Arquivo do mês: maio 2013

Divagações dxs Leitorxs: Explicando Genderqueer Para aquelxs que o não são

Por Maddox

Tradução: Jamal

“Eu tenho uma prima que acaba de sair do armário como genderqueer. Ela e eu fomos melhores amigas enquanto crescíamos e, naturalmente, eu quero entender o que sua experiência é, mas eu simplesmente não entendo. (Eu também não sei se me é permitido referir-me a minha prima enquanto ela / dela.)

Eu posso entender o sentimento de que você devesse ser de um gênero diferente de seu corpo, ou do que você foi criado, mas eu não entendo como seria não se sentir como pertencente a nenhum dos sexos. É sobre as construções sociais em torno de que a sociedade diz que meninas e meninos / homens e mulheres devem ser? Porque eu entendo aqueles que rejeitam estereótipos, não gostam de cozinhar / cor-de-rosa / salto alto / etc.

Acho que eu deveria perguntar a ela, mas eu não quero incomodá-la muito. Você pode fornecer material on-line para eu ler sobre a experiência de ser genderqueer?”

Obrigadx por vir aqui e fazer um esforço para compreender seu/sua primx. Elx se mostrou valente em sair do armário e em confiar em você informações pessoais, e um sinal de que elx confia em você uma informação pessoal preciosa.

O que é Genderqueer?

Primeiro, cada pessoa que se identifica como genderqueer define seu gênero de forma diferente. Isso ocorre porque genderqueer tornou-se um termo genérico que engloba uma grande gama de gênero de forma que a ser realmente diferente para cada indivíduo.

Eu estou usando pronomes de gênero neutro “elxs” para seu/sua primx, pois é a opção mais segura em minha mente. Nós não sabemos as preferências de pronome delx: você vai ter que perguntar. Sério, é só dizer “que pronome você prefere?” Você vai ter que perguntar um monte de coisas, como o nome que de preferência, como você deve abordá-lx em público e em privado (porque elx podem estar fora do armário ou não para pessoas diferentes) e, mais importante, o que genderqueer significa para elx.

Para um grande número de pessoas que se identificam como genderqueer, sua identidade de gênero – e a forma como expressá-la - continua a evoluir com o passar dos anos. Isso inclui roupas, pronomes, nomes, transição, transição física, médica, e outras coisas. Não é necessariamente que as pessoas genderqueer estão confusxs; apenas que descobrir o que você entende sobre sua própria identidade pode ser um processo longo, que muitas vezes envolve desaprender o que deveríamos ser.

Sair do armário não significa que necessariamente elx irá compartilhar todo o processo com você, ou porque elx optou por manter algumas coisas privadas (por qualquer motivo), ou elx pode ser apenas tímidx em relação ao assunto. Eu não falo muito sobre o assunto com qualquer 1 de meus/minhas amigxs há anos. Como alguém de fora, pode ser frustrante ver as mudanças e se sentir como se estivesse sendo mantido no escuro. Seja paciente com essas mudanças. Se elx se sentiu confortável o suficiente para falar com você, é melhor conversar sobre o assunto do que presumir alguma identidade.

Fazendo perguntas

A melhor coisa que você pode fazer agora é fazer perguntas: para outrxs (como eu, ou outrxs blogueiros), para si mesmx (você ficaria surpresx com o quanto você pode aprender sobre si mesmx no processo), e seu/sua primx (embora não todas as perguntas devem ser dirigidas a elx, não tente invadir a privacidade pessoal).

Sei que você provavelmente vai cometer um monte de erros ao longo do caminho, mas todos começaram do início, e finalmente aprenderam. Contanto que você seja respeitosx e honestx com suas intenções, suas ações serão apreciadas.

Explicando Genderqueer para alguém que não é

Agora, para chegar ao cerne de sua pergunta:

“Eu posso entender o sentimento de que você devesse ser de um gênero diferente do que você foi criado como, mas eu não entendo como seria se sentir de ambos os sexos.”

