Arquivo do mês: março 2013

Você é homem, X, você é homem?

Por anônimx

O telefone toca, era pouco mais de um ano atrás. É o antigo líder da antiga comunidade religiosa da qual eu fazia parte. Eu havia publicado no meu blog textos contando sobre o que lá acontecia, e ele, evidentemente, não gostou nem um pouco. Inicialmente, estava calmo, mas, percebendo em mim a mesma fragilidade de antigamente, começou a gritar. A imagem do líder gritador daquela comunidade emergiu de sua tumba para me aterrorizar novamente. E eu, bicho acuado, voltei para minha toca, assustado, calado.

Tudo o que eu queria, X, é que você virasse homem! Você é homem, X, você é homem?

Você consegue ouvir este som, querid@? Este som de vidro se estilhaçando e se esparramando? Esta sou eu me despedaçando toda por dentro. Mas ele tinha razão, eu não sou um homem. Fosse homem, teria gritado de volta, mostrado todas as contradições, todos os absurdos naquilo que ele dizia - e eram vários. Mas, como uma mulher, sofri calada, sem coragem de responder nada. Afinal, é assim que as mulheres se comportam… Ou não?

Desliguei o telefone. Fosse mulher, teria chorado, derramado em lágrimas a minha dor. Mas permaneci calado, apenas transparecendo o terror em minha face, pudesse alguém ver-me naquela hora. As lágrimas escorriam por dentro. Sabe como é, homem não chora… Chora?

Nunca havia percebido, nunca havia me dado conta da verdadeira natureza dos fatos: era tudo uma questão de gênero! Como quando meus antigos colegas de classe me chamavam de gay, dando-me apelidos, dizendo diversas vezes que eu deveria chupar o pau deles. Algumas vezes faziam-no em coro, puxando palavras-de-ordem nas aulas de educação física. Não conseguia compreender, afinal, eu gostava de uma menina e todos sabiam disso! Mais do que isso, me zoavam por causa disso! E eu pensava: “Eu não sou gay, eles sabem disso, por que continuam a me encher o saco?”

Era tudo uma questão de gênero quando, anos mais tarde, naquela comunidade religiosa, diziam-me que eu era uma criança imatura e que eu tinha que virar homem. Não à toa, rezei pra Deus pedindo que eu nunca deixasse de ser criança. Aquela feminilidade-criança escondida à força fez com que eu criasse uma criança imaginária, uma menina chamada Pureza. Ela era livre, pura, feminina e carregava um ursinho ao qual ela tinha o poder de dar a vida. Frustrava-me a minha inabilidade em alcançá-la.

Certa vez queria jogar futebol com as meninas daquela comunidade, mas fui proibido, pois era a vez das meninas. Era uma questão de gênero quando respondi a elas:
- Mas ninguém mandou Deus fazer-me menino…

Eu me sentia como se estivesse dentro de um armário. Havia um armário, eu sabia, não conseguia esticar os braços! Mas onde estava o armário? Eu não conseguia ver armário algum!

Não era uma questão de orientação sexual, não tinha dúvidas. Seria uma questão de identidade de gênero? Mas eu não me sinto como uma mulher… Demorou muito tempo para eu me permitir perguntar: mas eu sou um homem? Eu me sinto como um homem?

Quantas vezes me senti com medo de ser classificado como uma menina ou mulher por meu comportamento? Quantas vezes me senti desconfortável por me enquadrarem como menino ou homem em diversas situações? Não me seria possível contá-las, mas ao menos agora posso entendê-las. Como quando não me sentia confortável em cruzar as pernas como uma mulher ou de tirar a camisa como um homem. Afinal, não sou uma mulher, mas também não sou um homem. O medo de ser classificado como uma ou outro tornou-me um androide sem que eu pudesse perceber.

Mas não sou um androide, sou um andrógino. Não sou inumano, não sou sem gêneros: sou, sim, um homem, mas também sou uma mulher! Ah, e eu que pensava que apenas homens homossexuais é que gostavam de soltar a franga! Sou colorida como o arco-íris, brilhante como a purpurina, gosto de usufruir do gênero andrógino.

Eu sou toda cheia de gêneros!

