Recebemos mais um relato, dessa vez da Luciana Cominato. Publicamos com vários dias de atraso (já que o texto é sobre suas experiências do natal), mas continua sendo relevante durante todo o ano. Infelizmente, para várias pessoas trans*, muitas vezes ficamos isoladxs das companhias familiares, já que nem ao menos eles podem representar um espaço seguro para nós.
Ah,o Natal! Aquele Natal cheio de parentes, com avô, avó, tios e primos que a galera imagina só acontecia em S.Paulo na família do meu pai. Na família da minha mãe, ela era filha única e todos os irmãos dos meus avós exceto um não tinham tido filhos. Essa prima da minha mãe era filha única e também morava em S.Paulo. Então, eu lembro vagamente de um Natal lá, com 4 anos de idade e de uma viagem pra Recife pra passar o Natal lá com o irmão dele que tinha se mudado pra lá naquele ano quando eu tinha 5 anos.
Quando eu tava com 6 anos, minha avó por parte de pai faleceu e como meu pai tinha problemas de relacionamento com o pai dele e com as irmãs por causa de dinheiro, adeus Natais em S.Paulo e viagens nas férias pra lá.
Com isso, no resto da minha infância e adolescência o Natal passou a ser apenas com meus pais ,meus irmãos, minha avó materna – meu avô materno morreu quando eu tinha 8 anos - e com os tios e tias-avós que não tinham filhos. E acabava se resumindo à eu e meus irmãos brincando com os presentes e os adultos falando do passado.
Mas esse Natal também acabou, meus pais se separaram, o dinheiro foi com ele, a ceia ficou menos farta e dos dois tios-avós que restavam, um morreu e a outra foi se isolar em Queimados e não deu o endereço nem pra minha mãe, nem pra minha avó e nem pra viúva do meu tio-avô (e que passou a passar os Natais com os parentes dela).
Mais um tempo passa e minha mãe que já tinha crises de asma e tosse forte acaba morrendo inesperadamente pra gente, porque na verdade ela já tinha algo e não queria contar nem ir no médico pra não ter que largar o cigarro. E com isso, acabaram-se os Natais na minha casa e só teve um ano que passaram os 3 irmãos e minha avó no mesmo lugar. Que por coincidência foi meu último Natal.
Minha irmã casou e mudou de cidade, minha transexualidade passou a ser conhecida pelo resto da família, todos os outros passaram a ter Natais alternativos com as famílias dos maridos e esposas e eu e minha avó ficamos sem lugares por ser trans e ela por não poder viajar sozinha e ninguém querer viajar 12 horas pra pegá-la e mais 12 horas pra trazê-la de volta.
E perdeu o sentido tentar fazer ceia de Natal só pra duas, ainda mais que só servia pra fazê-la lembrar de todo mundo que tava longe ou que já tinha morrido. Como ela foi ficando cada vez mais esquecida, teve um ano que ela passou o mês inteiro reclamando do Natal, que ninguém ligava pra ela e pegou mania de querer rabanada todo dia – e todo dia eu tinha que ir na padaria comprar uma ou duas pelo menos(e assim eu enjoei de rabanada, que eu amava quando era criança).Aproveitando que fora da época do Natal não era todo dia que tinha rabanada, fui conseguindo trocar a rabanada por pão doce até que ela deixou de cobrar rabanada.
E no ano passado ela morreu, com 94 anos, depois de 7 anos que fiquei só eu e ela. Ano passado fiquei sozinha no Natal e acho que nem senti muito porque foi um alívio não ter ninguém reclamando que foi abandonada por todo mundo. Esse ano, faltam só 2 dias pro Natal e tudo indica que vou ficar sozinha de novo, por que o único convite que surgiu eu não tenho grana pra viajar.
Pelo menos é melhor do que ir por obrigação pra casa de parentes que estão visivelmente incomodados com a sua presença, mesmo com você de camiseta, calça jeans e all star; fazendo esforço zero pra te tratar pelo nome e pelo gênero certos e ainda cobrando por que você ainda não tem um emprego, que você é doida por ir procurar um emprego vestida de mulher e outras coisas “lindas” comuns na relação entre pessoas trans* e parentes não tão receptivos.