Como eu disse, comece com algumas perguntas. Eu estou supondo que você é uma menina, e que você se sinta confortável ao se identificar como uma menina. Mas talvez você não goste de usar salto alto, ou cozinhar, ou odeia rosa - rejeitando coisas “femininas”, como você apontou. No entanto, você ainda se sente como uma menina. Por quê? O que faz você se sentir desse jeito? Espero que você possa entender que pode ser extremamente difícil explicar sua identidade de gênero para outra pessoa.

E se eu lhe disser que amanhã você vai se sentir exatamente a mesma, e se ver da mesma forma. No entanto, todas as pessoas lhe veem como um homem, lhe tratam como um homem, e esperam que você faça coisas de homem. É realmente difícil imaginar isso, eu sei, por isso vamos fazer um experimento.

Tente caminhar para o banheiro dos homens. Sério, experimente na próxima vez que você está no cinema. Avalie o seu nível de conforto e o seu senso de segurança. Tente andar no vestiário dos homens. Apresente-se a alguém como “John” - Como se sente (errado, estranho)? Como as pessoas vão tratá-la (com desdém, com surpresa, com o ridículo)? Agora imagine olhando para si mesmo no espelho e tendo barba ou barba por fazer, ou usando um barbeador elétrico. Ninguém está olhando para o espelho, exceto você, mas como você se sente?

Transgênerxs tem uma experiência semelhante: a desconexão entre o seu sexo de nascimento e o sexo com o qual se identificam, além de como as pessoas as veem e o que se espera delxs. Pessoas transexuais que estão dentro do binário encontram conforto no outro lado do espectro: se elxs nasceram homens, elxs se vêem como mulheres, e se sentem bem tendo a aparência de mulheres e sendo visto como meninas ou mulheres.

No entanto, algumas pessoas trans * sentem angústia ou desconforto ao colocar-se no lado feminino, bem como o lado masculino. Não se sentem muito bem em nenhuma caixa. Outras pessoas sentem que pertencem a ambos os lados, ou mais de um lado do que o outro. Esta é apenas uma pequena parte de como as pessoas genderqueer experimentam o seu gênero.

Eu como Trans / Gênero / Queer

Eu escrevi algumas postagens sobre como eu sinto o meu gênero como neutro. E apesar do jeito de eu expressar e representar o meu gênero no mundo ter mudado, a minha identidade de gênero não mudou. Ainda é neutro - e minha experiência dele- é apenas um de uma infinidade de variações de experiências genderqueer e transgênerxs.

N.E. Artigo original: http://neutrois.me/2013/04/17/explaining-genderqueer-to-those-who-are-not/

Confira também o material do Coletivo Safira sobre Gênero-Queer: http://coletivosafira.org/post/49865695756

15 Comentários

Arquivado em Genderqueer, Reflexões, Traduções

O Estatuto do Nascituro e o controle de todos os nossos corpos

Aparentemente, hoje o Estatuto do Nascituro voltará à pauta do congresso. O Estatuto do Nascituro é um PL absurdamente machista que visa controlar o corpo das mulheres cis, determinando que a vida começa na contracepção e garantindo direitos ao feto/embrião. O projeto é claramente uma tentativa de restringir ainda mais o aborto, nos dois únicos casos onde ele é permitido no Brasil: estupro e risco de vida para x gestante.

Para além de discutir como isso afeta homens trans* que poderiam necessitar de um aborto, o ponto desse texto é discutir o controle do Estado sobre nossos corpos. Nós, trans*, sabemos como é ter nossos corpos controlados e regulados pelo Estado – literalmente. Muitxs de nós não utilizamos hormônios sem autorização médica. Muitxs de nós não fazemos nenhuma alteração corporal sem um laudo psiquiátrico nos autorizando. Nossas vidas estão sob total controle médico e jurídico que arbitrariamente decide sobre nossos corpos e identidades. Através da patologização trans*, se arrogam no direito de controlar nossas vidas. Somos eternamente xs “disfóricxs de gênero”.

