Pensando além da (in)visibilidade

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Bia Pagliarini Bagagli

Mais um dia 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans.

Sinto-me impelida a escrever, nem que seja para desabafar. Afinal, sou trans*, e quem mais habilitadx para falar numa ocasião dessas? Mas afinal de contas, como as pessoas trans* são vistas pela sociedade? Mais importante: essa visão está de acordo com o que elas têm de si mesmas?

A mídia ao mesmo tempo em que constrói, reproduz o que todos nós entendemos sobre transgeneridade, o senso comum a cerca do tema. Não preciso me delongar sobre o quanto esse olhar, majoritariamente, é cis, além de masculino, branco, elitista… Pessoas trans* são retratadas, através desses poderosos meios, cotidianamente por homens brancos cisgêneros abastados que detém esse poder de voz. Será que eles são capazes de terem empatia com essas pessoas? O quanto, assim como um documentarista de vida selvagem observa suas feras, essas criaturas urbanas são tratadas como verdadeiros animais exóticos?

Falar sobre visibilidade trans* é também falar sobre minúcias e não-ditos. Sobre o que, a primeiro momento, parece óbvio, mas a partir de um olhar mais atento pode-se notar o quanto dessas obviedades se firmam em pilares cissexistas e transfóbicas. O teor obviedade é bastante relativo. Até mesmo coisas que para mim são tão escancaradamente transfóbicas, para pessoas cis podem ser mais uma inofensiva naturalidade da vida cotidiana. Seus olhares não foram treinados e nem haveriam de ser. São os olhares trans* que foram treinados a marra, sob constante violência. Isso não quer dizer que é agradável e fácil enxergar certas coisas.

É muito duro saber que nossos corpos são ao mesmo tempo hipersexualizados e ojerizados, e perceber o quanto sofremos na pele disforia e objetificação de nossos corpos impactando em todas as esferas das relações pessoais; duro saber da norma cis que rege as condutas mais aparentemente espontâneas e o quanto percebemos na pele a isolação ou ostracismo pela quais muitas pessoas trans passam; duro saber que se convencionou que documentos, definidos ao nascimento, podem definir seu sexo e nome e o quanto sofremos na pele para corrigi-los, enfrentando não raramente inúmeros percalços judiciais.

São essas vivências dolorosas que passamos que tornam possível um olhar no mínimo diferenciado a cerca dos nossos próprios problemas. Uma pessoa cis realmente pode ter empatia e perceber o quanto essas pessoas sofrem, e o quão é urgente a solução desses problemas na vida das pessoas trans*? Conseguem perceber o que, a princípio, são melindres e sutilezas? Espero que sim, claro, mas infelizmente não é isso que vemos todos os dias. Por isso, é importante que pessoas cis não tentem dizer o que pessoas trans* sofrem ou deixam de sofrer, ou como deveriam se sentir.

Acho relevante, ao falar de visibilidade, tocar na invisibilidade. Pessoas trans* são apagadas dos discursos oficiais das mais variadas formas e nas mais diversas esferas, vou dar um exemplo curioso: bulas de medicamento. Pois é, você pode estar se perguntando qual é a relação entre transfobia e bulas. Bula é um gênero textual que possui um interlocutor, os usuários, a fim de informá-los a cerca da posologia, efeitos colaterais, etc. Muitas pessoas trans* tomam hormônios com o fim de desenvolverem característica associadas ao gênero a que pertencem, não diferente dos homens e mulheres cis que necessitam de terapia de reposição hormonal. Nada mais esperado que se encontre nas bulas o “público alvo” de determinado medicamento: em uma bula de antidepressivos, os usuários possuem depressão, em uma bula de medicamentos para hipertensão, os usuários são hipertensos e por ai vai.

No entanto, não encontramos em nenhuma bula – tanto de antiandrógenos, medicamentos de reposição hormonal e pílulas que contenham hormônios (como os anticoncepcionais) – qualquer referência a pessoas transgêneras. É como se elas simplesmente não existissem, apesar de utilizarem amplamente esses medicamentos. Logo, não precisamos nos importar com a dose e com qual substância elas necessitam, quais são os efeitos colaterais e desejados, qual é a eficácia e os riscos etc. Não precisamos nos importar em como essas pessoas vão obter informação para preservar a saúde. Afinal, elas não existem. Cabe a elas se guiarem por dosagens e corpos cis, adaptando e interpretando em seus corpos, gerando quase que experimentos científicos.

É disso que estou falando quando aponto que o cissexismo e transfobia se materializam em todas as esferas de nossas vidas e estão infiltrados em estruturas tão profundas e inconscientes que podemos achar que é “normal”. Notem que o apagamento das bulas se tratar de uma materialização da transfobia ser um fato pouco óbvio não o faz menos preocupante e menos grave. Cabe a nós revelá-los. Só assim vamos deslocar os sentidos únicos que a sociedade ciscêntrica impõe.

