Arquivo do mês: julho 2013

Linguagem, poder e sexismo (módulo para uma sequência didática)

Dando continuidade com o post anterior, segue o segundo módulo. Nele, pretende-se trabalhar questões de gênero e poder diretamente relacionadas com a língua/linguagem. A língua pode servir como um meio de reprodução dos discursos sexistas, assim, torna-se trabalho para x professorx alertar aos alunxs acerca da não neutralidade do que escrevemos, lemos ou falamos. Não são óbvios, porém, os discursos (cis)sexistas, ao contrário, eles são naturalizados. Neste módulo focou-se na problematização do sexismo na linguagem – na qual se verifica a subalternização das mulheres em relação aos homens . No entanto, temos que considerar a importância de também problematizarmos especificamente a linguagem cissexista – na qual o ocorre subalternização das pessoas trans* em relação às pessoas cis – que espero fazer isso em outra ocasião. Temos que nos atentarmos, portanto, para a intersecionalidade entre ambos os casos.

A primeira noção que é interessante no estudo das relações entre poder e linguagem dentro dos comentários feitos na internet é a noção de ponto de vista criada pela modalidade epistêmica da linguagem usada. Para discutir a noção de ponto de vista (PDV), Santos (2012) diz que:

“A noção de PDV se aproxima da posição axiológica, da atitude valorativa postulada por Bakhtin (s/d: 50): O simples fato de que eu comecei a falar sobre ele (objeto do discurso) já significa que eu assumi uma certa atitude em relação a ele — não uma atitude indiferente, mas uma atitude efetiva e interessada. E é por isso que a palavra não apenas designa um objeto como uma entidade pronta, mas também expressa, por sua entoação, minha atitude valorativa em relação ao objeto, em relação àquilo que é desejável ou indesejável nele, e, desse modo, movimenta-se em direção do que ainda está por ser determinado nele, transforma-o num momento constituinte do evento vivo. Essa visão também se encontra nos escritos de Voloshinov: “Todos os fenômenos que nos cercam estão [...] fundidos com julgamentos de valor. [...] Um julgamento de valor social que tenha força pertence à própria vida e desta posição organiza a própria forma de um enunciado” (Voloshinov s/d: 6).Na sua concepção axiológica do discurso, a escolha das palavras exprime a orientação social. Algumas abordagens linguísticas e enunciativas (Rabatel, Nolke, Perrin) do PDV partem da distinção feita por Ducrot entre locutor e enunciador: “o locutor, responsável pelo enunciado, faz existir, por meio deste, enunciadores dos quais ele organiza os pontos de vista e as atitudes.” (Ducrot 1984 apud Rabatel 2008: 13).

A noção de ponto de vista dialoga com as posições subjetivas de autores de comentários em suas falas. A não preocupação com a origem dos discursos reproduzidos nas falas indica a proximidade com muitas formas de dominação que se manifestam e são reproduzidas na linguagem. A preocupação com a ação social da escola se dá quando se tenta despertar a consciência de uma linguagem não-transparente e não-original, ou seja, uma linguagem que não reflete diretamente os pensamentos dxs pessoas, mas que utiliza-se de empréstimos representacionais para essa expressão.

Desta forma, a importância dx educadorx ou dxs teóricxs feministas mediados por uma pedagogia feminista se torna ainda mais imprescindível. Scott e Candau (apud DA SILVA) enfatizam a importância do “papel central da linguagem na comunicação, na interpretação e na representação do gênero”; desta forma, uma pedagogia feminista:

“Apoiada na escola francesa pós-estruturalista, especificamente, nos estudos de Jacques Derrida sobre a desconstrução como meio de “analisar, leva em conta o contexto, a forma pela qual opera qualquer oposição binária, reverte e desloca sua construção hierárquica, em vez de aceitá-la como real ou auto-evidente ou como fazendo parte da natureza das coisas”. Com tal posicionamento, é possível contribuir para uma “educação que favoreça a interrelação dos diferentes grupos sociais e culturais” na escola e desenvolver “práticas pedagógicas democráticas.””

O discurso essencialista comumente embasado por supostos fatos biológicos tende a relacionar as mulheres e/ou o feminino a características como fragilidade e delicadeza, e os homens e/ou masculino a outras essencialmente antagônicas, como força e assertividade, sendo tais características tidas como “naturalmente” masculinas ou femininas. Assim, tem-se a impressão que tais características são intrínsecas a um gênero/identidade/morfologia genitais. Esta assimetria entre masculino e feminino é usada para que se perpetuem privilégios sociais para homens em detrimento das mulheres: o machismo/sexismo. Assim, torna-se urgente discutir gênero não através de uma concepção essencialista, mas sim por meio de uma perspectiva social, e como estas relações dissimétricas de poder se configuram, da mesma forma com que se faz com a questão de raça ou classe social, por exemplo. Neste sentido, Scott (apud DA SILVA MACHADO) afirma que:

“O processo de construção das relações de gênero poderia ser utilizado para examinar a classe, a raça, a etnicidade ou qualquer processo social. [...] O gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder [...] é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado.”