Da mesma forma, o Estatuto do Nascituro planeja perversamente retirar os já pouquíssimos direitos que mulheres cis têm de abortar nos casos já citado. Planejam controlar a contracepção e com isso controlar e legislar sobre os corpos das mulheres cis. O Estatuto é uma tentativa de instaurar a força uma teocracia em nossa sociedade. A perversidade do Estatuto do Nascituro e seus efeitos são tão abrangentes, que abrirá uma brecha para tornar mulheres cis automaticamente criminosas em potencial quando gestantes; impedirá pesquisas com células troncos e afins; estipulará através de uma visão teocrática quando se inicia a vida; ignorará (ainda mais) as mulheres cis vítimas de abortos inseguros – em especial as mulheres pobres.

Um Estado que legisla sobre determinados corpos é, como bem sabemos, um estado violento, repressivo, opressor. Lutamos já há algum tempo contra o controle do Estado em relação aos corpos trans* e não podemos permitir tais investidas para a ampliação desse controle para nenhuma outra mulher.

Para mais informações:

http://estatutonascituronao.fw2.com.br/

http://contraoestatutodonascituro.wordpress.com/

 

 

 

2 Comentários

Arquivado em Aborto, Assédio/Estupro, Despatologização, Religião

Tropos Transfóbicos Nº 7 - Socialização infantil

[N.T. As siglas utilizadas no texto foram traduzidas e estão devidamente explicadas no fim do texto. Os grifos em itálico são da autora; os grifos em negrito são da tradutora].

Por Lisa Harney

Tradução: Hailey Kaas

Eu escrevi isso em algum outro lugar, como resposta a uma questão sobre homens trans e privilégio masculino. A resposta, em específico, se dirigia para alguém que sugeriu que homens trans não recebem privilégio masculino por que são aparentemente socializados como meninas e treinados para serem mulheres. Com isso em vista, a maior parte desse texto é uma resposta a esses comentários.

Além disso, coloquei links para o little light’s Fair [blog em inglês] e para um artigo sobre sexismo e pessoas trans [em inglês] relacionado com as experiências da Dra. Joan Roughgarden e do Dr. Ben Barres no que diz respeito à transição, privilégio masculino e sexismo.

A questão da socialização é um daqueles tópicos de discussão bizantina e perda de tempo, e focar-se na socialização como se todxs fôssemos programadxs como pequenos computadores na infância durante nosso crescimento, como se a socialização de gênero fosse direcionada a nós como mísseis teleguiados, e que crianças CAFAB [Coercitivamente designadx mulher ao nascer - CODEMAN] recebem apenas socialização direcionada para meninas e crianças CAMAB [Coercitivamente designadx homem ao nascer - CODEHAN] recebem apenas socialização direcionada para meninos, e todxs nós trans somos, então, como pessoas cis compartilhando nossa CASAB [Socialização Coercitivamente designadx ao nascer - SOCDAN] até o dia que começamos a transicionar.

Isso não só não é verdade como também é irrelevante. Nessa linha, pode-se argumentar também que deus implantou instruções no seu cérebro acerca do seu gênero.

Primeiramente, eu argumentaria que a natureza da socialização muda ao longo do tempo. Por exemplo, eu duvido que uma criança de dois anos esteja sendo socializada para apoiar cultura do estupro. Eu suspeito que a maioria da socialização nesse caso envolva treinamento para ir ao banheiro, brincadeiras e assistir a vídeos infantis. Claro, pode-se argumentar que está na cultura - e de fato está. Mas isso é algo que ambas as crianças CODEHAN e CODEMAN recebem. A única diferença é se as crianças se percebem ou não como alvos de atitudes que estão por trás dessa socialização. Ate porque os homens não mantêm uma patente exclusiva sob culpabilização das vítimas mulheres para casos de estupro ou violência doméstica, não é mesmo?