Vamos também dizer não à violência médica que acredita ser capaz de diagnosticar nossas identidades de gênero. Vamos repudiar quem tenta deslegitimar nossa luta, não iremos aceitar que digam que privilégios cis não existem, e que pessoas trans* mereçam servir de escárnio de homens heterossexuais cisgêneros. Dizer que nós nos colocamos em posição de vítima é uma falácia que só corrobora o status quo. É fundamental que as pessoas trans* gritem e mostrem que não irão aturar mais violência. Denunciar a transfobia na sociedade, mostrar que ela existe sim e alertar aqueles que são céticos, são os primeiros passos para que possamos lutar contra ela.

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7 Comentários

Arquivado em Cissexismo, Semana da Visibilidade Trans, Trans*

7 Respostas para “Pensando além da (in)visibilidade

  1. Muito bom seu texto!!! Gostei muito dessa parte especificadamente: “Por isso, é importante que pessoas cis não tentem dizer o que pessoas trans* sofrem ou deixam de sofrer, ou como deveriam se sentir.”
    Eu, como uma mulher cis, já me deparei em fóruns feministas e as vezes no meu próprio pensamento deixando as pessoas trans* completamente de fora, baseada em pressuposições, que levam ao que você falou, a uma invisibilidade. É uma honra poder ler o que de fato as pessoas trans* tem a dizer, poder reconhecer o preconceito em mim mesma e caminhar pra um feminismo cada vez mais interseccional.

  2. Raquel

    Cada vez que leio textos como este percebo o quão longe a sociedade está de enxergar o “ser humano”, “a pessoa e seu caráter” por de trás de sua sexualidade, religião, crença, cor, estilo… etc. Cada ser humano é único em seus sentimentos, história, dons e escolhas, por isso concordo que julgar ou tentar diagnosticar emoções e escolhas de qualquer pessoa é no mínimo uma atitude equivocada.
    Por acreditar que opção sexual dentre tantas outras escolhas na vida de uma pessoa é apenas um detalhe frente ao “ser humano” para mim não faz sentido discursos políticos, passeatas ou seja lá o que for levantando bandeira de um determinado gênero ou opção sexual para defesa dos direitos e da cidadania das pessoas com tais qualidades. Não consigo ver lógica nisso pois todos somos igualmente humanos, temos os mesmos direitos e deveres. Portanto o que a sociedade precisa é reconhecer e amar (amor aqui significa respeito e empatia) o próximo em sua totalidade respeitando todos os tons de cinza que fazem de nossa espécie tão única e especial. O respeito e o cumprimento dos direitos humanos é então, ao meu ver, o que está em jogo e o preconceito de qualquer natureza é o grande vilão nisso tudo, pois ele é o que faz alguns humanos se sentirem mais humanos que outros.
    Quanto a luta pela visibilidade, mantenho a mesma opinião: Por que não fazer uma passeata a favor do respeito à humanidade que existe em cada um de nós? São tantos os invisíveis de nossa sociedade, são tantos seres humanos que não possuem as necessidades básicas atendidas e quem se importa com eles? Quem os enxerga? Todos nós, sem exceções, preferimos simplesmente fechar os olhos e fingir que não é nosso problema e manter nossas vidinhas fúteis e vazias protegidas de qualquer desconforto.
    Quanto ao transexual e a bula de medicamentos acredito que isso é um tema bem complexo. De fato a incompatibilidade biologia/fisiologia x emoção (como de fato a pessoa se sente e se enxerga), sofrida por vários seres humanos, ainda merece muito estudo e atenção para que o direito à busca pelo equilíbrio físico e emocional seja atingido pelos transexuais. Considero complexo por razões biologicamente óbvias. Se a administração de hormônios femininos em mulheres já é arriscado devido a individualidade fisiológica de cada uma (daí a necessidade de prescrição e acompanhamento médicos), imagina então o uso desses hormônios em corpos que geneticamente e biologicamente são masculinos, o que vai contra toda uma dinâmica geneticamente programada, sem contar o impacto psicológico da terapia hormonal. Sem dúvida um profissional deve ser consultado e a saúde do paciente deve sempre estar em primeiro lugar. Não acho que a não referência às pessoas transgênicas nas bulas de medicamentos hormonais ocorra devido a uma invisibilidade. Isso simplesmente ocorre, pois estes medicamentos foram feitos para tratamentos de disfunções hormonais em mulheres.
    Bia, biologicamente falando, o seu corpo ter, naturalmente, características masculinas não é uma disfunção, é uma resposta normal ao cariótipo XY, ao desenvolvimento de testículos e aos hormônios por ele produzidos; mesmo que como ser humano único que você seja, com sentimentos e emoções, você não esteja preparada para este corpo. Bem, biologicamente o seu corpo funciona como deve funcionar e médico nenhum diria que vc necessita de um medicamento. Por isso, e não por preconceito ou invisibilidade, as pessoas trans não são incluídas nas bulas. Mas sim! Todos temos direito a nos sentirmos bem e felizes com o nosso corpo! Infelizmente a medicina convencional está longe de se vincular à psicologia, para entender melhor a pluralidade de seus pacientes, nossos profissionais estão ainda engatinhando nessa área e muitas pesquisas ainda devem ser realizadas, muitos transexuais devem ser ouvidos e enxergados, sem dúvida, para que o ser humano seja enxergado além de sua biologia!