Tendo em vista que gênero se configura em uma relação hierárquica de poder, pretende-se observar como esta relação se configura na língua. O uso do gênero gramatical masculino para nos referirmos ao geral, segundo Jeane Félix da Silva, é uma forma de reprodução ideológica da cultura androcêntrica. Para a autora, se propõe o uso da linguagem não-sexista para:

“[...] contrapor a essa prática de reprodução ideológica, utilizando os termos nos dois gêneros (masculino e feminino), ou utilizando termos que se refiram a mulheres e homens, sem marcar um ou outro gênero, como mostram os exemplos: seres humanos, ao invés de homem; e língua de origem, ao invés de língua materna.”

Argumentos contrários a importância do uso da linguagem não-sexista se focam na gramaticalidade stricto sensu, de forma a se conceber que as vogais temáticas não tem ligação com o “sexo” das pessoas. Azeredo e Cardoso (apud VILLELA) se firmam na dicotomia de gênero (categoria linguística) versus a noção biológica de sexo (extralinguística), sendo que uma “não tem a ver com a outra”. No entanto, de acordo com Félix da Silva, tais argumentos demonstram certo desconhecimento das consequências sociais e de gênero ocasionadas pelo uso da linguagem sexista. A autora diz que os perigos da linguagem sexista não estão necessariamente na inferiorização das mulheres, mas sim na sua invisibilidade. Foucault (apud VILELA) analisa que:

“(..) o silêncio é o primeiro e o mais forte componente de exclusão, a marca mais forte da impossibilidade de se considerar sujeito aquele a quem a fala é de antemão desfigurada ou negada.”

Outro argumento evocado por aqueles que acreditam que a escolha pelo uso de uma linguagem não-sexista e inclusiva ser irrelevante é acerca da economia linguística. Segundo tal visão, ao trazer a duplicação de um substantivo, como “menino e meninas”, “os/as”, o princípio de economia estaria sendo ferido. No entanto, Villela discorda:

“É importante destacar, porém, que a proposta do uso de uma linguagem inclusiva para as mulheres não pretende ferir o pilar da economia da língua. A ideia de duplicar a linguagem sequer é adequada à situação, já que duplicar é produzir uma cópia igual do mesmo objeto (ALARIO et alli, 1995). Portanto não é uma repetição nomear em masculino e em feminino quando se quer representar grupos mistos. Quando se diz meninos e meninas, não se trata de fazer uma cópia, já que um não é igual ao outro, assim como não é repetição quando se diz azul, amarelo, verde ou preto. Quando se usa cores, fala-se de todas, da mesma forma que quando se usa crianças, nomeia-se a meninos e meninas (ALARIO et alli, 1995).”

Julia Cervera e Paki Franco questionam inclusive a suposto caráter neutro do masculino generalizante. Por meio de exemplo de algumas frases, elas deixaram evidente que o masculino generalizante, a revelia dos gramáticos tradicionais, aponta para um sujeito em especial: o homem (e por extensão, afirmamos também o homem cisgênero) como presente na frase “os heróis morreram” ou “os homens são violentos”. O termo homem, definitivamente, não representa as mulheres. Elas citam outros exemplos, agora de palavras que variam de sentido drasticamente em função do gênero, como:

“Homem público… “o que intervém publicamente nos negócios políticos”. Mulher pública.… “prostituta”

Governanta… “a que dirige os empregados de uma casa”. Governante… ”o que dirige um país”

Mundana… “puta, prostituta, meretriz.” Mundano… “frívolo, fútil, elegante, cosmopolita, conhecedor, experiente.”

Assim, as autoras corroboram para a concepção de língua não neutra, tampouco simétrica em relação ao gênero. A definição que o dicionário dá para as palavras sempre segue o significado da flexão masculina, de forma que não encontramos a definição de “mundano” como aquelx que se prostitui. Fica evidente que a forma marcada é a feminina, e é ela que precisa ser explicitamente mencionada como exceção, descontrói-se, portanto, a tese que a flexão de gênero se dá apenas na troca do “o” pelo “a” sem alteração drástica de significado, assim, não se sustenta uma concepção de gênero gramatical stricto sensu, que não considera a língua como produto sócio histórico.