Todxs somos socializadxs para uma cultura machista. Somos ensinadxs que ser homem significa X e que ser mulher, Y. Não há um “lá fora” para nenhum de nós. Mulheres, assim como homens, são socializadas para serem machistas.

A discussão sobre o que essa socialização significa, no entanto, sempre coloca crianças (e eventualmente pré-adolescentes, e depois adolescentes) como receptorxs passivxs que nunca reagem àquela socialização. Nós nem discutimos se as crianças que recebem essas mensagens percebem-se como o alvo, o instigador ou ambos. Não falamos sobre o que essas mensagens significam para crianças trans que podem não se perceber como possuindo um gênero, ou podem se perceber como possuindo um gênero que difere de sua SOCDAN.

Por exemplo, eu vi várias mulheres cis presumindo que meninas trans quando eram crianças e adolescentes, interagiram com imagens de ideal de beleza (modelos ou capas de revista, por exemplo) da mesma forma que meninos cis, e não percebem que esse ideal tem um grande impacto sobre nós e nossa autoimagem, e que isso combinado com disforias de corpo/gênero é uma das razões pelas quais somos potenciais suicidas. Eu conheço várias mulheres trans que na pré-transição desenvolveram diversas compulsões alimentares com o objetivo de desenvolver uma aparência mais feminina.

Socialização não é um privilégio. É um meio pelo qual o privilégio é perpetuado. Privilégio é baseado em várias coisas, a maioria relaciona-se em como você é percebidx e como outras pessoas te tratam. Homens trans que passam como cis recebem privilégio masculino. Muitos homens trans que nem sempre passam como cis recebem privilégio masculino, dependendo da situação e contexto.

Da mesma forma, mulheres trans durante ou depois da transição que passam como cis, não recebem privilégio masculino. Mas mulheres trans que são lidas como trans também não recebem privilégio masculino, em nenhum contexto, no geral. Ser uma mulher trans não é algo sustentado culturalmente, porque ser mulher não é algo sustentado culturalmente da mesma forma que ser um homem é sustentado culturalmente, e parece que em vários (mas não em todos) contextos, homens trans recebem um “passe-livre” em coisas que mulheres trans não, muitas vezes de forma explícita. Eu já ouvi Adam Carolla dizer isso explicitamente no Lovelines mais de uma vez, anos atrás. Eu ouvi feministas cis (feministas radicais e outras de linhas diferentes) fazerem caracterizações grosseiras acerca de mulheres trans e caracterizações mais amenas de homens trans, enquanto eram transfóbicas com ambxs. Eu ouvi homens trans falarem coisas do tipo.

Não estou argumentando aqui que homens trans recebem coisas boas para todo o sempre e que mulheres trans recebem só coisas ruins sempre, mas sim que existe um privilégio em ser vistx como alguém indo em direção à masculinidade (de acordo com perspectivas cis) comparado com ser vistx como alguém indo em direção à feminilidade (novamente, de acordo com perspectivas cis) e a socialização não é o fator central em ambos os casos.

Eu gostaria de completar que nós não discutimos as pressões diárias em relação à conformidade de gênero e à cisnormatividade, em relação às narrativas corretas, em relação ao cumprimento das expectativas das pessoas cis no que diz respeito a como homens e mulheres devem ser, e como isso nos afeta diariamente.

Poder - nesse caso sexismo, heterossexismo, cissexismo - se normatiza através da constante execução, e as mulheres - tanto cis quanto trans - estão sempre falhando na feminilidade. Para as mulheres trans, essa falha perceptível tem consequências (cissexistas) mais severas e padrões de imposição mais altos. Mulheres trans que são muito femininas são ridicularizadas por tentarem demais, e por isso são consideradas, na verdade, homens. Mulheres trans que não são femininas o suficiente ou mesmo as que são masculinas, são ridicularizadas por não tentarem o suficiente, e por isso são consideradas, na verdade, homens. Mulheres trans que são lésbicas são ridicularizadas por falharem em sua “condição de ser mulher”, porque as expectativas são que mulheres se atraiam por homens.

