direito às mudanças do corpo que sinto que preciso - as que tenho direito por lei, e muitas outras. Porém, ao menos posso ter algum conforto por entender que sou uma mulher, não importa o quanto as pessoas me vejam como uma bizarrice, e meu corpo diga o contrário.

Outra idéia do Transfeminismo que me ajudou muito é a noção de empoderamento das pessoas trans*. Antes, eu acreditava que a única maneira de sensibilizar as pessoas e ter alguma chance de ser aceita seria tentando comover as pessoas contando minha história de pessoa que “nasceu no corpo errado”, e sofre por não ser vista pelas pessoas como uma mulher. Que sofre preconceitos, agressões cotidianas, e que tem mesmo as tarefas mais simples, como ir à padaria próxima, dificultadas ao máximo pelo medo. Com o contato com o Transfeminismo, aprendi que podia lutar para ser aceita, através de outra via: mostrar que, mesmo “incomum”, “esquisita” e “diferente”, eu continuo sim, sendo uma pessoa produtiva, capaz de trabalhar, se sustentar, interagir socialmente, pagar seus impostos, fazer circular a economia por ser consumidora (não paro de pensar nisso toda vez que entro num shopping e vejo os seguranças me rondando), e contribuir para a sociedade em geral.

E hoje só estou aqui, viva e seguindo meu caminho, prosseguindo na minha transição, porque obtive a força para não me matar, através do Transfeminismo, e suas idéias. A “ajuda” que a prática médica e convencional tem a oferecer, em relação às pessoas trans*, não teria me salvado. A face desumanizadora do processo teria me esmagado logo no começo. Eu teria ficado pior.

Eu entendo que cada pessoa trans* tem seu sofrimento distinto, e nem todo mundo pode encontrar tamanho conforto somente em idéias. Algumas pessoas trans* puderam encontrar conforto permanente, e não sentem qualquer necessidade de modificações corporais. Eu não. Preciso disso. Mas ao menos consigo me ver e me sentir mulher AGORA, enquanto não tenho isso, e isso me ajuda a continuar. Não posso falar por nenhuma outra pessoa trans*, muito menos pelos homens trans*, cuja realidade é BEM distinta da minha (por exemplo, eles não têm como se hormonizar por conta própria, ou isso é praticamente impossível. E caro), mas acho que assim como eu, alguns encontraram conforto na idéia de que são homens, mesmo que possam ter seios. Isso não significa que deixaram de sofrer por isso. Esse pequeno alívio não é permanente, e se suas necessidades ficarem sendo adiadas, eles vão se deprimir e possivelmente se matar (assim como eu), mas ao menos tem uma pequena, ínfima, fonte de força e motivação para continuar até que tenham o que precisam.

Então, é isso o que penso. Mesmo as pessoas com disforia mais acentuada, que não poderiam aceitar seus corpos de forma alguma, poderiam ter ALGUM conforto e alívio, por menor que seja, enquanto não obtém acesso aos procedimentos que precisam, por adotarem a postura body-positive do Transfeminismo: mesmo com seios, você é homem, e seu corpo é um lindo corpo masculino. Um dia, seus seios serão removidos, você terá pelos pelo corpo, mas você é um homem HOJE, e seu corpo, mesmo em transição, é lindo. Isso poderia dar a eles alguma motivação para continuar e se manter até o fim do processo. Nem todos conseguiriam se confortar com isso, mas acho que alguns já fizeram isso.

Eu devo muito ao Transfeminismo - um movimento, um conjunto de idéias, que me ajudou tanto. Ele pode não servir para todo mundo, mas isso não desmerece todo o movimento.

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Pensando além da (in)visibilidade

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Bia Pagliarini Bagagli

Mais um dia 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans.

Sinto-me impelida a escrever, nem que seja para desabafar. Afinal, sou trans*, e quem mais habilitadx para falar numa ocasião dessas? Mas afinal de contas, como as pessoas trans* são vistas pela sociedade? Mais importante: essa visão está de acordo com o que elas têm de si mesmas?

