Por Juno
Quando aquilo que nós desejamos, como parte integral da nossa identidade, é sermos lidxs de uma determinada forma, então imediatamente podemos começar a desenvolver expectativas sobre um ponto exato a partir do qual estamos confortáveis em apresentar esta expressão para que alguém a contemple. Queiramos ou não, nossa expressão de gênero será analisada e desígnios (determinações sobre pertencermos a um determinado gênero, sem consulta alguma) serão feitos. Nossos olhos são treinados pelos estereótipos de gênero a identificar quem pertence a um lado e quem pertence a outro. Aprendemos quais signos são masculinos, quais são femininos e não só começamos a ser capazes de identificar imediatamente, com grande facilidade, qual o gênero da pessoa para a qual olhamos, como também utilizamos esse conhecimento para executar e vestir os signos do gênero que nos foi designado. Assim construímos e reproduzimos o gênero, socialmente, conjuntamente. Tão bons ficamos em encaixar pessoas nos moldes binários que qualquer pessoa que está exposta a estes olhos socialmente treinados é uma pessoa sujeita à inspeção e à designação (tardia e constante) de seu gênero.
Enquanto trabalhamos dentro de uma visão cisgênera e com sujeitxs cis, estamos trabalhando com uma expressão esperada pela cisnorma: elas são fluidas, corriqueiras e irrelevantes. Tudo corre bem. Porque a cisnorma é homogênea e dominante, mas também coercitiva, seu treinamento é rigoroso: aquelxs que apresentam ambiguidade são condenadxs à condição de problemáticas essenciais. Para esta norma, isto é, para a forma como a sociedade ciscêntrica percebe os corpos e seus signos (como roupas, cortes de cabelo, pelos, vozes, andares, trejeitos, acessórios, anatomias), a ambiguidade é um problema daquele corpo que veste e executa signos ambíguos ou mistos. Ela não é uma evidência do problema que ela própria cria, como deveria, pois a mera existência de um campo de ambiguidades (ou androginia) significa que algo a mais pode ser expresso pelxs sujeitxs que estão fabricando e reproduzindo gêneros. O problema está, ao invés, nx corpo ambíguo. Isso faz parte de manter as coisas correndo de acordo com a cisnormatividade, porque empurra as expressões de gênero das pessoas que desviam da binária de volta para os moldes.
Quando lidamos conosco, isto é, com sujeitxs trans*, trabalhamos com diferentes expectativas da nossa parte e também com diferentes expectativas da parte daquelxs que fazem julgamentos sobre estas identidades. Porque nós estamos expressando um gênero, estamos criando algo que queremos expressar e, coletivamente, a sociedade está lendo essa expressão com a sua visão. Infelizmente, essa visão é cissexista. Falo de expectativas porque não somente estamos produzindo e exibindo um gênero, mas antes mesmo de fazê-lo nós temos algo que queremos expressar, e antes mesmo de sermos vistos nós temos algo que a sociedade deseja ver¹. Trabalhamos com estereótipos cissexistas de uma mulher e de um homem autênticxs, com desígnios compulsórios e morfologizantes, com estereótipos machistas e heteronormativos de uma mulher “apresentável” e de um homem “másculo”. Lidamos com problemáticas que não são apresentadas às pessoas cisgêneras; com critérios com as quais estas pessoas não são confrontadas. Lidamos, ademais, com uma binária opressiva que deixa à margem desta ótica qualquer identidade que não se encaixa ou se aproxima dos seus moldes.
Estas dinâmicas sistemáticas são o que irá condicionar as ansiedades e receios que algumas de nós, pessoas trans* com identidades não-binárias, sentimos de expor nossa expressão de gênero publicamente, e de colocar a nossa identidade de gênero como pública. Isto se dará independentemente do quanto já assimilamos, nós mesmxs, o que estamos expressando e o que desejamos expressar. Mais do que a leitura feita pela sociedade, nós temos a leitura que nós mesmxs fazemos do que é ideal para nós de acordo com o que queremos expressar e expressamos. E estes conceitos se dinamizam exatamente porque existe então um segundo conflito entre aquilo que é aceito ou negado pela sociedade, independentemente de nossos entendimentos pessoais sobre nossa identidade de gênero e nossa expressão de gênero. Estes conceitos parecem estar expostos para análise quer nós já estejamos ou não em harmonia com nossa própria expressão.
Isto é problemático não somente porque estamos sendo analisadxs, mas precisamente porque esta harmonia não parece ser relevante para quem faz a análise. O binarismo nos lê e imediatamente nos empurra para um dos lados diametrais dos seus moldes limitados e se enfurece se não consegue fazê-lo. Isto é, ou ele nos devolve para onde não sentimos pertencer, ou ele nos empurra para de onde estamos fugindo, ou ele nos considera a anomalia por não ter conseguido violentar-nos. O binarismo não está interessado nxs sujeitxs que lê, no que elxs têm a dizer, porque ele funciona com base numa lógica mecânica, objetiva e automática. Ele torna físico, imutável e natural algo imaterial, fluido e social.