Os psiquiatras nos dão dress codes e maneiras de se comportar. Nós damos a eles as histórias que eles desejam ouvir - cisnormativas, heteronormativas, narrativas que estabelecem nossos gêneros como estáticos. Várias vezes nós cumprimos de fato um dress code apenas para sermos atendidas dentro de nossa condição trans. Mulheres trans são disciplinadas nos modos de se vestir, no comportamento e orientação, assim como qualquer outra mulher cis, e as penalidades podem ser desde violência, negação de atendimento médico necessário, até o erro ou apagamento dos nossos pronomes e/ou gêneros de forma constante e maldosa. Quando passamos como cis, o melhor que recebemos é machismo e os julgamentos a partir dos olhares masculinos. Não importa se estamos nos comportando com o que quer que sejam ou deveriam ser as tais “socializações masculinas” ou “direitos masculinos”, nós não estamos recebendo nenhum privilégio masculino. Nós somos mulheres, ou somos coisas sem gênero falhando tanto na “condição de ser mulher” quanto na de “ser homem”.

E, sabe, quando você lida com isso todos os dias isso irá te afetar. Eu fiz quatro anos de teatro no ensino médio, e nesse período eu aprendi como falar e projetar minha voz, e basicamente me fazer ouvida - eu era péssima nisso até que meu primeiro professor de teatro se colocou para me ensinar como fazer isso. No meu primeiro ano fora do ensino médio, eu morei com outra mulher trans que me criticava incansavelmente por “falar alto demais” e durante anos eu perdi tudo o que tinha conquistado. Não deu nem um mês até eu já estar falando bem baixo novamente. Não podemos subestimar o impacto do machismo diário ou do privilégio masculino, e como isso influencia na socialização independente da sua idade. E isso acontece com todas as mulheres adultas, nos policiam todos os dias em como ser mulher, dizem como devemos nos comportar, vestir, falar. Todo mundo faz isso - homens e mulheres - ambxs fazem isso com mulheres. Isso ocorre em todos os níveis. Está difundido.

Socialmente e culturalmente, homens são incentivados enquanto homens. Mulheres não são incentivadas enquanto mulheres. Sim, existe policiamento de gênero direcionado a homens, mas também existem coisas como o Old Spice Guy, que valoriza e apenas ridiculariza levemente a hipermasculinidade*. Mas olhem para os comerciais da Axe. Olhem para os filmes de ação. Os programas de TV de todos os tipos. As revistas. Olhem para tudo.

Isso está para além da transição. Os andaimes sociais para a identidade feminina que deveriam ajudar uma mulher trans a ser tornar uma mulher de acordo com as definições sociais, são estruturalmente o oposto de um apoio. O processo pelo qual você se torna mulher envolve tornar você um abjeto, ensinar que apoio é algo que mulheres não merecem; e isso é algo que mulheres trans têm dificuldade de se defender, pois ser trans também está envolvido num status de abjeção - seu sucesso é determinado através da aprovação de outrxs.

No entanto, embora homens trans também sejam policiados enquanto homens, e têm de cumprir com as narrativas trans e tentar ser “adequadamente” homens, ser homem é algo valorizado. A masculinidade (e considerando que homens são associados/relacionados com masculinidade) é valorizada e admirada, ao contrário da feminilidade e de ser mulher. Enquanto ser trans é, como eu disse previamente, um status de abjeção, ser homem é exaltado como algo bom, a melhor de todas as opções.