A mídia ao mesmo tempo em que constrói, reproduz o que todos nós entendemos sobre transgeneridade, o senso comum a cerca do tema. Não preciso me delongar sobre o quanto esse olhar, majoritariamente, é cis, além de masculino, branco, elitista… Pessoas trans* são retratadas, através desses poderosos meios, cotidianamente por homens brancos cisgêneros abastados que detém esse poder de voz. Será que eles são capazes de terem empatia com essas pessoas? O quanto, assim como um documentarista de vida selvagem observa suas feras, essas criaturas urbanas são tratadas como verdadeiros animais exóticos?

Falar sobre visibilidade trans* é também falar sobre minúcias e não-ditos. Sobre o que, a primeiro momento, parece óbvio, mas a partir de um olhar mais atento pode-se notar o quanto dessas obviedades se firmam em pilares cissexistas e transfóbicas. O teor obviedade é bastante relativo. Até mesmo coisas que para mim são tão escancaradamente transfóbicas, para pessoas cis podem ser mais uma inofensiva naturalidade da vida cotidiana. Seus olhares não foram treinados e nem haveriam de ser. São os olhares trans* que foram treinados a marra, sob constante violência. Isso não quer dizer que é agradável e fácil enxergar certas coisas.

É muito duro saber que nossos corpos são ao mesmo tempo hipersexualizados e ojerizados, e perceber o quanto sofremos na pele disforia e objetificação de nossos corpos impactando em todas as esferas das relações pessoais; duro saber da norma cis que rege as condutas mais aparentemente espontâneas e o quanto percebemos na pele a isolação ou ostracismo pela quais muitas pessoas trans passam; duro saber que se convencionou que documentos, definidos ao nascimento, podem definir seu sexo e nome e o quanto sofremos na pele para corrigi-los, enfrentando não raramente inúmeros percalços judiciais.

São essas vivências dolorosas que passamos que tornam possível um olhar no mínimo diferenciado a cerca dos nossos próprios problemas. Uma pessoa cis realmente pode ter empatia e perceber o quanto essas pessoas sofrem, e o quão é urgente a solução desses problemas na vida das pessoas trans*? Conseguem perceber o que, a princípio, são melindres e sutilezas? Espero que sim, claro, mas infelizmente não é isso que vemos todos os dias. Por isso, é importante que pessoas cis não tentem dizer o que pessoas trans* sofrem ou deixam de sofrer, ou como deveriam se sentir.

Acho relevante, ao falar de visibilidade, tocar na invisibilidade. Pessoas trans* são apagadas dos discursos oficiais das mais variadas formas e nas mais diversas esferas, vou dar um exemplo curioso: bulas de medicamento. Pois é, você pode estar se perguntando qual é a relação entre transfobia e bulas. Bula é um gênero textual que possui um interlocutor, os usuários, a fim de informá-los a cerca da posologia, efeitos colaterais, etc. Muitas pessoas trans* tomam hormônios com o fim de desenvolverem característica associadas ao gênero a que pertencem, não diferente dos homens e mulheres cis que necessitam de terapia de reposição hormonal. Nada mais esperado que se encontre nas bulas o “público alvo” de determinado medicamento: em uma bula de antidepressivos, os usuários possuem depressão, em uma bula de medicamentos para hipertensão, os usuários são hipertensos e por ai vai.

No entanto, não encontramos em nenhuma bula – tanto de antiandrógenos, medicamentos de reposição hormonal e pílulas que contenham hormônios (como os anticoncepcionais) – qualquer referência a pessoas transgêneras. É como se elas simplesmente não existissem, apesar de utilizarem amplamente esses medicamentos. Logo, não precisamos nos importar com a dose e com qual substância elas necessitam, quais são os efeitos colaterais e desejados, qual é a eficácia e os riscos etc. Não precisamos nos importar em como essas pessoas vão obter informação para preservar a saúde. Afinal, elas não existem. Cabe a elas se guiarem por dosagens e corpos cis, adaptando e interpretando em seus corpos, gerando quase que experimentos científicos.