Elas também vão usar outro exemplo para corroborar para a não neutralidade da língua através dos “saltos semânticos”. Um salto semântico acontece quando se inicia uma sentença usando um aparente neutro, mas depois, fica evidente que se estava falando de homem (ns). O suposto neutro da língua é novamente colocado em cheque, ao problematizar a frase: ““A lei proíbe a bigamia, mas quase todos têm duas mulheres.” Será que a bigamia está proibida só para os homens? Ou se supõe que as mulheres também costumam ter duas mulheres?” ” (CERVERA e FRANCO). Por fim, as autoras indicam que a língua é intimamente ligada com a forma de nós significarmos o mundo, então, se se pretende lutar contra o sexismo, ou seja, mudar a sociedade, deve-se mudar também a língua.

Entendemos que práticas de ensino de gramática tradicionais cristalizam em nosso imaginário o conceito de “certo” e “errado” gramaticalmente, assim, prevemos que o contexto escolar de ensino do Português tenha resistência aos preceitos da linguagem não-sexista já que historicamente é tido como “correto” o uso do masculino generalizante. Esta proposta de uso de linguagem não-sexista vai contra a vasta maioria de manuais de gramática da Língua Portuguesa, dentre outros editoriais canonizados que prescrevem o uso “correto” da flexão de gênero. Porém, possíveis entraves não podem ser vistos como impedimentos para que a discussão do tema progrida. Para Félix da Silva, a instituição escolar, ao mesmo em tempo que historicamente vem reforçando o sexismo pela reprodução dos discursos androcêntricos, é a mesma instituição capaz de promover deslocamentos, o princípio de uma mudança social. Para Moreno (apud DA SILVA):

“Todo pretenso fundamento científico em nome do qual se discrimina a mulher deve ser energicamente rechaçado e criticado pela escola, para que esta não se converta em cúmplice da manipulação ideológica da ciência e para que se rompa, assim, a cadeia de transmissão do androcentrismo.”

Shirley da Luz Villela alerta, ao citar o livro Gênero e Diversidade na Escola (BRASIL, 2009), que os materiais didáticos não estão isentos de reproduzirem discursos sexistas/androcêntricos através da linguagem (incluindo multissemioses), como na representação da mulher em figuras e imagens em postos subalternos ao homem, como garçonetes, enfermeiras, donas de casa, etc. Desta forma, o módulo orienta para que x professorx atente xs alunxs para que todxs prestem atenção a possíveis manifestações de sexismo no próprio material didático que é utilizado pela escola. Ele deve ficar atento para as múltiplas propostas e possibilidades de significar as mulheres, através de mecanismos linguísticos, tais como: substituição de termos, retextualização, mudança de conjugação verbal, omissão de pessoa do discurso, uso do termo “pessoa” como neutralizador, inclusão de ambas as flexões binárias do gênero gramatical e/ou por meio dx “x” ou “@”.

Referências Bibliográficas:

CERVERA, Julia P.; FRANCO, Paki V. Manual para o uso não sexista da linguagem. Trad. Beatriz Cannabrava. Montevideo: REPEM, 2006. Disponível em: http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/publicacoes/outros-artigos-e-publicacoes/manual-para-o-uso-nao-sexista-da-linguagem

DA SILVA, Jeane Félix. Linguagem Sexista sob a Perspectiva da Análise do Discurso: Olhares Esboçados em uma Revista Dirigida a Professores/as.Olhar de Professor, v. 7, n. 1, 2009.

DA SILVA MACHADO, Raimunda Nonata. RELAÇÕES DE GÊNERO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA

SANTOS, Eliane Pereira dos. “O uso de modalizadores epistêmicos no gênero comentário online.” Revista Diálogo das Letras 1.1 (2012): 168-181.

VILLELA, Shirley da Luz. Linguagem sexista na língua portuguesa: norma e uso. 2012.

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Identidade de gênero (módulo para uma sequência didática)

Olá pessoas. Fiz, junto com Laerte Neto, uma sequência didática como trabalho final para o estágio do curso de letras; o material trata de temas como identidade de gênero e (cis)sexismo. Por isso achei relevante publicar aqui no blog do Transfeminismo dois módulos: o primeiro, sobre identidade de gênero, que será publicado agora, e o segundo, logo em seguida, sobre linguagem e sexismo. Podemos dizer que uma sequência didática é um gênero discursivo com fim pedagógico de se “ensinar” um gênero discursivo. Ele se estrutura por meio de módulos que visam oferecer aos alunos condições para que suas capacidades acerca de determinado gênero discursivo se aprimorem. Então, os posts a seguir podem interessar não apenas pessoas que buscam informação acerca da questão de gênero, mas também xxs professorxs, em especial, de língua portuguesa. Se alguém quiser o trabalho completo, podem me contatar pelo facebook (veja a seção “quem faz” e procure por Bia =p) ou por meio dos comentários.