Esse contraste afeta homens e mulheres trans de diferentes formas. Homens trans recebem uma liberdade e respeito que mulheres trans não recebem. Isso acontece diariamente. Se você ganha $100 por dia, durante 30 dias, você esperaria ganhar esses $100 no dia 31? Ou você confiaria na experiência da sua infância, quando o dinheiro era mais apertado? E quanto a receber esse dinheiro por 365 dias? Você o esperaria no dia 366? Os sistemas imediatos de punição e recompensa superam os sistemas do passado?

Não é possível reduzir nossa socialização aos nossos primeiros 18 anos, primeiros 12 anos, aos nossos primeiros dois anos (como eu vi uma pessoa tentar fazer recentemente). Nós não podemos discutir pessoas trans e privilégio masculino de forma coerente enquanto tratamos pessoas trans como se fossem pessoas cis, enquanto ignoramos nossas vidas durante e após a transição, nos focando estritamente na pré-transição. Isso é cissexismo e direto sexismo – tentar excluir experiências inconvenientes à suposição de que mulheres trans são na realidade supostamente homens e homens trans são na realidade supostamente mulheres.

Nota: Eu não desejo que ninguém tire dessa postagem a ideia de que homens trans não experienciam sexismo. Eles experienciam sim, especialmente antes e durante a transição. Existem diferenças em como a misoginia se manifesta em relação a mulheres trans em virtude de como a interseção transfobia-misoginia difere para homens trans e mulheres trans.

*Nota²: Jane LaPlain aponta que essa parte está relacionada com brancura, nesse comentário [em inglês].

N.T. CAFAB: Em inglês: coercively assigned female at birth. Tradução: Coercitivamente designadx mulher ao nascer. A sigla correpondente é CODEMAN.

CAMAB: Coercively assigned male at birth. Tradução: Coercitivamente designadx homem ao nascer – CODEHAN.

CASAB: Em inglês: Coercively socialized at birth. Tradução: Socialização Coercitivamente designadx ao nascer – SOCDAN.

Texto original: http://www.questioningtransphobia.com/?p=2884

Agradeço Juno Cremonini e Nicholas Rizzaro pela ajuda na tradução.

Deixe um comentário

Arquivado em Cissexismo, Socialização, Traduções, Transfobia

Assédio e estupro de mulheres trans* e consentimento fabricado.

[Aviso de conteúdo: Esse texto usa termos potencialmente desconfortáveis sobre práticas sexuais e dialoga abertamente sobre estupro e assédio].

Quando eu era mais jovem, participei de espaços de socialização que não eram ativistas. Em especial, quando comecei a transicionar, participava de espaços trans* e não raro também de fóruns crossdressers. A quantidade de assédio advinda de homens que se sentiam no direito de invadir nossos espaços para fazer propostas de todos os tipos era absurda - e, logicamente, quando eram negados, saiam proferindo todos os xingos possíveis, corriqueiramente transfóbicos a lá (literalmente) “você nem parecia mulher mesmo” ou “você tinha cara de homem” etc.

Sabemos como a cultura do estupro e o entitlement¹ masculino cria um ambiente onde negar os avanços de um homem é um ultraje. Nessa lógica, ou você é lésbica ou “feminazi” frígida - menos o fato de que simplesmente uma mulher pode não se interessar por um homem.

Da mesma forma, há um pensamento generalizado que mulheres trans* sempre estão dispostas a se relacionarem com homens cis héteros, que isso é o objetivo de todas nós.

Isso advém da interseção machismo e transfobia que, além de tornar nossos corpos públicos ao escrutínio de todxs, ainda nos coloca numa posição de mulheres desesperadas para arranjar um “macho alfa” que vai nos comer e então nos satisfazer enquanto mulheres (tem tanto absurdo nisso que deixo para xs leitorxs se indignarem).

Nem preciso comentar que existem mulheres trans* lésbicas, bissexuais, pansexuais, assexuais etc. Achar que estamos à disposição do tal “macho alfa” porque nosso objetivo é “enganar” os pobres homens héteros coitados é de uma soberba tão grande - como se homens fossem a última bolacha do pacote e como se nós vivêssemos somente para isso, como se nossa identidade existisse em função disso. Achar que, como algumas de nós só “temos um buraco” somos obrigadas a fazer sexo anal. É um cissexismo nojento.