É disso que estou falando quando aponto que o cissexismo e transfobia se materializam em todas as esferas de nossas vidas e estão infiltrados em estruturas tão profundas e inconscientes que podemos achar que é “normal”. Notem que o apagamento das bulas se tratar de uma materialização da transfobia ser um fato pouco óbvio não o faz menos preocupante e menos grave. Cabe a nós revelá-los. Só assim vamos deslocar os sentidos únicos que a sociedade ciscêntrica impõe.

Vamos também dizer não à violência médica que acredita ser capaz de diagnosticar nossas identidades de gênero. Vamos repudiar quem tenta deslegitimar nossa luta, não iremos aceitar que digam que privilégios cis não existem, e que pessoas trans* mereçam servir de escárnio de homens heterossexuais cisgêneros. Dizer que nós nos colocamos em posição de vítima é uma falácia que só corrobora o status quo. É fundamental que as pessoas trans* gritem e mostrem que não irão aturar mais violência. Denunciar a transfobia na sociedade, mostrar que ela existe sim e alertar aqueles que são céticos, são os primeiros passos para que possamos lutar contra ela.

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Por visibilidades trans* multiplicadas, complexificadas, descolonizadas

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Viviane V.

Neste post dedicado ao dia da visibilidade trans*, gostaria de fazer algumas reflexões sobre visibilidade e invisibilidade desde uma perspectiva mais relacionada às vivências pessoais trans*, em vários sentidos derivadas de algumas experiências próprias. Estas reflexões já tomam como dados alguns pressupostos levantados neste importante dia de luta política: a visibilidade trans* do dia 29 de janeiro trata, eminentemente, da luta pela visibilização das demandas políticas trans*, fundamentadas nos princípios de dignidade humana e de autodeterminação, e as reflexões que procuro fazer partem da percepção de que estas demandas são constantemente negligenciadas mundo afora. Neste sentido, o contexto político para pessoas trans* estabelece uma espécie de pano de fundo para estas reflexões de cunho mais pessoal.

Pode-se dizer que muitas pessoas trans* têm de lidar com questões de visibilidade e invisibilidade cotidianamente. Ser visível enquanto pessoa trans* significa, no mais das vezes, ser alvo de ridicularizações, estranhamentos, exotificações e outras violências, fazendo com que a invisibilidade — equivalente ao ‘passar-se como pessoa cisgênera’, ou, em termos mais problemáticos, ao ‘parecer homem ou mulher de verdade’ — acabe se tornando um objetivo muito importante para muitas pessoas trans*.

Estes esforços de invisibilidade — ou ‘passabilidade cis’ — têm diferentes dimensões que representam desafios variados. Tenho passado por vários deles em minha vivência pessoal, que no geral envolvem questões visuais e estéticas — formas corporais, vestimentas, expressões ‘generificadas’, i.e., às quais se atribuem gêneros -, sonoras — tom, timbre, vocabulário — ou institucionais — documentação, acesso a recursos, entre diversas outras. Estas questões podem definir, em diferentes situações e temporalidades, a diferença entre o respeito enquanto pessoa humana e a desconsideração plena de uma parte imanente à nossa humanidade pessoal — a identidade de gênero.

Ilustro brevemente o significado destas dificuldades em lidar com a visibilidade ou invisibilidade enquanto pessoa trans*. Certa vez, em um ambiente de trabalho, havia uma cliente que, supunha-se, seria uma mulher trans*. Mais do que avaliar se havia ‘realidade’ nas especulações de algunxs colegas, impressionou-me (e me indignou também, certamente) a intrusão e desrespeito que se lambuzavam através delas. A partir dos questionamentos sobre a transgeneridade daquela pessoa, pude observar, mais que qualquer outra coisa, que as inconformidades com a cisgeneridade incomodam e excitam (em diversos sentidos) profundamente diversas pessoas (primordialmente, mas não somente, cisgêneras).

