Arquivo do mês: abril 2013

Sou mulher?

Estava olhando para minha minibiografia na página “Quem Faz”, deste site: “Mulher trans* e transfeminista em constante processo de transição e autodescoberta”. Leio novamente, e meus olhos se detêm na minha autodescrição: “Mulher trans*”. Releio novamente: “Mulher”. Sou mulher?

Há tempos tenho me questionado sobre minha identidade de gênero. Eu sou realmente uma mulher? Olho para minha foto, ao lado da minibiografia. Ela já é antiga. Na ocasião que a tirei eu estava muito feliz: eu me sentia uma mulher. Hoje, me sinto lutando diariamente para me sentir uma mulher.

Já antes da minha transição, me livrei das ilusões e fantasias sobre me tornar uma mulher linda e maravilhosa tal qual uma larva que ao sair de seu casulo se transformou numa borboleta, e entendi que, por mais que fizesse terapia hormonal e passasse pela CRS minha condição transgênera seria sempre óbvia e exposta, e eu talvez nunca fosse vista pelas pessoas como mulher, por toda a minha vida. As mudanças que buscaria seriam apenas para meu próprio bem-estar pessoal. Apenas eu mudaria, e não o mundo ao meu redor.

Fiz as contas e concluí que, tendo minha condição transgênera eternamente exposta, seria alvo de preconceito e ofensas, e precisava encontrar uma forma de lidar com isso. Tentei “aprender” a lidar com reações negativas por, no início da minha transição, enquanto ainda me apresentava como homem perante a sociedade, transgredir aquela imagem masculina que eu deveria seguir. Passei a usar batom, sapatilhas, lenços e outros acessórios “femininos”. Nessa época criei meus mecanismos para lidar com os olhares reprovadores e condenadores, as piadinhas, e os cochichos.

Esporadicamente me vesti e me apresentei como mulher, em público e em plena luz do dia. Eu não buscava ser lida como mulher pela sociedade porque, na minha cabeça, não tinha a menor chance de conseguir isso. Ao invés disso, me acostumei a fazer disso mais uma transgressão da imagem masculina que eu mesma via no meu corpo, e a fazer dessa transgressão minha forma de autoafirmação da minha identidade de gênero feminina. Usei o que tinha aprendido de minhas experiências anteriores para lidar com o preconceito.

Enfim, tive que fazer várias viagens de avião num intervalo curto de tempo, e coloquei um maior “empenho” em me apresentar como mulher. Aparentemente esse empenho foi “recompensado”: as pessoas me viam como mulher, ao menos até o momento que ouvissem a minha voz, e arregalassem os olhos de susto. Me chamavam de “moça” ou “senhora”, mesmo olhando diretamente na minha cara! Eu fiquei muito, muito feliz na ocasião.

Foi pouco depois disso que tirei a foto citada acima. Por isso estava tão feliz: tinha conseguido fazer minha imagem corresponder à minha identidade de gênero. Estava tão confiante na época, que passei a expressar publicamente minha identidade de gênero feminina em espaços desconhecidos. Até mesmo tive coragem para usar o banheiro feminino em locais públicos. Foi nessa ocasião que passei a viver como mulher em full time, isto é, não mais me apresentava esporadicamente como mulher ao sair na rua. Agora, eu realmente vivia como mulher, para mim mesma e para a sociedade, em casa, na rua, no trabalho… 24 horas por dia. E tenho vivido assim, há alguns meses.

Eu cheguei a pensar que minha passabilidade como mulher cis aumentaria com o tempo. Hoje, meses depois, percebi que não. Ao contrário, tem sido mais difícil hoje, do que naquela época, em que tinha muito menos chances de conseguir isso. Por algum tempo fiquei me perguntando o que eu estava fazendo errado. Por fim, me dei conta de um problema sério que deixei surgir durante a autodescoberta e construção da minha identidade feminina: ao contrário da época que era “transgressora”, em que me apegava à crença de que era uma mulher, independente da minha aparência e das opiniões alheias, eu passei a medir o quanto sou mulher em função do reconhecimento da sociedade. No passado, eu não esperava por esse reconhecimento. Lidava diariamente com a desvalidação da minha identidade feminina, e nas ocasiões que fui passável, como eu realmente não estava esperando por isso, essa “validação” veio como uma agradável surpresa. Porém, quando passei a viver como mulher em tempo integral, passei a procurar ativamente por essa passabilidade, por essa validação. Meu sensor interno, que identifica quando não estou conseguindo ser passável como mulher cis, antes permanecia desligado, mas agora está ativado e no máximo. Simplesmente estou mais atenta às situações cotidianas em que minha identidade de gênero feminina é invalidada. É como sempre foi – só fiquei mais sensível e perceptiva.