O módulo a seguir conta com uma pequena introdução às noções de teoria queer e oferece um suporte teórico para que x professorx consiga inserir-se nas discussões de gênero que circulam em ambiente acadêmico e grupos de estudo. A ideia proposta aqui é que x professorx tenha recursos teóricos para iniciar uma discussão em sala sobre o tema. Neste módulo não há nenhuma atividade planejada, no entanto indicamos notícias sobre políticas publicas que levam em conta as discussões de gênero que podem ser lidas e debatidas em sala orientadas pelx professorx.

Guacira Lopes Louro aponta para as novas (e plurais) formas de se entender questões de gênero e sexualidade nos dias de hoje. A autora afirma que elas estão além e à margem das instituições tradicionais, como o Estado, as igrejas ou a ciência, que as regularam e definiram historicamente. Partes destas novas vozes provem, agora, dos próprios grupos marginalizados/minorias. Este fenômeno, não é, contudo, isento de reação:

“[...] Sua visibilidade [das minorias] tem efeitos contraditórios: por um lado, alguns setores sociais passam a demonstrar uma crescente aceitação da pluralidade sexual e, até mesmo, passam a consumir alguns de seus produtos culturais; por outro lado, setores tradicionais renovam (e recrudescem) seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos valores tradicionais da família até manifestações de extrema agressão e violência física. (LOURO, p. 542)”

X professorx, como diz Louro, não se encontra em uma posição cômoda, já que práticas pedagógicas tradicionais não estão dando conta da questão e dos novos sujeitos que agora reivindicam um espaço que antes não lhes pertenciam. Tendo em vista isto, a sequência didática apresenta estas diversas vozes para os alunxs. Propõe-se que elas sejam problematizadas tanto por meio das contradições quanto pelas tensões que emergem entre os discursos antagônicos. Para Louro (apud DA SILVA), considerar as relações de gênero nas práticas pedagógicas significa:

“[...] subverter os arranjos tradicionais de gênero na sala de aula: inventando formas novas de dividir os grupos para os jogos ou para os trabalhos; promovendo discussões sobre as representações encontradas nos livros didáticos ou nos jornais, revistas e filmes consumidos pelas/os estudantes; produzindo novos textos, não-sexistas e não-racistas; investigando os grupos e os sujeitos ausentes nos relatos da História oficial, nos textos literários, nos “modelos” familiares; acolhendo no interior da sala de aula as culturas juvenis, especialmente em suas construções sobre gênero, sexualidade, etnia, etc. (p.2454)”

No texto intitulado “Quem defende a criança queer?” de Beatriz Preciado, encontra-se questões relevantes nestes quesitos. Ela mostra como os discursos reacionários – que se contextualizam na marcha na França contra o casamento gay – que supostamente visam proteger as crianças são, na verdade, violentos; ela também atrela os acontecimentos descritos com experiências pessoais. A autora propõe, ao denunciar o hetero/cissexismo, uma nova forma de se entender os “direitos da criança”: agora é o direito ao gênero queer que é reivindicado, a criança não deve ser compreendida como um mero “artefato biopolítico” a fim da reprodução da lógica patriarcal e hetero/cissexista.

Berenice Bento também irá tratar de como as tecnologias de gênero se impõem para as crianças desde a mais tenra idade. O desígnio de gênero é feito antes mesmo do nascimento da criança e os brinquedos, cores, enxovais – definidos pela autora como “próteses identitárias” - que se tem como de um gênero – neste caso, o gênero inteligível - está ancorado a expectativas estruturadas numa complexa rede de pressuposições sobre comportamentos, gostos e subjetividades que acabam por antecipar o efeito que se supunha causa; afinal de contas, indaga Bento, quem disse que todas as pessoas irão performar e se adequarem a essas prescrições de gênero sem que nenhum tipo de “falha” ou “erro” ocorra? O gênero é tido, portanto, como resultado de tecnologias sofisticadas que produzem corpos-sexuais.

Assim, pode-se trazer a teoria dos atos de fala de John Austin (apud BENTO): quando se diz “menino/menina” não se está descrevendo uma situação, mas produzindo masculinidades e feminilidades condicionadas ao órgão genital, produzindo-se materialidades. Segundo Judith Butler (apud LOURO) as normas de gênero são constantemente reproduzidas através das performances para que então o próprio gênero se materialize: “no instante mesmo da nomeação, constrói, ‘faz’ aquilo que nomeia, isto é, produz os corpos e os sujeitos”.