Neste sentido, considerando-se as violências às quais pessoas trans* se expõem quando são vistas enquanto tal, a busca pela invisibilidade por parte de algumas delas não deve ser lida necessariamente como uma reprodução acrítica do cis+sexismo dominante, ou como um conservadorismo problemático. Esta busca deve também ser vista como uma possibilidade de resistência às normas de gênero dominantes (patriarcais e cis+sexistas), e em muitos casos, possivelmente, como uma das poucas formas de sobrevivências a um entorno social hostil. Assim, não creio que devamos criticar a busca por esta invisibilidade sem antes fazer uma análise crítica e afetiva da(s) situação(ões).

É preciso pensar, por sua vez, na questão da visibilidade trans*. Se a busca pela ‘passabilidade cis’ é uma realidade (e um desejo plenamente legítimo), devemos também ter em conta que, para outras pessoas, esta passabilidade não é almejada ou não é possível — dadas as condições sociais vigentes [1]. E creio ser pertinente, dada a motivação primeira deste post, enfatizar a legitimidade destas existências nas formas e expressões que tenham e afirmem perante o mundo, denunciando, por consequência, linhas discursivas que procurem normatizar e idealizar a passabilidade cis de pessoas trans*, ou mesmo a ideia de que toda pessoa trans* almeje necessariamente passar como cis.

Portanto, interpreto este dia de luta pela visibilidade trans* como um dia em que, para além de se apresentarem as diversas e urgentes demandas políticas trans* — por dignidade, acesso a recursos (educacionais e de saúde, por ex.), empregos dignos e compatíveis com qualificações e anseios pessoais, entre várias outras — também se multipliquem e se complexifiquem as perspectivas, narrativas e possibilidades que as pessoas trans* tenham para si próprias e para as demais, em termos de como lidam com seus corpos, expressões de gênero e interações sociais (institucionais ou não), de maneira que se ampliem os horizontes de sua (nossa) inserção no mundo. Esta ampliação de horizontes passa pela percepção de que nossas inconformidades de gênero são construídas enquanto tais a partir de uma normatividade cisgênera, e que a luta consiste em, fundamentalmente, questionar esta normatividade — ainda quando a adequação ‘passável’ a ela esteja dentro de nossos objetivos, possibilidades e anseios.

Nota

[1]- Noutros contextos em que a cisgeneridade não fosse tão evidentemente prevalente, poderíamos pensar que as transgeneridades não seriam tão visíveis e monitoradas. E, até mesmo, que estes conceitos analíticos de cis- e transgeneridade não seriam mais relevantes.

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Travestis têm gênero, respeite!

É recorrente encontrarmos nas notícias e no falar geral o uso dos pronomes tratando mulheres travestis no masculino. Também ocorre o mesmo com pessoas transexuais. No entanto, intuitivamente acredito que com as travestis essa situação é um pouco mais “grave”, pois existe a crença ou imaginário social de que, como travestis não procuram a CRS (cirurgia de redesignação sexual), são “apenas” “homens que se vestem de mulher”. Isso se deve ao preconceito cissexista de acreditar que existe uma verdadeira essência por trás da biologia ou da morfologia. É acreditar que alguém que tenha um pênis esteja de alguma forma ligada a uma identificação ou condição masculina, assim como ocorre com a vulva e vagina com a feminilidade. Se a mulher trans* não quer construir uma vagina cirurgicamente, ou não tem a disforia corretamente “diagnosticada” por um psiquiatra, relacionada ao seu genital, não desenvolver uma narrativa esperada pela equipe de médicos, ela não é uma mulher de verdade ou nem ao menos é uma mulher.

Assim, pessoas transexuais/trans* que percorrem todos os procedimentos esperados ganham certa credibilidade em suas identidades. Mesmo que elas também não estejam isentas de serem desqualificadas e ojerizadas, pessoas trans* - neste caso, travestis, como são comumente designadas pelo discurso médico - que estão à margem desses processos médicos/jurídicos de validação de identidades podem estar em uma situação ainda mais vulnerável. Sem contar com diversos outros possíveis marcadores de subalternidade associados à identidade travesti: raça, escolaridade, situação de vulnerabilidade devido à prostituição ou outras condições… Assim fica ainda mais fácil se referir a uma travesti – mulher – no masculino indevidamente. As pessoas que fazem esse erro recorrem de justificativas das mais absurdas até as mais escancaradamente preconceituosas, passando inclusive pelo argumento de autoridade que a gramática normativa supostamente concede. Já ouvi:

1) Eu posso usar a flexão masculina, pois você não conhece a identidade dx travesti. Logo, se elx se identificar como homem, eu tenho esse direito;

2) Se alguém errar o meu pronome, eu –pessoa cisgênera –não vou ficar chateado. Aliás, acho até engraçado. É só uma piada, vocês não estão falando sério né, se eu posso rir vocês também podem!