    • biabagagli

      Obrigada Raquel pela atenção :) Porém certos detalhes me chamaram a atenção: vc parece reproduzir o discurso que naturaliza certa morfologia/hormônios a certas identidades. Vamos deixar bem claro que ser mulher não depende da quantidade de estrógeno, nem de sua morfologia genital. Vc diz:

      “Não acho que a não referência às pessoas transgênicas nas bulas de medicamentos hormonais ocorra devido a uma invisibilidade. Isso simplesmente ocorre, pois estes medicamentos foram feitos para tratamentos de disfunções hormonais em mulheres.”

      Justamente, mulheres trans* não deixam de ser mulheres. Precisamos nos atentar com o cissexismo. Uma mulher cis que tenha alta taxa de testosterona no corpo e deseja alterar isso terá certamente atendimento médico facilitado. Já as mulheres trans*, não. É o mesmo procedimento, corpos de mulheres trans* não reagem de forma diferente aos hormônios que as mulheres cis. Todos os corpos, seja de qualquer sexo “físico” possuem testosterona e estradiol, são hormônios humanos, o que muda de cada “sexo” pode ser a quantidade. A ideia de sexos opostos e autoexcludentes é reflexo de nosso ideologia binarista. Nada justifica a ausência das pessoas transexuais das bulas, uma vez que essas demandas são legítimas e necessárias. Pessoas trans* necessitam, muitas vezes, desses hormônios.

      Não existe características “naturalmente” de um gênero/sexo, o que existe é uma atribuição social. Ser homem ou mulher é uma construção social. Quando vc diz: “Bem, biologicamente o seu corpo funciona como deve funcionar e médico nenhum diria que vc necessita de um medicamento” tenho que te alertar que médicos que cuidam das pessoas trans* tem a necessidade ética de cuidarem e atenderem as demandas trans*. Logo, as bulas devem ter o mesmo compromisso ético para xs usuários pois a demanda existe e é válida tanto quanto das pessoas cis.

      “, imagina então o uso desses hormônios em corpos que geneticamente e biologicamente são masculinos, o que vai contra toda uma dinâmica geneticamente programada, sem contar o impacto psicológico da terapia hormonal.”

      Não existe riscos maiores para mulheres trans*. Aliás, é justamente por podermos ter menos estradiol e passarmos sem o efeito hormonal do estradiol alto antes da reposição que temos mais “resistência”, não é a toa que mulheres trans* tomam uma quantidade muito maior de estrogênio/antiandrógeno que mulheres cis para alcançar o mesmo “padrão”. Não existe essa dinâmica que vá contra a terapia de reposição hormonal a pessoas trans*, como disse, mulheres trans* reagem da mesma forma que mulheres cis aos hormônios. Levando para uma perspectiva mais pessoal, posso dizer que mulheres trans* tomam uma grande quantidade de hormônios e se sentem muito bem. Participo de grupos de mulheres trans* que debatem hormônios e sei que elas tomam doses bem maiores que as cis. Aliás, vejo também que muitas mulheres cis reclamam e sentem mais efeitos colaterais de doses ainda bem menores que as tomadas pelas trans*. Não existe essa dinâmica que traria “incongruência” entre mulheres trans* e hormônios femininos. Não podemos culpar hormônios, estritamente, para possíveis variações de humor das pessoas trans*, já que a todo momento somos levadas ao limite da sanidade mental pela transfobia e disforia social.

    • ledatferreira

      A lógica dos movimentos políticos levantando bandeiras, defendendo ideologias e fazendo protestos e passeatas é que essa história de “amar e respeitar” o próximo e a humanidade de cada indivíduo não funciona no mundo real - ninguém vai, do nada, sem mais nem menos, passar a respeitar as minorias marginalizadas e reconhecer e atender as demandas legítimas delas. Assim, essas pessoas se reúnem para como movimento ter força para defender seus interesses, algo que talvez não pudessem fazer sozinhas.
      Então, Raquel, já que você não concorda com esse método, o que propõe que façamos? Sentar e esperar? Pensamento positivo?

  3. Olá meninas, estou acompanhando o blog há pouco e adorando!
    Obrigada, obrigada mesmo por compartilhar estas experiências, para que nós, cisgêrenas, possamos nos sensibilizar, este negócio na bula mesmo, eu NUNCA iria saber, se não fosse a denúncia…são as micro repressões gritando o tempo todo, e só quem está na pele sabe!

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