O termo queer pode ser usado para designar todas aquelas pessoas que estão à margem da norma heterossexual e cisgênero, assim, “queer” pode ser considerado como um termo abrangente, unindo em sua categoria tanto debates que envolvam a identidade de gênero quanto a orientação sexual, em especial para tratar de pessoas cuja identidade fuja do binário de gênero. Usa-se transgênero para se referir especificamente à questão de identidades de gênero que não cumprem os critérios de inteligibilidade e normatividade cisgêneros (não necessariamente, porém, pessoas trans* são não binárias).

Enfim, Bento responde a seu próprio questionamento:

“As experiências de trânsito entre os gêneros demonstram que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas. O sistema não consegue a unidade desejada. Há corpos que escapam ao processo de produção dos gêneros inteligíveis e, ao fazê-lo, se põem em risco porque desobedeceram às normas de gênero, ao mesmo tempo revelam as possibilidades de transformação dessas mesmas normas. Esse processo de fuga do cárcere dos corpos-sexuados é marcado por dores, conflitos e medos. As dúvidas “por que eu não gosto dessas roupas? Por que odeio tudo que é de menina? Por que tenho esse corpo?” levam os sujeitos que vivem em conflito com as normas de gênero a localizar em si a explicação para suas dores, a sentir-se uma aberração, uma coisa impossível de existir. Quais os mecanismos sociais que produzem nas subjetividades essa sensação de anormalidade? Como as instituições operam para serem eficazes no seu intento de naturalizar os gêneros? Como o centro produz e se alimenta perversamente das margens?”

Pessoas transgêneras/não cisgêneras historicamente foram marginalizadas não apenas de espaços sociais, mas também de discursos. As identidades trans* são patologizadas pelo CID; o imaginário que é reproduzido pelas mídias tende a exotificação destas pessoas, seja pela associação acrítica que é feita entre transgeneridade e criminalidade, em especial envolvendo as identidades travestis, seja pelo estigma de doença mental e necessidade de “tratamento” das pessoas transexuais, na maioria das vezes através de um viés cissexista; ou como disse Berenice Bento, sem condições das próprias minorias significarem suas dores. A escola não é um espaço imune à reprodução da transfobia, pois se trata de uma opressão estrutural de nossa sociedade. Assim, x professorx deve ficar atento para práticas institucionais ou informais que acontecem na escola que (re)produzem nas subjetividades, como aponta Bento, essa sensação de anormalidade. É através de um olhar crítico que xs alunxs vão, portanto, deixar de “localizarem em si a explicação para suas dores” para localizarem, agora, nas verdadeiras estruturas sociais que perpetuam cissexismo e disforia.

Em relação a questões transgêneras na escola, duas reivindicações essenciais são feitas: o uso do nome social nas chamadas e outros procedimentos burocráticos e o uso do banheiro do gênero com o qual se identificam. No entanto, nem sempre tais reivindicações, mesmo sendo tão básicas, são respeitadas. De acordo com Bento, a escola se apresenta como uma instituição incapaz de lidar com a diferença e a pluralidade, funcionando como uma das principais instituições guardiãs das normas de gênero e produtora da heterossexualidade, e por extensão, da cisgeneridade, a ponto da alta taxa de pessoas transgêneras fora da escola não poder ser explicada pelo conceito de “evasão”, mas sim pelo de “expulsão”.

Cabe ax professorx o papel de não ser um instrumento reprodutor desta opressão. Propõe-se que seja discutido com os alunxs a importância do uso do banheiro pelas pessoas trans* e o uso do nome social. Caso exista(m) (um) alunx(s) transgênero(s)/homossexual(ais) na turma, é de suma importância x professorx preservar a identidade e privacidade dx(s) alunx(s), garantindo que eles não sejam exotificadxs ou questionados com perguntas inapropriadas, levando em consideração que a sequência didática vai lidar com a questão, atiçando a curiosidade dos demais alunxs. Cabe ressaltar que se deve propiciar um ambiente seguro para o(s) alunx(s), e que não se deve esperar que alunxs trans*/homossexuais respondam perguntas se os mesmos não estiverem à vontade. Caso contrário, esta sequência pode acabar por provocar o que teoricamente se deseja evitar: ao exotizar e marcar a “diferença” do outro estaremos reproduzindo a mesma lógica que relega as subjetividades queer à anormalidade e abjeção.

