Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.
Por Jaqueline Gomes de Jesus*1
“Se a mente do oprimido é manipulada (…) até o ponto dele se considerar inferior, não será capaz de fazer nada para enfrentar o seu opressor”, Steve Biko.
Esta será mais uma conversa sobre gênero, entretanto, falando de mulheres e homens que costumam ser esquecidos quando se fala de gênero.
Até muito pouco tempo atrás, no final do século XX, era comum ouvir pessoas falarem que “as mulheres começavam a se inserir no mercado de trabalho”. A tal afirmação, os mais atentos respondiam:
— Como assim, “cara pálida”? Mulheres sempre trabalharam!
Para esclarecer esse debate, vou transcrever um trecho de artigo que escrevi para o Observatório da Imprensa, por oportunidade do Dia Internacional da(s) Mulher(es) de 2012:
“As mulheres sempre participaram do mundo do trabalho: subalternizadas, mas estavam lá. A partir das novas ideias e comportamentos trazidos com o movimento feminista e a liberação sexual, a percepção sobre quem são as mulheres se ampliou, deixou de apenas se remeter à mulher branca, abastada, casada com filhos, e passou a acatar a humanidade e a feminilidade de mulheres outrora invisíveis: negras, indígenas, pobres, com necessidades especiais, idosas, lésbicas, bissexuais, solteiras…”*2.
Sojourner Truth (1797–1883), abolicionista e ativista dos direitos das mulheres, primeira negra norte-americana a ganhar um litígio judicial contra um branco, perguntou, durante uma Convenção dos Direitos das Mulheres do estado de Ohio, em dezembro de 1851:
“Aquele homem ali diz que mulheres precisam ser ajudadas para subir nas carruagens, e que têm de ser levantadas sobre as valas, e ter o melhor lugar, onde quer que estejam. Ninguém nunca me ajuda a subir nas carruagens, nem a passar pelo lamaçal, nem me dá qualquer lugar melhor! E eu não sou uma mulher?”*3
A imagem de “mulher” estava atrelada — e provavelmente continue estando — a um modelo específico de mulher: a mulher branca de classe média que pode reproduzir. Muitas vertentes do feminismo adotavam essa versão da história e da humanidade, com opositoras aqui e ali, até que, nos anos 70, surgiu o feminismo negro, com sua crítica ao racismo e ao essencialismo biológico nas discussões sobre gênero, afirmando que mulheres negras eram mulheres.
Semelhante afirmação pode parecer redundante hoje, porém, estranhamente, neste início de século XXI, ainda é preciso escrever e gritar que não existe uma mulher, mas mulheres, e que algumas mulheres são mulheres: estou falando das mulheres transexuais, e se pensarmos em homens, também estou falando dos homens transexuais.
A população transgênero, ou simplesmente trans, mas principalmente as travestis e os homens e as mulheres transexuais, têm muito a aprender com o feminismo negro. Esta vertente do feminismo que temos tecido há algumas décadas, e que aos poucos vem sendo reconhecida como um dos feminismos, o feminismo transgênero ou simplesmente “transfeminismo”, é herdeira das melhores críticas feministas negras.
Eu, pessoalmente, acredito que o pensamento transfeminista, mesmo que não seja aplicado estritamente da forma como o definimos, é um dos caminhos para a plena cidadania trans, uma cidadania que não começa outorgada por alguém, dada gentilmente por um “outro” generoso (comumente um poderoso cisgênero*4), uma cidadania tutelada, mas, isso sim, uma cidadania que começa dentro das pessoas trans, exigida individual e coletivamente, uma cidadania conquistada.
O cidadão, mais do que ser somente uma pessoa com um registro civil e direito a voto, é alguém que tem o direito sobre si mesmo, é sujeito de sua vida, e não objeto de outros.
Falo de uma cidadania que começa com o reconhecimento, por parte das próprias travestis e das mulheres e homens transexuais, de que são seres humanos tão dignos quanto quaisquer outros; passa pela constatação de que, apesar do truísmo, da verdade evidente, de que são pessoas, não são tratadas da mesma forma que as outras; e avança por meio da denúncia e do repúdio à injusta segregação cotidiana contra o direito à vida e à identidade de gênero das pessoas trans.
Quando um grupo social vai paulatinamente conquistando sua cidadania, não apenas ele e seus integrantes ganham com isso, mas, igualmente, toda sociedade que se pretende democrática. Não vivemos sequer próximos do mundo ideal, mas avançamos demais, como humanidade, com as lutas diárias contra qualquer forma de discriminação e pela isonomia entre os seres humanos.
Esta nova linha de frente, a batalha pelo reconhecimento da humanidade e do gênero das pessoas trans, não constrói tão-somente a cidadania trans, ela alcança todas e todos os cidadãos, transforma as nossas concepções limitadas acerca dos gêneros e de como eles podem ser vividos.
Enfim, estou falando da liberdade de sermos quem somos: há muitos caminhos para se chegar lá, no entanto, enquanto as pessoas cisgênero continuarem gozando dos seus direitos e, de forma egoísta, mantendo a guarda dos direitos e das vozes das pessoas transgênero, ambas continuarão longe de serem livres.
*1 Jaqueline Gomes de Jesus é doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília – UnB e pesquisadora do Laboratório de Trabalho, Diversidade e Identidade – LTDI/UnB.
*2 “Trabalhadoras Transexuais em Destaque”, artigo publicado em 13/03/2012, na edição 685 do Observatório da Imprensa, disponível em http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed685_trabalhadoras_transexuais_em_destaque.
*3 O texto completo do discurso original de Truth, “Ain’t I a Woman?”, está disponível no site http://www.fordham.edu/halsall/mod/sojtruth-woman.asp.
*4 Por “cisgênero” me refiro à população composta por pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascimento, diferentemente da população transgênero. Essas definições são aprofundadas no livro “Orientações sobre Identidade de Gênero”, disponível em http://www.sertao.ufg.br/pages/42117.