Por anônimx
O telefone toca, era pouco mais de um ano atrás. É o antigo líder da antiga comunidade religiosa da qual eu fazia parte. Eu havia publicado no meu blog textos contando sobre o que lá acontecia, e ele, evidentemente, não gostou nem um pouco. Inicialmente, estava calmo, mas, percebendo em mim a mesma fragilidade de antigamente, começou a gritar. A imagem do líder gritador daquela comunidade emergiu de sua tumba para me aterrorizar novamente. E eu, bicho acuado, voltei para minha toca, assustado, calado.
Tudo o que eu queria, X, é que você virasse homem! Você é homem, X, você é homem?
…
Você consegue ouvir este som, querid@? Este som de vidro se estilhaçando e se esparramando? Esta sou eu me despedaçando toda por dentro. Mas ele tinha razão, eu não sou um homem. Fosse homem, teria gritado de volta, mostrado todas as contradições, todos os absurdos naquilo que ele dizia - e eram vários. Mas, como uma mulher, sofri calada, sem coragem de responder nada. Afinal, é assim que as mulheres se comportam… Ou não?
Desliguei o telefone. Fosse mulher, teria chorado, derramado em lágrimas a minha dor. Mas permaneci calado, apenas transparecendo o terror em minha face, pudesse alguém ver-me naquela hora. As lágrimas escorriam por dentro. Sabe como é, homem não chora… Chora?
Nunca havia percebido, nunca havia me dado conta da verdadeira natureza dos fatos: era tudo uma questão de gênero! Como quando meus antigos colegas de classe me chamavam de gay, dando-me apelidos, dizendo diversas vezes que eu deveria chupar o pau deles. Algumas vezes faziam-no em coro, puxando palavras-de-ordem nas aulas de educação física. Não conseguia compreender, afinal, eu gostava de uma menina e todos sabiam disso! Mais do que isso, me zoavam por causa disso! E eu pensava: “Eu não sou gay, eles sabem disso, por que continuam a me encher o saco?”
Era tudo uma questão de gênero quando, anos mais tarde, naquela comunidade religiosa, diziam-me que eu era uma criança imatura e que eu tinha que virar homem. Não à toa, rezei pra Deus pedindo que eu nunca deixasse de ser criança. Aquela feminilidade-criança escondida à força fez com que eu criasse uma criança imaginária, uma menina chamada Pureza. Ela era livre, pura, feminina e carregava um ursinho ao qual ela tinha o poder de dar a vida. Frustrava-me a minha inabilidade em alcançá-la.
Certa vez queria jogar futebol com as meninas daquela comunidade, mas fui proibido, pois era a vez das meninas. Era uma questão de gênero quando respondi a elas:
- Mas ninguém mandou Deus fazer-me menino…
Eu me sentia como se estivesse dentro de um armário. Havia um armário, eu sabia, não conseguia esticar os braços! Mas onde estava o armário? Eu não conseguia ver armário algum!
Não era uma questão de orientação sexual, não tinha dúvidas. Seria uma questão de identidade de gênero? Mas eu não me sinto como uma mulher… Demorou muito tempo para eu me permitir perguntar: mas eu sou um homem? Eu me sinto como um homem?
Quantas vezes me senti com medo de ser classificado como uma menina ou mulher por meu comportamento? Quantas vezes me senti desconfortável por me enquadrarem como menino ou homem em diversas situações? Não me seria possível contá-las, mas ao menos agora posso entendê-las. Como quando não me sentia confortável em cruzar as pernas como uma mulher ou de tirar a camisa como um homem. Afinal, não sou uma mulher, mas também não sou um homem. O medo de ser classificado como uma ou outro tornou-me um androide sem que eu pudesse perceber.
Mas não sou um androide, sou um andrógino. Não sou inumano, não sou sem gêneros: sou, sim, um homem, mas também sou uma mulher! Ah, e eu que pensava que apenas homens homossexuais é que gostavam de soltar a franga! Sou colorida como o arco-íris, brilhante como a purpurina, gosto de usufruir do gênero andrógino.
Eu sou toda cheia de gêneros!
Tenho, sim, permissão para me comportar como quiser. Sou um homem que gosta de usar esmalte, sou uma mulher que gosta de sua própria barba. O armário já não prende mais a menina, finalmente consegui alcançar sua mão e beijar-lhe os doces lábios. A leoa está solta e quer lutar pelo seu direito à existência.
Que texto lindo, fiquei emocionada! Adoro o blog de vocês, obrigada por tudo!
Aw, obrigada! Também adoramos o blog de vocês <3
Muito lindo e bom o texto. Esse blog é sensacional, um arraso só. Parabéns.
Obrigada! Agradecemos :)
minha gente!
que lindeza! <3
Uau! Um dos melhores textos que vi por aí! Identificação infinita!
Nunca me senti tão representad@ em tão poucas e sinceras linhas, quão lindo é este texto, e quão real é dentro do meu padrão de existir e Ser, ! parabéns e como dizia Lispector ” porque há o direito ao grito, então eu grito ”.. portanto, gritemos ao maximo e tod@s junt@s sempre !
Nossa menina, que texto incrível! Você faz incisão perfeita, precisamos tratar esta supuração cultural em que estamos envoltos.
Oi Neusa! Obrigada pelo comentário! O texto não é meu, é de uma pessoa anônima que pediu para publicar aqui no blog ;)
bjs!
Texto lindo, me identifiquei. Achei maravilhoso. Obrigado.