Sob a égide da teoria queer, tanto Bento quanto Louro citam Derrida e a desconstrução de binarismos, incluindo aqui as categorias homo versus hétero. Com a desconstrução, se afasta do olhar de que ambas as categorias possuem significado apartadas uma da outra, ao contrário, elas só se tornam inteligíveis mutualmente. Desta forma, não se torna interessante, ao se falar sobre “diversidade”, remeter ao “diferente” ou o “outro”, na medida em que “cada pólo contém o outro, de forma desviada ou negada”; a identidade negada – a abjeta - é constitutiva do sujeito, fornece-lhe o limite e a coerência e, ao mesmo tempo, assombra-o com a instabilidade. (LOURO)

Por fim, uma notícia acerca do uso do gênero neutro na Suécia irá dialogar de maneira interessante com o texto de Preciado. Ambos tratam dos discursos que lidam com crianças e como elas não estão isentas das questões de gênero e suas controvérsias ou polemicas. Pode-se também utilizar notícias de meninas trans* que tiveram acesso ao banheiro feminino negado. Os textos se tornam relevantes na medida em que nos assuntos abordados não são estranhos aos alunxs, por envolverem não apenas questões de gênero que são um assunto recorrente no cotidiano, mas principalmente por envolverem crianças no ambiente escolar intrinsicamente relacionado com a questão de gênero. Assim, x professorx deverá propor um debate para os alunxs, relacionando os dois textos: a proposta da escola sueca está de acordo com os preceitos defendidos por Preciado? Esta iniciativa daria certo se fosse implementada no Brasil? O quanto o tratamento com gênero neutro estaria restrito ao ambiente escolar? Como expandir esta iniciativa para além do espaço escolar? Ela poderá, paradoxalmente, reforçar as mesmas normas binárias de gênero que visa descontruir?

Referências Bibliográficas:

BENTO, Berenice. NA ESCOLA SE APRENDE QUE A DIFERENÇA FAZ A DIFERENÇA. Estudos Feministas, v. 19, n. 2, p. 549, 2011.

DA SILVA MACHADO, Raimunda Nonata. RELAÇÕES DE GÊNERO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA

LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer-uma política pós-identitária para a educação. Universidade Federale do Rio de Janeiro, 2001.

Links:

“Estudante transgênero vai à justiça pelo direito de usar banheiro feminino”, disponível em http://g1.globo.com/educacao/noticia/2013/06/estudante-transgenero-vai-justica-pelo-direito-de-usar-banheiro-feminino.html

“Exigência de travesti para usar banheiro e nome feminino gera polêmica”, disponível em: http://www.midiamax.com.br/Geral/noticias/839285-exigencia+travesti+para+usar+banheiro+nome+feminino+gera+polemica.html

“Em pré-escola sueca não existe mais distinção entre meninos e meninas” disponível em: http://www.pavablog.com/2011/06/28/em-pre-escola-sueca-nao-existe-mais-distincao-entre-meninos-e-meninas/

“Quem defende a criança queer? disponível em: http://rogeliocasado.blogspot.com.br/2013/01/quem-defende-crianca-queer-por-beatriz.html

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Que homem eu era?

NOTA: Esse texto é uma continuação de “Sou Mulher?“, publicado em 8 de abril de 2013.

Certa vez eu conversava com uma amiga, que assim como eu é mulher trans*, sobre objetivos futuros. Contei que pretendia iniciar curso de maquiagem e manicure, para saber como me maquiar corretamente, e como pintar minhas unhas – e talvez trabalhar com isso. Segui contando sobre como desde a adolescência tenho interesse por coisas do tipo: “É algo que tenho vontade desde a infância, sabe? Quando adolescente, gostava dessas coisinhas… No fundo sempre me identifiquei com essas coisas… mas como isso ‘não é coisa de mulher’, apaguei da minha mente”.

Minha amiga respondeu, sem entender: “Como assim não é coisa de mulher?”. Depois de alguns segundos, percebi ao que ela estava se referindo: “Ah, desculpe! ‘Coisa de homem, eu quis dizer’: como manicure e maquiagem não são ‘coisas de homem’, eu não fui atrás isso durante minha adolescência.”. Eu cometo esse tipo de engano com frequência.

Até um determinado ponto da minha transição, eu conseguia ver claramente na minha mente uma fronteira, separando o período em que era homem, do momento em que me descobri mulher e me aceitei dessa forma. Essa fronteira ocupava um espaço curto e bem delimitado no tempo. Eu podia usar os pronomes masculinos para me referir a mim mesma, quando falava de algo no passado, antes de me identificar como mulher. Isso não acontece mais, hoje em dia.

É paradoxal. Antes de me aceitar como mulher, eu rejeitava em mim mesma tudo aquilo que significasse ser homem. Ser homem era uma condição com a qual eu tinha que conviver. Eu abominava o rótulo e os papéis de gênero que me foram designados, e os evitava o quanto pudesse. Depois que me aceitei como mulher, essa rejeição desapareceu (tenha em mente que não estou falando do meu corpo). Ao contrário, ao mesmo tempo em que estava ansiosa para descobrir e explorar cada vez mais minha identidade feminina, eu também fiquei curiosa para entender o que era antes disso – entender o homem que era. “Que homem eu era?”, “Que tipo de homem eu era?” são perguntas que ocuparam minha mente por um bom tempo. Eu acreditava que encontraria naturalmente a resposta para essas perguntas: à medida que minha transição prosseguisse e eu me descobrisse cada vez mais, a mulher que sou se tornaria cada vez mais visível e evidente, e as diferenças dessa mulher em relação ao que eu era antes tornariam mais visível e identificável o homem que fui um dia.