3) A gramática normativa exige a utilização da flexão masculina para homens e como travestis são apenas homens que se vestem de mulher, eu tenho esse direito;

Então vamos por partes… Primeiro, podem de fato existir pessoas que se identificam como travestis e se apresentarem com uma fluidez de gênero, ou além do binário, de forma que elxs podem se identificar como homens, mulheres ou algo entre ou além dos dois e isso certamente não é um problema. Todas as pessoas tem o direito pela auto identificação, apenas elas decidem qual é a melhor forma de se definirem. Por isso é importante perguntar para a pessoa como ela gostaria de ser chamada.

No entanto, isso não é desculpa para reproduzir uma opressão estrutural e histórica contra as mulheres travestis: de as chamarem com pronomes que elas não desejam. De uma maneira em geral as pessoas travestis que se identificam com o gênero feminino preferem serem tratadas no feminino. Por isso não é adequado tratar mulheres transgêneras, apenas por serem transgêneras, no masculino de forma generalizante. Se alguma mulher cis apresenta roupas e acessórios femininos, sutiã dentre outros “marcadores” de feminilidade certamente ela será tratada pelo feminino e a chance de ocorrer misgender – errar o seu gênero - é pequena. Se ocorrer a mesma situação, porém com uma mulher transgênera, na qual pelo simples fato dela ser identificada como trans* ela ser tratada no masculino, o cissexismo fica evidente.

Errar o gênero, pronome e nome das pessoas trans* não é jamais a mesma coisa que com uma pessoa cisgênera. Afinal, pessoas cis nem ao menos são alvos dessa situação, a menos que tenha algo na aparência física/apresentação que remeta o gênero oposto, é extremamente improvável que isso aconteça. Ter seu gênero deslegitimado é opressão que acontece com pessoas trans* cotidianamente, é a violência que diz que alguém não é um homem ou mulher o bastante (ou simplesmente não existir a possibilidade de ser) por possuírem determinado genital ou aparência e que leva à disforia. Pessoas trans* não tem o privilégio de rirem quando isso acontece e nem de se esquecerem da situação ou de não se importarem com ela.

Por fim, usar a gramática para corroborar transfobia é hilário, mas trágico, pois é uma realidade. Regras gramaticais são convenções sociais, elas não são escrituras sagradas, que podem dizer as “verdades” a cerca dos pronomes das pessoas trans*. A única verdade sobre o gênero de alguém é a que ela diz sobre si mesma. Se alguma pessoa usar o argumento que é necessário tratar mulheres travestis no masculino ela não está sendo neutra – como a principio o argumento da “língua” poderia soar - ela vai estar sim em uma posição privilegiada – a cis – exercendo uma relação de dominação contra pessoas trans*, ao deslegitimar suas reivindicações – de serem tratadas como querem.

Pessoas trans* já cotidianamente são levadas a nem mesmo serem o que são. É ter que nadar contra a correnteza, a identidade de alguma pessoa trans* não foi obtida com pouco sacrifício, pois a todo momento somos lembradxs através dos mais diversos ataques transfóbicos de que não poderíamos nos identificarmos como nos identificamos. É realmente necessário reforçar essa violência ainda mais ao chamar pessoas trans* com o gênero a qual ela foi designada de forma coerciva? A regra é básica e simples: 1)Individualmente, chame alguém como elx gostaria de ser chamadx, pergunte 2) Ao tratar de grupos, da mesma forma que designamos o gênero feminino às mulheres cis com apresentação feminina, o mesmo tem que ser feito com mulheres trans* - assim como para homens cis e trans*.

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