Me sinto mulher, mas parece que minha “feminilidade”, seja lá o que isso for, é como uma fantasia que tiro, todos os dias, ao voltar do trabalho: ao remover os sapatos, o vestido, o modelador, a peruca, a maquiagem e os acessórios, o que sobra? A resposta incômoda, que tem me atormentado há tempos, é: um corpo masculino. Nada mais. Sim, desde meu contato com o Transfeminismo, sei que não é um corpo que faz de alguém uma mulher, mas o que há de intangível por dentro: a personalidade, a identidade. Apesar de ter abraçado essa verdade como boia de salvação, ainda tenho que lidar com esses sentimentos todos os dias.

Quando venço essa luta diária para ser vista como mulher, a recompensa é deixar de ter homens rindo de mim por ser um “homem travestido”, para ter mulheres rindo de mim porque me acham gorda, feia, com cabelo ruim, mal vestida – enfim, por ser uma mulher feia. É nessa hora que sinto falta dos privilégios masculinos que já tive, principalmente do privilégio de não ser medida pela minha aparência. No fim, a pressão conjunta de ser passável como mulher cis, e daí sofrer opressão machista para me encaixar num determinado padrão de beleza e ser medida por isso, me sobrecarregou, e me derrubou, por mais que eu tenha tentando estar pronta, emocionalmente e psicologicamente, para quando isso acontecesse.

No inicio da minha transição, estava convicta que preferia mil vezes ser uma mulher feia, do que passar o resto da vida como homem. Hoje? Bom… eu fui levada a experimentar as consequências de me apresentar e ser lida como mulher, e acabei revendo esse conceito. Mas, no final das contas, concluí que sim, eu não poderia estar vivendo de outra forma, e não deixarei de expressar e defender minha identidade de gênero feminina, de forma alguma. Deixar de fazer isso seria a morte. Sou mulher? Sim, sou mulher. E, em adição à opressão que já sofro por ser uma pessoa transgênera, também sou oprimida por ser mulher. Vou me lembrar disso da próxima vez que eu me questionar se sou mulher.

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Ambiguidades desejáveis e o estar prontx

Por Juno

Quando aquilo que nós desejamos, como parte integral da nossa identidade, é sermos lidxs de uma determinada forma, então imediatamente podemos começar a desenvolver expectativas sobre um ponto exato a partir do qual estamos confortáveis em apresentar esta expressão para que alguém a contemple. Queiramos ou não, nossa expressão de gênero será analisada e desígnios (determinações sobre pertencermos a um determinado gênero, sem consulta alguma) serão feitos. Nossos olhos são treinados pelos estereótipos de gênero a identificar quem pertence a um lado e quem pertence a outro. Aprendemos quais signos são masculinos, quais são femininos e não só começamos a ser capazes de identificar imediatamente, com grande facilidade, qual o gênero da pessoa para a qual olhamos, como também utilizamos esse conhecimento para executar e vestir os signos do gênero que nos foi designado. Assim construímos e reproduzimos o gênero, socialmente, conjuntamente. Tão bons ficamos em encaixar pessoas nos moldes binários que qualquer pessoa que está exposta a estes olhos socialmente treinados é uma pessoa sujeita à inspeção e à designação (tardia e constante) de seu gênero.

Enquanto trabalhamos dentro de uma visão cisgênera e com sujeitxs cis, estamos trabalhando com uma expressão esperada pela cisnorma: elas são fluidas, corriqueiras e irrelevantes. Tudo corre bem. Porque a cisnorma é homogênea e dominante, mas também coercitiva, seu treinamento é rigoroso: aquelxs que apresentam ambiguidade são condenadxs à condição de problemáticas essenciais. Para esta norma, isto é, para a forma como a sociedade ciscêntrica percebe os corpos e seus signos (como roupas, cortes de cabelo, pelos, vozes, andares, trejeitos, acessórios, anatomias), a ambiguidade é um problema daquele corpo que veste e executa signos ambíguos ou mistos. Ela não é uma evidência do problema que ela própria cria, como deveria, pois a mera existência de um campo de ambiguidades (ou androginia) significa que algo a mais pode ser expresso pelxs sujeitxs que estão fabricando e reproduzindo gêneros. O problema está, ao invés, nx corpo ambíguo. Isso faz parte de manter as coisas correndo de acordo com a cisnormatividade, porque empurra as expressões de gênero das pessoas que desviam da binária de volta para os moldes.