Esta mecânica é o que impulsiona vários de nós na direção de uma expressão de gênero ambígua. Esta necessidade é, como podemos ver então, algo criado socialmente (e não inato, como se fosse uma patologia, tal qual as ciências psi adorariam chamar). E se nós temos uma expressão de gênero ideal, nós temos então um processo até alcançá-la. Como se pode presumir, para as pessoas cisgêneras isto flui muito bem: a expressão de gênero normatizada e esperada é a que sempre lhes constou, e basta-lhes expressar-se, vestir-se como sempre fizeram e continuar suas vidas como sempre as viveram. Para nós, pessoas trans* com identidades não-binárias, isto pode significar que precisamos buscar um certo grau de ambiguidade, um determinado grau de incerteza que não permita mera presunção de pertencimento a um gênero. Isso significa que apesar de confortos pessoais sobre nossa apresentação, ainda se sobreporá a isto a dissonância da cisnorma com o que estamos expressando “de fato”. Ela nos corrige sobre o que estamos expressando para nós mesmxs, e não só para o mundo que queremos habitar.
E buscar este determinado grau significa procurar um momento exato onde ele está acertado. Significa procurar uma determinada quantidade de ambiguidade que nos conforte no sentido de não permitir os empurrões mecânicos da cisnorma na direção de um dos lados da binária. Estas ambiguidades desejáveis são mecanismos de resistência e subversão, mas infelizmente elas possuem um ponto a ser atingido. Precisamos “estar prontxs” para habitar o mundo com nosso gênero exposto. E quando começamos a entrar em concordância com a nossa identidade nós percebemos como esta é uma faca de vários gumes, porque aqui entrará a autoridade classista do Capital, posto o fato de que investimentos precisam ser feitos — de resiliência, de tempo e de dinheiro — para que consigamos expressar a quantidade de ambiguidade necessária (caso sintamos a necessidade de expressar-nos assim) para que não causemos certezas sobre pertencermos exclusivamente a qualquer um dos dois gêneros binários: para que não nos leiam nem exclusivamente como homens, nem exclusivamente como mulheres.
Isto é especialmente problemático porque significa que a cisnorma está criando mais uma narrativa legítima da transgeneridade, desta vez para as pessoas trans* com identidades não-binárias. Uma narrativa capitalista, mediada pelo dinheiro, que exige uma certa forma de se vestir, uma certa falta de obviedade na sua expressão de gênero. Mas esta obviedade é ela própria fabricada pelos mesmos estereótipos binários que nos coíbem. Algumas pessoas trans* com identidades não-binárias vestem-se de formas que nós presumiríamos pertencer ao gênero masculino ou feminino. E isto não as torna mais ou menos binárias, mais ou menos trans*. É importante percebermos que parte da sensação de que precisamos estar prontxs/ambíguxs vem da imposição para que desviemos de como estávamos antes, e que esta imposição também é cisnormativa e social. Mas que, ao mesmo tempo, o desejo de estarmos prontxs também é uma manifestação de nossa identidade trans*, e do caminho que estamos traçando para a nossa própria subjetividade. Esta interpolação que parece contraditória só se resolve (e deixa de parecer contraditória) se soubermos aceitar ambas estas narrativas trans* (e todas as outras) como perfeitamente legítimas; se soubermos conferir a estas pessoas trans* a devida agência sobre suas identidades.
Não podemos criar uma estética não-binária, uma estética queer, porque estas criações são capitais e violentas, e porque elas não fariam sentido mesmo que não o fossem. A forma como você se veste não lhe torna mais ou menos genderqueer, mais ou menos de um ou mais gêneros, ou agênerx, porque estas são narrativas possíveis, e não há narrativas legítimas da experiência trans*. Uma pessoa precisa ter acesso à sua dignidade. Grande parte do trabalho de instituições cisnormativas, principalmente das ciências psi, é a regulamentação do que é uma narrativa trans*. Do que caracteriza a transgeneridade e de quais elementos precisamos para podermos de fato ser trans*. Isto cria uma narrativa científica, tradicional e medicalizada que simplesmente faz a manutenção de nossos entendimentos sobre nosso gênero enclausurados dentro do espaço apertado e sujo que a cisnorma nos reserva, espremidxs entre as duas experiências por ela enaltecidas: a de homens cis e mulheres cis. Mas esta não é uma autoridade que a Ciência possui: esta autoridade é nossa, e somente nossa. É ideal que nós, pessoas trans*, possamos viver nossas experiências e estar bem com nossos gêneros vestindo as roupas que quisermos vestir, quer o Capital nos autorize, quer não; quer a cisnorma leia isto como ambíguo, quer não (sendo esta nossa vontade ou não). E para isto é central que não criemos uma segunda normatividade: uma experiência queer/ambígua/andrógina que seja estática e comparativa; que nos permita desautorizar alguém de sua própria identidade, ou fazer com que se sinta desautorizadx mesmo que indiretamente.