Tenho, sim, permissão para me comportar como quiser. Sou um homem que gosta de usar esmalte, sou uma mulher que gosta de sua própria barba. O armário já não prende mais a menina, finalmente consegui alcançar sua mão e beijar-lhe os doces lábios. A leoa está solta e quer lutar pelo seu direito à existência.

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Denúncia acerca do nome social entregue à ouvidoria da Unicamp

Hoje escrevi uma manifestação online para a ouvidoria da Unicamp e vou postá-la aqui. Também vou colocar a mensagem recebida pelo site sobre o número do protocolo para que todxs possam acessar o processo. Surpreendentemente, recebi uma ligação da ouvidoria poucas horas depois, conversei com uma atendente que me pareceu bastante empática. No entanto, não são apenas palavras reconfortantes que precisamos, mas sim de medidas concretas. Não vamos deixar passar batido o fato de que, apesar dos inúmeros decretos e portarias sobre o nome social, insistem em relegar um direito humano a uma completa negligência. Vamos repudiar qualquer política cishigienista que impede pessoas trans* de terem sua identidade reconhecida, como visto nesta lamentável resolução.

***

Venho por meio deste saber como anda meu pedido de uso de nome social na Unicamp. Meu nome social é Beatriz Pagliarini Bagagli e precisa ser atualizado o mais depressa possível. Ano passado, conversei com o advogado do SAE e ele me disse que o processo seria simples, inclusive me deu grandes esperanças que o sistema já iria aceitar meu nome social no semestre seguinte. No entanto, passou o ano e nenhuma mudança foi feita. Ano passado, dia 09/11/2012, enviei um pedido oficial cujo Protocolo/Ano é 22302/2012 para a DAC através das “solicitações diversas”. Surpreendentemente até hoje não obtive resposta. Peço encarecidamente que este protocolo seja atenciosamente observado e atendido.

É inaceitável que a Unicamp não se apresse para acatar meu pedido, visto que é um direito humano básico à identidade e não pode ser negociável e protelado tampouco pode estar sujeito a questões como alta ou baixa demanda. Igualmente execrável é uma aparente negligência por parte da Unicamp que através desta atitude continua reproduzindo uma política higienista que relega a pessoas transgêneras (travestis e transexuais) a morte simbólica e exclusão. Ao reiterar que a Universidade não é um espaço inclusivo e seguro para essas pessoas a Unicamp assume uma política institucionalmente transfóbica. Pessoas transgêneras precisam ter seus nomes sociais legitimados institucionalmente, caso contrário, estarão sendo marginalizadas. A falta da inserção do nome social gera consequências práticas: expõe os alunos transgêneros a possível humilhação e extrema ansiedade na hora de se engajarem em procedimentos burocráticos aparentemente banais e naturalizados para pessoas cisgêneras (aquelas que não são transgêneras) tais como lista de presença, chamadas, provas, trabalhos, etc. Visto essa demanda, inúmeras portarias resguardam o direito das pessoas transgêneras, tais como:

i) o decreto estadual nº55. 588, de 17 de março de 2010, que dispõe sobre o tratamento de pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo e dá providências correlatas;

ii) o decreto municipal nº17.620, de 18 de junho de 2012, que dispõe sobre a inclusão e uso do nome social de pessoas travestis e transexuais nos registros municipais de Campinas relativos a serviços públicos prestados no âmbito da administração direta e indireta;

iii) A portaria federal nº233, de 18 de maio de 2010, que assegura no âmbito da administração pública federal direta o uso do nome social adotado por travestis e transexuais.

Assim, tenho meus direitos a uso do nome social garantidos pelo Estado e caso não seja atualizado até o próximo semestre (tendo em vista que a cada novo semestre terei aulas com novos professores, me expondo novamente a situações vexatórias) terei que encontrar outros meios jurídicos cabíveis para que meus direitos sejam preservados.

Muito obrigada pela atenção.