Essa era a teoria. Na prática, não foi isso que aconteceu. O tempo não tornou mais fácil entender que homem eu era; ao contrário, tornou mais difícil. À medida que a mulher se tornou evidente, o homem começou a desaparecer. Claro, o objetivo da minha transição era exatamente esse, que o homem que fui um dia desaparecesse para dar lugar à mulher que sou. Porém, eu esperava de esse desaparecimento se desse a partir do momento que me identifiquei e me aceitei como mulher. Eu não esperava que o homem também fosse desaparecer antes, no passado.

Eu nunca me importei que questionassem minha “masculinidade” nem que colocassem em dúvida que eu era homem. Tampouco me importava que me comparassem às garotas. O problema, para mim, não era que me questionassem – eu os ignorava, apenas – mas sim que me cobrassem que fosse um homem. Odeio cobranças, mas não podia ignorá-las porque as pessoas que as faziam tinham poder sobre minha vida. Eu tinha que ser um homem, por necessidade. Mas não tinha a menor afinidade ou identificação com os referenciais masculinos ao meu redor, somente com os femininos. Eu tive que buscar referenciais em outro lugar: na televisão. Nos heróis.

Dentre os vários heróis, existe um tipo de herói não apenas resiste à dor e ao medo, ele simplesmente não sente dor e medo de qualquer forma. Ele não tem sentimentos, emoções, nem qualquer tipo de ambição ou objetivo. Por isso, tende a cumprir ordens cegamente, sem questionar. A negação dos sentimentos, fraquezas e vulnerabilidades é algo exigido de qualquer homem na sociedade em que vivemos, mas esse herói tem uma característica bem particular: ele não é sociável de forma alguma. Ele não tem amigos, nem os deseja. Ele não vive entre homens. Você jamais o verá sentar-se com outros homens numa mesa de bar para beber e falar sobre futebol ou mulheres. Ele vive sozinho, e não se sente mal por isso. No final do filme, ele não fica com a mocinha (se é que existiu alguma): ele termina sozinho, e está bem dessa forma. Na minha mente infantil, isso significou que, de tudo o que alguém pode fazer para “ser” um homem, viver em isolamento também é uma forma de ser homem. Entre todas as alternativas que eu poderia ter escolhido, esta – isolamento – parecia a menos dolorosa. Eu segui por esse caminho.

Eu não fui influenciada por esse modelo. Eu voluntariamente e premeditadamente escolhi esse modelo. Me lembro de conscientemente ter decidido por seguir esse modelo. Isso acabou com as cobranças para que eu tivesse “atitudes de homem”. A frieza e distância emocional características desse modelo supriam a demanda social de “ser homem”. As cobranças que tive o resto da vida passaram a ser que eu me tornasse mais amigável, mais sociável. Que buscasse amizades. Que não me isolasse tanto. Mas, ao contrário das cobranças por atitudes masculinas, essas cobranças não me causavam dor nem sofrimento, então eu pude ignorá-las. Ser homem, para mim, consistiu simplesmente em fazer-me antissocial e manter distância das pessoas, impedindo-as de enxergar em mim qualquer coisa que motivasse novas cobranças e questionamentos. Basicamente, fazer-me desconhecida e deixar que as pessoas vissem em meu isolamento a masculinidade que esperavam. Essa foi a minha “socialização como homem”: encenar um papel que me permitisse não adotar papéis de gênero masculinos e não ser cobrada por isso. Fingir ser um homem, para não ser um homem.

É impossível olhar para o passado e enxergar um homem, em qualquer momento da minha vida. Eu enxergo um personagem, nada mais. Um personagem que vivi o máximo que pude, mas que no final das contas nunca deixou de ser uma mentira. Por isso, a única conclusão que posso tirar é que nunca fui, realmente, um homem. Eu somente fingia ser um, de forma metódica e calculada. Presumivelmente, quem é algo não precisa fingir ser esse algo; portanto, quem é um homem não precisa fingir ser um. Ademais, eu suponho que qualquer homem se desenvolva como tal de forma natural, tendo sua personalidade e gênero moldados tanto pela sociedade quando pela sua individualidade e suas experiências pessoais; e não escolhendo de maneira premeditada sua personalidade e papéis de gênero com base em uma lista de critérios lógicos, como eu fiz. Por outro lado, nunca me senti fingindo ser uma mulher. Ser mulher, para mim, consistiu em deixar de encenar papéis, em primeiro lugar, para depois ser eu mesma à medida que me descobrisse. Chega a ser engraçado ouvir que pessoas transgêneras reforçam os estereótipos de gênero: eu reforçava estereótipos de gênero muito mais antes de iniciar a minha transição, ao passo que, desde que ela começou, tenho quebrado tais estereótipos cada vez mais, e deixando isso bem claro e visível para o mundo.