Quando lidamos conosco, isto é, com sujeitxs trans*, trabalhamos com diferentes expectativas da nossa parte e também com diferentes expectativas da parte daquelxs que fazem julgamentos sobre estas identidades. Porque nós estamos expressando um gênero, estamos criando algo que queremos expressar e, coletivamente, a sociedade está lendo essa expressão com a sua visão. Infelizmente, essa visão é cissexista. Falo de expectativas porque não somente estamos produzindo e exibindo um gênero, mas antes mesmo de fazê-lo nós temos algo que queremos expressar, e antes mesmo de sermos vistos nós temos algo que a sociedade deseja ver¹. Trabalhamos com estereótipos cissexistas de uma mulher e de um homem autênticxs, com desígnios compulsórios e morfologizantes, com estereótipos machistas e heteronormativos de uma mulher “apresentável” e de um homem “másculo”. Lidamos com problemáticas que não são apresentadas às pessoas cisgêneras; com critérios com as quais estas pessoas não são confrontadas. Lidamos, ademais, com uma binária opressiva que deixa à margem desta ótica qualquer identidade que não se encaixa ou se aproxima dos seus moldes.

Estas dinâmicas sistemáticas são o que irá condicionar as ansiedades e receios que algumas de nós, pessoas trans* com identidades não-binárias, sentimos de expor nossa expressão de gênero publicamente, e de colocar a nossa identidade de gênero como pública. Isto se dará independentemente do quanto já assimilamos, nós mesmxs, o que estamos expressando e o que desejamos expressar. Mais do que a leitura feita pela sociedade, nós temos a leitura que nós mesmxs fazemos do que é ideal para nós de acordo com o que queremos expressar e expressamos. E estes conceitos se dinamizam exatamente porque existe então um segundo conflito entre aquilo que é aceito ou negado pela sociedade, independentemente de nossos entendimentos pessoais sobre nossa identidade de gênero e nossa expressão de gênero. Estes conceitos parecem estar expostos para análise quer nós já estejamos ou não em harmonia com nossa própria expressão.

Isto é problemático não somente porque estamos sendo analisadxs, mas precisamente porque esta harmonia não parece ser relevante para quem faz a análise. O binarismo nos lê e imediatamente nos empurra para um dos lados diametrais dos seus moldes limitados e se enfurece se não consegue fazê-lo. Isto é, ou ele nos devolve para onde não sentimos pertencer, ou ele nos empurra para de onde estamos fugindo, ou ele nos considera a anomalia por não ter conseguido violentar-nos. O binarismo não está interessado nxs sujeitxs que lê, no que elxs têm a dizer, porque ele funciona com base numa lógica mecânica, objetiva e automática. Ele torna físico, imutável e natural algo imaterial, fluido e social.

Esta mecânica é o que impulsiona vários de nós na direção de uma expressão de gênero ambígua. Esta necessidade é, como podemos ver então, algo criado socialmente (e não inato, como se fosse uma patologia, tal qual as ciências psi adorariam chamar). E se nós temos uma expressão de gênero ideal, nós temos então um processo até alcançá-la. Como se pode presumir, para as pessoas cisgêneras isto flui muito bem: a expressão de gênero normatizada e esperada é a que sempre lhes constou, e basta-lhes expressar-se, vestir-se como sempre fizeram e continuar suas vidas como sempre as viveram. Para nós, pessoas trans* com identidades não-binárias, isto pode significar que precisamos buscar um certo grau de ambiguidade, um determinado grau de incerteza que não permita mera presunção de pertencimento a um gênero. Isso significa que apesar de confortos pessoais sobre nossa apresentação, ainda se sobreporá a isto a dissonância da cisnorma com o que estamos expressando “de fato”. Ela nos corrige sobre o que estamos expressando para nós mesmxs, e não só para o mundo que queremos habitar.

E buscar este determinado grau significa procurar um momento exato onde ele está acertado. Significa procurar uma determinada quantidade de ambiguidade que nos conforte no sentido de não permitir os empurrões mecânicos da cisnorma na direção de um dos lados da binária. Estas ambiguidades desejáveis são mecanismos de resistência e subversão, mas infelizmente elas possuem um ponto a ser atingido. Precisamos “estar prontxs” para habitar o mundo com nosso gênero exposto. E quando começamos a entrar em concordância com a nossa identidade nós percebemos como esta é uma faca de vários gumes, porque aqui entrará a autoridade classista do Capital, posto o fato de que investimentos precisam ser feitos — de resiliência, de tempo e de dinheiro — para que consigamos expressar a quantidade de ambiguidade necessária (caso sintamos a necessidade de expressar-nos assim) para que não causemos certezas sobre pertencermos exclusivamente a qualquer um dos dois gêneros binários: para que não nos leiam nem exclusivamente como homens, nem exclusivamente como mulheres.