Protocolo da Manifestação

Prezado(a) Beatriz Pagliarini Bagagli,
Agradecemos o seu contato e informamos que sua manifestação foi protocolada sob nº 485475 em 12/03/2013.Sua manifestação será analisada e seu trâmite (ou andamento) poderá ser acompanhado pela internet no link abaixo:
http://www.ouvidoria.sp.gov.br/Acompanhamento.aspx
Atenciosamente,
Ouvidoria Universidade Estadual de Campinas - Unicamp
Fone: (19) 3521-4484

[Atualização - 13/04/2013]

Olá pessoal, venho aqui publicar meu texto que vai sair no jornal do CACH deste mês sobre a situação do nome social na Unicamp. Vou mandar o texto também para a ouvidoria, acho importante que elxs ouçam as pessoas trans*, afinal de contas, é necessário que as pessoas que estão na posição de poder ouçam as críticas para que (assim espero) implementem o nome social de forma menos cissexista e mais humanizada. Sim, conseguimos um avanço, parcial. Isso não significa que iremos nos abster de um posicionamento crítico.

***

O uso do nome social na Unicamp foi implementado. Nome social se refere ao nome das pessoas transgêneras (incluindo aqui travestis e transexuais), sendo ele não coincidente com seu registro civil. O reconhecimento do nome com a qual as pessoas transgêneras se identificam é essencial para que essas pessoas não sofram violências transfóbica tais como a deslegitimação das suas identidades, trazendo implicações profundas em suas integridades psíquicas e intelectuais e constrangimento na hora de se engajarem em procedimentos burocráticos que envolvam documentos. Parte do problema na Unicamp foi solucionada no que se referem aos documentos internos, tais como listas de chamada. Nesses documentos, consta-se apenas o nome do qual as pessoas se identificam, no caso das pessoas trans*, o nome social sem qualquer menção ao registro civil. O mesmo não se pode dizer dos “documentos externos”, os quais se entendem que o registro civil deve ser explicitamente mencionado ao lado do nome “social”.

Não é porque conseguimos uma gambiarra de direito que não vamos ter um posicionamento crítico dessa política paliativa do nome social. Tais políticas não são exclusivas da Unicamp. As instituições do Estado se veem “obrigadas” a incluírem o nome social das pessoas transgêneras, porém, pouco se importam com a forma que o fazem. Como não existe nenhuma lei que garanta a efetiva mudança do nome civil, essas políticas só mostram o quanto são paliativas, já que o nome social é visto apenas como um apelido, afinal, nos documentos oficiais o que vale continua sendo o nome civil. Não apenas paliativas, mas se tornam estigmatizadoras devido à forma com que são colocadas em prática. Pessoas transgêneras passam a serem pessoas com dois nomes: institui-se o apartheid trans*.

Nesse caso, não apenas elementos discursivos significam: a própria diagramação, o posicionamento em que os campos “nome social”, “nome civil” se configuram nos documentos oficiais tem significado, pois revelam uma hierarquia entre os campos e consequente estigmatização das pessoas transgêneras. Em meus dados cadastrais, consta o seguinte nome para documentação externa: Meu registro civil ao lado do meu nome “social”. Vamos supor um nome: a pessoa trans* se chama Priscila, porém seu registro civil é Dimas. Seu nome na documentação externa ficaria “Dimas Priscila”. Isto, além de ser ridículo, é inaceitável.

Venho expressar meu repúdio contra a própria lei estadual que foi utilizada para endossar o uso do nome social na Unicamp e a forma como a instituição se fez “obrigada” a aceitá-la e implementá-la dessa forma acrítica, fazendo nenhum esforço para executá-la de forma diferente da proposta no decreto. O nome civil não representa estas pessoas, logo, a insistência em mencioná-lo é uma forma de agressão simbólica. A solução efetiva para a situação dos documentos das pessoas transgêneras é a alteração oficial dos documentos, porém, atualmente existem muitos entraves que dificultam a retificação. Nesse sentido é urgente a aprovação da lei de identidade de gênero (PLC 5002-2013 denominada “Lei João W. Nery”). Enquanto não é sancionada, pessoas transgêneras precisam dispor do máximo de “provas” cissexistas possíveis (tais como laudos pseudocientíficos de profissionais “psi” e médicos, fotos, etc) que validem suas identidades. Nesse sentido, pessoas trans* que estudam na Unicamp podem pedir para que seus documentos externos venham com o nome “social”, para que o volume de provas a ser apresentado ao juiz seja capaz de aumentar a chance de ele ser benevolente ao ponto de realizar a retificação, um direito que deveria ser inalienável. Essa estratégia, não significa, no entanto, que estamos anuentes a esta forma de colocar o nome social nos documentos externos.

