Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.
Por Hailey Kaas
A pessoa X é uma pessoa trans*. Mais especificamente, é uma mulher trans*. Todos os dias, quando acorda, sua primeira dificuldade é em tomar banho e se arrumar para sair. No banho, se vê como algo feio e indesejado; Na hora de escolher suas roupas, não consegue satisfazer-se, pois acredita que nenhuma lhe “cai bem”. Por “cair bem”, a pessoa x sabe que ela espera, mesmo que inconscientemente, que aquela roupa vá lhe garantir o “direito” de ser vista como mulher sem a questionarem ou importunarem. Ela olha seu rosto no espelho e repara, novamente, em como seus pêlos faciais estão aparentes, por mais que tenha passado a lâmina cuidadosamente. Pensa: “preciso juntar dinheiro urgentemente para fazer aquela tal de depilação a laser”.
Ela gosta de maquiagem, mas evita usar. Seu maior medo é ser vista como aquelas personagens do Zorra Total. Por outro lado, deseja avidamente esconder as marcas dos pêlos faciais e algumas curvas que ela considera masculinas.
A pessoa X sai para trabalhar. Na rua, coloca óculos de sol e fones de ouvido. Não quer olhar para as outras pessoas e perceber que estão lhe observando, julgando, criticando, ojerizando. Prefere pensar que não existe ninguém ao redor, e desesperadamente imerge nas músicas que ouve para desligar-se do mundo.
Eventualmente, acaba ouvindo algum xingamento aqui e ali, pois a força do grito ultrapassa a capacidade de abafo dos fones. Entre “traveco” e “bicha”; “que pouca vergonha” e cantadas em forma de piadas transfóbicas, ela pega o transporte público.
Ela trabalha em um Call Center. Lá, atende com o nome civil apesar dos pedidos feitos à administração para que pudesse atender com seu nome correto.
No trabalho, sente vontade de ir ao banheiro. Sabe muito bem que deve segurar, pois não a deixarão utilizar o banheiro feminino, e usar o masculino está fora de cogitação. Segurar a urina não é nada perto da humilhação e medo que tem de ir ao banheiro.
Após o trabalho, ela vai ao banco, uma vez que necessita sacar o valor do aluguel. No caixa, o atendente solicita seu RG; Logo vemos uma risadinha e um “Sr. tal” pronunciado em alto e bom tom na frente de todos.
Volta rapidamente para casa, pois tem medo de andar na rua quando escurece. Lembra bem de conhecidas que foram agredidas em ruas próximas. “Se nem os gays estão seguros naquele bairro chique”, pensa, ao lembrar-se do famigerado caso da lâmpada fluorescente.
Chega em casa e vai correndo ao banheiro. Depois, vê a novela e usa o computador que felizmente conseguiu adquirir depois de juntar algum dinheiro. Participa de grupos trans* e se informa sobre hormônios e cirurgias. Está ansiosa e feliz, pois amanhã irá a sua primeira consulta naquele centro famoso que abriu em São Paulo.
Mal sabe a pessoa X que os médicos do centro a olharão com desdém e com pouca, senão nenhuma preocupação real com sua saúde e bem estar. Em poucos meses ela irá ao tal centro apenas por obrigação e para obter a receita de hormônios (e assim pegar de graça na farmácia).
Antes de ir dormir, pensa, mais uma vez, como irá falar com seus pais sobre essa questão. Não sabe como irão reagir, mas tem quase certeza de que será negativamente.
A pessoa X sou eu, são minhas amigas trans*, são meus amigos trans*, somos todxs.
As situações vividas por muitas pessoas trans*, chamadas aqui de microagressões, ocasionam não raro estresse e depressão. As microagressões concorrem para nos expulsar cotidianamente dos espaços sociais, como se fôssemos um mal a ser extinto. As pessoas que nos maltratam, o fazem com o objetivo consciente ou inconsciente de realizar a assepsia social necessária para se livrarem das pessoas que consideram anormais. Desejam acabar com a “pouca vergonha” desses “sujeitos privilegiados”, como costuma dizer aquele famoso pastor.
Desde no espaço privado, em casa, até nos espaços de socialização, não estamos um minuto sequer em paz.
Por isso, nessa semana da visibilidade trans peço que, ativistas ou não, nos eduquemos sobre as questões trans* - em especial sob a ótica (trans)feminista. Dar um pouco de dignidade, paz e conforto para essas pessoas, significa transformar suas vidas em possíveis, em fazê-las vivíveis e consequentemente, um pouco menos desumanizadas.