Isto é especialmente problemático porque significa que a cisnorma está criando mais uma narrativa legítima da transgeneridade, desta vez para as pessoas trans* com identidades não-binárias. Uma narrativa capitalista, mediada pelo dinheiro, que exige uma certa forma de se vestir, uma certa falta de obviedade na sua expressão de gênero. Mas esta obviedade é ela própria fabricada pelos mesmos estereótipos binários que nos coíbem. Algumas pessoas trans* com identidades não-binárias vestem-se de formas que nós presumiríamos pertencer ao gênero masculino ou feminino. E isto não as torna mais ou menos binárias, mais ou menos trans*. É importante percebermos que parte da sensação de que precisamos estar prontxs/ambíguxs vem da imposição para que desviemos de como estávamos antes, e que esta imposição também é cisnormativa e social. Mas que, ao mesmo tempo, o desejo de estarmos prontxs também é uma manifestação de nossa identidade trans*, e do caminho que estamos traçando para a nossa própria subjetividade. Esta interpolação que parece contraditória só se resolve (e deixa de parecer contraditória) se soubermos aceitar ambas estas narrativas trans* (e todas as outras) como perfeitamente legítimas; se soubermos conferir a estas pessoas trans* a devida agência sobre suas identidades.

Não podemos criar uma estética não-binária, uma estética queer, porque estas criações são capitais e violentas, e porque elas não fariam sentido mesmo que não o fossem. A forma como você se veste não lhe torna mais ou menos genderqueer, mais ou menos de um ou mais gêneros, ou agênerx, porque estas são narrativas possíveis, e não há narrativas legítimas da experiência trans*. Uma pessoa precisa ter acesso à sua dignidade. Grande parte do trabalho de instituições cisnormativas, principalmente das ciências psi, é a regulamentação do que é uma narrativa trans*. Do que caracteriza a transgeneridade e de quais elementos precisamos para podermos de fato ser trans*. Isto cria uma narrativa científica, tradicional e medicalizada que simplesmente faz a manutenção de nossos entendimentos sobre nosso gênero enclausurados dentro do espaço apertado e sujo que a cisnorma nos reserva, espremidxs entre as duas experiências por ela enaltecidas: a de homens cis e mulheres cis. Mas esta não é uma autoridade que a Ciência possui: esta autoridade é nossa, e somente nossa. É ideal que nós, pessoas trans*, possamos viver nossas experiências e estar bem com nossos gêneros vestindo as roupas que quisermos vestir, quer o Capital nos autorize, quer não; quer a cisnorma leia isto como ambíguo, quer não (sendo esta nossa vontade ou não). E para isto é central que não criemos uma segunda normatividade: uma experiência queer/ambígua/andrógina que seja estática e comparativa; que nos permita desautorizar alguém de sua própria identidade, ou fazer com que se sinta desautorizadx mesmo que indiretamente.

Eu, pessoa genderqueer, estou prontx. Nasci prontx. Estava prontx antes da puberdade e continuo o estando agora. Mas algo me impede de estar lá, onde eu gostaria de me apresentar com meu nome correto, com minha falta de gênero, com minhas roupas do gênero ao qual fui designadx. Sinto que serei designadx, como sou em todo lugar. Sinto que todos os olhos lerão minha experiência como a experiência de um gênero ao qual não pertenço. Sinto que se explicar-me, não irão acreditar. E sinto que tudo isso só acontecerá porque irão me encaixar, através de uma ótica binarista, a um gênero específico porque eu ainda não atingi a ambiguidade que desejo. O principal fator que contribui para esta falta é o da minha posição enquanto desempregadx. E isso significa que não me sinto prontx. Este sentimento não é inato, biológico, patológico: ele é social, capital e patriarcal. Me sinto incompletx, embora inteirx. Não consigo expressar meu gênero como de fato é, embora possa.

Mas quem é que não está prontx? Eu ou estes olhos que me leem?

E quem é que está prontx?

¹Aqui, podemos aplicar a noção de Ideologia muito claramente, pois sabemos que as percepções binárias-cissexistas sobre nossos gêneros, as de que “naturalmente” existem apenas dois; de que “naturalmente” os percebemos nxs outrxs; de que “naturalmente” estão inscritos nos nossos cérebros/genitais/cromossomos são ideias enraizadas num senso-comum que favorece e, em certa medida, advém da cisnormatividade, e que é justificado como se a natureza simplesmente fosse desta forma: binária e evidente. Esta naturalização do gênero está diretamente conectada, alimentada e construída pela Ciência, num conjunto de biologia-anatomia e medicina-ciências psi. A agência das pessoas trans* está, portanto, novamente retirada, e a sua “natureza” precisa ser entendida pela Ciência, como se esta fosse imparcial e não reproduzisse as noções binaristas e cissexistas que ela mesma produz juntamente com a religião, com o patriarcado, com o Estado. Este último, que, para justificar as violências que cometerá contra as pessoas trans* ao mediar os serviços que irá fornecer ou deixar de fornecer-lhes (gatekeeping), usará da própria Ciência numa retroalimentação apropriativa.

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