Se é “necessário” que o nome civil conste nos documentos externo (sendo esse fato em si já bastante questionável) acredito que existem n formas de constá-lo. O nome social da pessoa trans* não deve estar em uma posição não simétrica com o nome social das pessoas cisgêneras. Sim, vou propor um deslocamento de sentido: pessoas cisgêneras também tem um nome social. A diferença está no fato que o nome social das pessoas cisgêneras é legitimado institucionalmente, ou seja, ele coincide com o seu registro civil. Então, se os nomes sociais das pessoas, sejam trans* ou cis, não diferem em natureza, não devem diferir na forma que são mencionadas em documentos oficiais. Repudio qualquer forma de entender o termo “nome social” como exclusividade de pessoas transgêneras. Não precisamos ser exotificadxs e marginalizadxs pela cisnorma. Simetria para nome de pessoas trans* e cis é fundamental para a dignidade das pessoas trans*. Repensar formas de categorizarmos o mundo e os conceitos como o próprio nome aqui se tornam muito importantes para que pessoas trans* não sejam empurradas para uma lógica desumanizadora e para que as práticas que ironicamente visam protegê-las não se tornem mais uma forma de opressão.

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Categoria Mulher: não se deixe “enganar”

“Mulheres”. O que nos vem à cabeça quando dizemos essa palavra? O quão amplo é a nossa categoria “mulher”? Ela abrange mulheres negras, deficientes, homo/bi/pansexuais, pobres? Até que ponto homogeneizamos essas categorias que, a princípio, devem ser tão amplas? Até que ponto as especificidades estão incluídas no nosso conceito sobre “ser mulher” ou até quanto elas precisam ser explicitamente mencionadas para que o que buscamos referenciar seja inteligível?

Muitas vezes é preciso explicitar sobre qual mulher estamos falando: a negra, a pobre, a deficiente, a não heterossexual, a fim de não apagar certas demandas específicas. Quando nos propomos a lutar pela igualdade entre os gêneros e dizemos que defendemos a “mulher”, devemos incluir todas as mulheres e, consequentemente, todas as suas especificidades. Uma mulher negra não vai ser livre da opressão enquanto não lutarmos contra o racismo, por exemplo.

Mas e se nem ao menos como mulher uma determinada mulher é socialmente reconhecida? Para ela, portanto se trata uma luta em dobro: além da necessidade de darmos visibilidade para determinadas especificidades desse grupo de mulheres, precisamos, sobretudo, incluí-las no próprio conceito sobre o que é ser mulher. É este o caso das mulheres transgêneras.

Nos atentarmos sobre qual é o sujeito representado pelo nosso imaginário é um exercício importante: pode nos revelar o quanto nossa maneira de categorizar o mundo, incluindo aqui pessoas, pode ser excludente. Nesse sentido, o Transfeminismo luta pela defesa dos direitos e da dignidade das pessoas transgêneras. E isso só é possível através da conscientização e problematização acerca da categoria mulher, o que nos leva à luta pelo reconhecimento das mulheres transgêneras como mulheres. Deste modo, mulheres transgêneras e suas vozes deixarão de serem invisibilizadas na sociedade. A disputa por uma palavra, neste caso a palavra “mulher”, é também uma luta política. É uma busca a fim de deslocar os sentidos únicos ditados pela norma cisgênera.

Frequentemente vejo que muitas pessoas se sentem no direito de desqualificar o gênero de pessoas transgêneras. O cissexismo está fortemente enraizado pela crença de que as pessoas nascem homens ou mulheres, sendo isso imutável. A partir desta ideia, as mulheres transgêneras vão ter suas identidades deslegitimadas e, consequentemente, desumanizadas. Não respeitar a identidade de gênero de uma pessoa trans* também é uma violência transfóbica. Temos que alertar para a não existência de uma ordem natural que legitima a identidade de gênero das pessoas cisgêneras.