Vou reservar uma postagem à parte para falar sobre a fetichização de mulheres trans*, que está muito ligada com isso. (Ah, os famosos “t-lovers”).

Não raro, há casos de abusos em relacionamentos onde existe disparidade de poder. No caso aqui me refiro aos relacionamentos entre uma pessoa cis e uma trans*. Conheço diversos casos onde um homem cis domina uma mulher trans* pelo uso da agressão física e psicológica. Sabemos que isso também ocorre com mulheres cis, então qual seria a diferença? Ocorre que passamos uma boa parte do nosso tempo tentado nos “provar” como mulheres socialmente. Lutando contra nossas disforias. Mulheres trans* têm uma vulnerabilidade em relação a seus corpos. Não raro eu ouvi meus parceiros homens dizerem preferir uma vulva. Dito às vezes como forma de ataque ou dito na “inocência”. O que pensamos nesses casos? Se eu não estivesse tão segura do meu genital, facilmente talvez eu tivesse novamente pensado em recorrer à CRS. Esse cissexismo nos faz aceitar essas coisas porque achamos que é um preço a se pagar para sermos aceitas. Estamos tão submetidas ao Outro, às expectativas do Outro em relação a nossos corpos, que nossa auto-estima sempre está por um fio. O que eu chamo de cissexismo estrutural é o conjunto de práticas em nível micro e macro que nos levam a odiar nossos corpos e a buscarmos um ideal de beleza em relação a nós e nossos corpos POR CAUSA do Outro.

As pessoas cis têm que nos aceitar como somos, e não nós que temos que nos adaptar a elxs. Nossa autonomia deve ser soberana sobre nossos corpos e sobre nossas identidades. Nos empoderar também é dizer não quando de fato não queremos. O que me leva à outra questão do cabeçalho dessa postagem: estupro.

Às vezes estamos tão obcecadas em agradar o Outro, porque do alto de nossa baixa-estima achamos que ninguém mais irá nos querer (afinal, vejam como somos representadxs na mídia, como nossos corpos são ojerizados), que muitas vezes dizemos sim quando queremos dizer não. Há um conceito sobre isso chamado Manufactured Consent que em tradução livre significa Consentimento Fabricado. Em poucas palavras, quer dizer que às vezes cedemos por cansaço, por convencimento(s), por que achamos que ninguém mais irá nos querer etc. Mas cedemos, e “ceder” não é consentimento - é você “aceitar mesmo não querendo”. E nessa situação qual prazer tiramos disso? Eu já passei por isso e me arrependi de todas as vezes que disse sim querendo dizer não. Não nos enganemos: isso também é estupro.

Mulheres trans*, precisamos retomar nossa autonomia sobre nossos corpos. Eu sei, é difícil, eu mesma também não consigo sempre, pois o fantasma da baixa estima me ronda como ronda a todxs nós. Mas não podemos dar ao Outro (mais) poder sobre nossos corpos. Queremos ter o direito de não gostar de sexo anal e não fazê-lo, afinal sexo é muito mais do que isso! Queremos ter o direito de não fazermos sexo de forma alguma. Queremos ditar nossas regras sobre o que NOS dá prazer e não o contrário. E quem não entende isso não é um/umx parceirx que queremos, porque não irá ter nenhum cuidado com nossos corpos.

E como eu costumo dizer por aí: WE ARE GOLDEN!² ;)

¹ Literalmente “direito”, nesse sentido significa a ideia machista de que homens têm “direito” a mulheres e isso configura, a meu ver, uma das raízes da cultura do estupro.

² Frase famosa do Mika da música e videoclipe “We are golden”.

8 Comentários

Arquivado em Assédio/Estupro, Cissexismo, Sexismo, Trans*, Transfobia