Eu, pessoa genderqueer, estou prontx. Nasci prontx. Estava prontx antes da puberdade e continuo o estando agora. Mas algo me impede de estar lá, onde eu gostaria de me apresentar com meu nome correto, com minha falta de gênero, com minhas roupas do gênero ao qual fui designadx. Sinto que serei designadx, como sou em todo lugar. Sinto que todos os olhos lerão minha experiência como a experiência de um gênero ao qual não pertenço. Sinto que se explicar-me, não irão acreditar. E sinto que tudo isso só acontecerá porque irão me encaixar, através de uma ótica binarista, a um gênero específico porque eu ainda não atingi a ambiguidade que desejo. O principal fator que contribui para esta falta é o da minha posição enquanto desempregadx. E isso significa que não me sinto prontx. Este sentimento não é inato, biológico, patológico: ele é social, capital e patriarcal. Me sinto incompletx, embora inteirx. Não consigo expressar meu gênero como de fato é, embora possa.
Mas quem é que não está prontx? Eu ou estes olhos que me leem?
E quem é que está prontx?
¹Aqui, podemos aplicar a noção de Ideologia muito claramente, pois sabemos que as percepções binárias-cissexistas sobre nossos gêneros, as de que “naturalmente” existem apenas dois; de que “naturalmente” os percebemos nxs outrxs; de que “naturalmente” estão inscritos nos nossos cérebros/genitais/cromossomos são ideias enraizadas num senso-comum que favorece e, em certa medida, advém da cisnormatividade, e que é justificado como se a natureza simplesmente fosse desta forma: binária e evidente. Esta naturalização do gênero está diretamente conectada, alimentada e construída pela Ciência, num conjunto de biologia-anatomia e medicina-ciências psi. A agência das pessoas trans* está, portanto, novamente retirada, e a sua “natureza” precisa ser entendida pela Ciência, como se esta fosse imparcial e não reproduzisse as noções binaristas e cissexistas que ela mesma produz juntamente com a religião, com o patriarcado, com o Estado. Este último, que, para justificar as violências que cometerá contra as pessoas trans* ao mediar os serviços que irá fornecer ou deixar de fornecer-lhes (gatekeeping), usará da própria Ciência numa retroalimentação apropriativa.
Ótimo texto!
Faz um tempo já que acompanho blogs sobre genderqueer, já tendo me identificado bastante com essa identidade. Mas logo comecei a notar uma certa estética que passou a me incomodar… bem como colocado no texto, como se houvessem experiências “legítimas” de quem foge da norma. E de certa forma, noto que parte da minha indumentária passou a refletir um pouco dessa estética, apesar das minhas críticas… hehe
Acho que essa é uma discussão bem interessante. Ao menos pra mim, é. E eu gostaria de problematizar também a ideia de “trans* não-binárixs” - será que só é possível ser não-binárix se identificando como trans*? É uma associação (ainda que conceitual) automática quando de alguma forma se rompe com a normatividade de gênero, ser consideradx trans*? Isso é uma coisa que me incomoda um pouco na ideia de genderqueer - como se as dissidências e questionamentos só fossem possíveis ao se abandonar (da forma “legítima” ou legitimada) completamente a normatividade cis, e como se “as pessoas cis” ocupassem perfeitamente os extremos da escala binária de gêneros…
Enfim, são perguntas que me faço e que ainda estou tentando formular, tanto do ponto de vista teórico/conceitual quanto pessoalmente mesmo. Acho que vivo uma série de tensionamentos que me situam em algum lugar não binário, mas estou longe de me considerar/sentir trans. E acho também que há várias formas de se viver esses não binarismos para além das narrativas hegemônicas, por isso mesmo gostei tanto do texto =)
Oi, Coruja.
Essa estética é profundamente problemática, principalmente porque ela seria a criação das fundações de um código de gêneros não-binários, uma vez que estes signos ainda não estão determinados da forma como os signos masculinos e femininos estão. É preciso combater o estabelecimento e a vanglorização desta estética justamente por causa da desconstrução do gênero.
Sobre suas perguntas a cerca das identidades e seus nomes, irei responder sobre o campo político e sobre as necessidades e desnecessariedades, principalmente porque no campo pessoal não há o que falar: toda pessoa é soberana de sua própria identidade, e a audodeterminação e a agência são invioláveis ferramentas dela sobre si mesma.