Tanto as pessoas trans* como cis, todas elas possuem identidade de gênero e nenhuma é mais ancorada a uma suposta verdade biológica que a outra. Em termos de verdade ou mentira sobre nossas identidades, pessoas cis e trans* estão no mesmo barco. A mesma certeza ou dúvida a cerca das subjetividades das pessoas trans* está presente nas subjetividades das pessoas cis. Os barcos só se diferenciam na medida em que a identidade trans* é socialmente deslegitimada e isso nada tem de natural. É uma violência e, assim como o racismo, a homofobia e outras formas de opressão, precisa ser desnaturalizada e combatida.

Deslocar o sentido único de “mulheres” (incluindo nessa categoria as mulheres transgêneras) não se resume a uma ação que tem suas consequências apenas no “mundo das ideias”. Pelo contrário, existem muitas implicações práticas e cotidianas. Até mesmo as relações interpessoais não escapam de serem permeadas por relações de poder. Vejo muito sobre a necessidade de uma mulher trans*, ao se engajar em um relacionamento, ser “eticamente” obrigada a deixar explícito a sua identidade de gênero ou a sua morfologia genital. Essa exigência cissexista se liga muito a discursos que freqüentemente acusam pessoas transgêneras (em especial, mulheres) de “enganarem” seus parceiros.

Se entendermos a transgeneridade como mais uma característica qualquer, dentre tantas e quaisquer outras, se compreendemos que pessoas trans* e cis devem ser tratadas de forma simétrica, fica evidente que uma pessoa não é obrigada a fazer de sua transgeneridade seu cartão de visita, da mesma forma que uma pessoa cisgênera não o faz. Uma mulher transgênera não mente se diz que é uma mulher. Ela não é obrigada a falar sobre sua identidade ou genital assim como outra pessoa cisgênera não o é.

Com isso não estou querendo forçar uma obrigatoriedade de que as pessoas se relacionem com mulheres trans*. É evidente que não estou falando disso. Quem acredita neste discurso ou o pratica acaba acusando algo de perigoso nas mulheres trans*, o que reforça que elas são diferentes, aberrações e anomalias da natureza. Se transgeneridade é um fator tão decisivo a ponto de apenas por ele alguém se recusar a entrar em um relacionamento, certamente é porque vivemos em uma sociedade extremamente transfóbica. O discurso da necessidade de uma pessoa trans* ser obrigada a contar sobre sua identidade só se sustenta pela crença de que ser transgênero é uma abominação. Logo, compactuar com essa prática é reproduzir a violência que pessoas trans* sofrem, de que elas não merecem viver. Propaga-se assim a disforia.

Proponho uma lógica diferente: são as pessoas trans* que precisam ser protegidas de relacionamentos abusivos e não pessoas transfóbicas que precisam ser previamente “alertadas” sobre a condição transgênera. É o sentimento das pessoas transgêneras que está em jogo, pois são elas que estão sendo oprimidas. Ironicamente, já me deparei com argumentos que evocavam uma suposta “ética”. Pois bem, minha ética está em proteger quem de fato deve ser protegido. Então eu gostaria muito que essas pessoas que não gostam de se relacionar com pessoas trans* deixassem isso bem claro. Elas que devem estampar isso de antemão já que eu, enquanto mulher trans*, não quero ser enganada por alguma pessoa que pode de repente não gostar de mim apenas pelo fato de eu ser trans*. Afinal, a única excrescência ou anormalidade não está na transgeneridade, mas sim na ojeriza que surge quando se toma conhecimento da transgeneridade alheia. Logo, é o seu “asco” que deve ser mencionado, pelo seu caráter de excepcionalidade. E de uma única tacada, estaremos também deslocando o conceito de normalidade, de modo que ser transgênerx passa a ser encarado como um fato banal. Afinal de contas, quem está enganando, na verdade, é o cissexismo.

Caso contrário, é a transfobia que prevalecerá através do discurso que relega as pessoas trans* a desumanidade. Não vamos continuar reproduzindo a ideia que pessoas trans* são anormais, não-homens, não-mulheres de verdade ou simplesmente não-humanas. Não vamos continuar celebrando dias-das-mulheres sob uma terrível escuridão transfóbica, vamos celebrá-los mais conscientes de que a categoria mulher é mais ampla que a cisnorma pode supor.

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