“será que só é possível ser não-binárix se identificando como trans*?”
Não, não é somente possível ser não-binárix se identificando como trans*. Muitas pessoas que se identificam como queers (dentro do aspecto do gênero, especificamente), principalmente que inteligibilizam queer como sendo uma identidade de gênero, ou uma abstenção das normas de gênero, não se identificam como trans*, e entendem isto como estar fora de uma dicotomia trans/cis porque ambas estas experiencias poderiam ser binárias.
Contudo, se nos apegamos à definição de cis como qualquer pessoa que se identifica pelo gênero designado no nascimento, e de trans* como qualquer pessoa que não se identifica pelo gênero designado no nascimento, as pessoas não-binárias terão sido engolidas sim pela definição de trans* enquanto um termo guarda-chuva. E, sim, não nos enganemos mesmo: isso implica numa violência.
“É uma associação (ainda que conceitual) automática quando de alguma forma se rompe com a normatividade de gênero, ser consideradx trans*?”
Não. Ser trans* convencionalmente não se define como romper com a normatividade de gênero, mas romper com o gênero que te designaram coercitivamente no seu nascimento. Ser trans* portanto não está definido nesta visão sobre o quanto você rompe com as normatividades deste gênero, mas se você o utiliza como o seu, se você se sente identificado por ele. Eu não teria a audácia de dizer que isto é um requerimento para que você seja trans* (você mais adiante pergunta sobre isso) porque eu acho que ser trans* é uma categoria política de auto-identificação também. Contudo, as narrativas das pessoas trans* muitas vezes são de negação, de não adequação a este gênero designado coercitivamente enquanto categoria política em si mesmo, e isso é muito diferente de somente “romper com a normatividade de gênero”.
“como se as dissidências e questionamentos só fossem possíveis ao se abandonar (da forma “legítima” ou legitimada) completamente a normatividade cis”
Eu não acho que seja possível “abandonar completamente a normatividade cis” porque (1) não acho que seja possível caber completamente na normatividade cis (2) sempre haverá alguma forma de expressão de gênero convencionada a ambos os gêneros binários (3) sempre haverá fluidez mesmo com as pessoas cis, e isso precisa significar que a cisgeneridade não é somente que ela esteja enquadrada nas narrativas tidas como o que se espera que um gênero faça, mas justamente em como uma pessoa se identifica com aquele gênero, e se ela se identifica por ele para as outras pessoas.
Então talvez exista a noção de que nós pessoas trans* precisamos abandonar esta normatividade cis porque estamos transicionando (!) para uma experiência trans* ou para uma experiência do gênero com o qual nos identificamos enquanto pessoas trans*, e principalmente talvez haja a noção de que essa transição incorre num fim, num término. E isto é bastante binário. Estas noções, creio eu, existem em detrimento, sim, de todas as pessoas trans*.
“e como se “as pessoas cis” ocupassem perfeitamente os extremos da escala binária de gêneros”
Bem, é importante delimitar que estas identidades são políticas. Eu não posso ousar dizer a uma pessoa cis que ela ocupa perfeitamente um extrema da escala binária de gênero porque isto ocorre na negação de uma experiência dela que pode ser sim condicionada por normas de gênero. Mulheres cis não-heterossexuais, por exemplo, que possuem uma expressão de gênero butch estão à margem de discursos regulatórios de seu gênero sim, mesmo cabendo dentro da binária. Eu acredito que discursos que queiram dizer que este binarismo não lhes oprime, e principalmente que queiram propor que a cisgeneridade significa perfeito conforto e felicidade com o gênero e todas as normas e violências que dele decorrem, seria desmedido e violento.
Ninguém, vale grifar, ninguém ocupa perfeitamente nenhum extremo das escalas binárias de gêneros. E isto não é por acaso, vale também lembrar: estes extremos precisam ser inalcançáveis horizontes de perfeição, moldados pela ótica capital da publicidade cis-heteronormativa e machista, para que façam sentido para a cisnormatividade exercer seu papel.
Ademais, vale lembrar que muitas pessoas cis se identificam como trans* e transgridem muito as normas de gênero. Isso é parte de sua expressão e de sua identidade, e ser trans* precisa ser para essas pessoas uma forma acima de tudo de identificação política.
O que quero dizer com isso é, em suma, que não podemos ousar criar uma narrativa legítima do que é ser trans*,e de dizer a essa pessoa que ela não é trans*, mas que meramente está transgredindo algumas regrinhas de gênero. Tampouco poderíamos também dizer a alguém que É, sim, trans*, porque seria igualmente autoritário.
Perdoe a prolixidade, e comente sempre. :)