Essa foi a razão daquela “escorregada” que cometi na conversa que citei no início desse texto. Está bem gravado na minha memória que boa parte da minha vida eu deixei meu gênero limitar o que posso ou não fazer. Por isso, meu subconsciente deve ter calculado (errado) que se na adolescência eu não me permitia me interessar por coisas como maquiagem, deve ter sido porque a sociedade aceitava que somente homens fizessem isso. Esse engano ocorreu porque minha percepção de mim mesma no passado se alterou, e passei a enxergar uma mulher também na infância e na adolescência. A mente humana é complexa e misteriosa.

Ser uma mulher transgênera, no meu caso, há muito tempo deixou de ter a ver “mudança de sexo e/ou gênero”, e passou a ter a ver, cada vez mais, com ser uma mulher, simplesmente. Uma mulher que não tem seus direitos reconhecidos, que enfrenta alguns dos apagamentos e exclusões mais brutais e cruéis que a sociedade pode produzir, e que é tratada como cidadã de segunda classe. Infelizmente. Mas, ainda assim, uma mulher.

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O que nós perdemos: Resumo da semana - 12/07/2013

Agora no final da tarde (antes tarde do que nunca! ) eis que essa coluna volta, depois de meses largada em hiato para dar informações das coisas interessantes/absurdas/de fazer o cu cair da bunda ocorridas na semana :D

  • A começar pela publicação aqui no TF da tradução de um texto da blogueira Jos Truitt do Feministing falando sobre feminismo, intersecionalidade e questões trans*. Se você perdeu COOORRAAA
  • A tradução do texto da Audre Lorde feita pelo blogue de Feminismo Intersecional Questões Plurais foi publicada no Geledés, se você ainda não leu o texto veja aqui no Questões Plurais e aqui no Geledés (é a mesma só muda o website).
  • A Marcha da Vadias de Curitiba ocorre amanhã e super recomendo porque de todas as marchas, a meu ver, a que melhor parece dialogar com questões trans* é a de Curitiba. Vejam aqui a página do evento e aqui a página da Marcha.
  • Esse texto maravilhoso do Blogueiras Negras (escrito por Larissa Santiago) sobre a palhaçada o episódio de racismo na UFMG porque um jornal publicou esses dias que a faculdade instaurou um processo administrativo que omitiu o racismo da bosta toda do ocorrido (pra variar…).
  • E por falar em Blogueiras Negras, não poderia deixar de mencionar o lymdo convite que fizeram para mulheres trans* negras, visando ampliar a pluralidade de vozes do blogue.
  • Está rolando a RodAda Hacker, que é um evento onde mulheres programadoras irão ensinar o rolê o ofício para outras mulheres que nunca programaram (ou seja iniciantes/leigas). Tem que pagar e eu não sei qual é a segurança/receptividade em relação às mulheres trans*, mas achei o projeto #dygno de qualquer forma.
  • Aproveito para fazer um jabá e divulgar um novo tumblr de citações transfeministas em português. Quem quiser conhecer tá aqui ó. Dá uma olhada no sobre também para entender o projeto.
  • Como nem tudo são flores, caiu o cu da minha bunda fiquei indignada essa semana com esse tal projeto que visa proibir propagandas com casais homo…Como se nossa! Uau! tivessem já muitas né? Pelo boto cor-de-rosa viu…
  • Por fim, tem uma nova página chamada Transfobia Não que parece promissora e quero divulgar aqui :)

 

 

 

 

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Sobre questões trans dentro do feminismo e o fortalecimento da análise de gênero a partir do movimento

A blogueira Jos Truitt do Feministing comenta sobre a situação das questões trans* no feminismo mainstream, defendendo uma abordagem intersecional e transfeminista para se pensar gênero e feminismo. Os links estão em inglês. A fonte original encontra-se no fim do texto.

Por Jos | Originalmente Publicado em: 11 de junho de 2013.

Tradução: Hailey Kaas

Eu parei de blogar por um tempo enquanto estava na pós-graduação e isso abriu oportunidade para dar um ponto de vista sobre a blogosfera feminista. Eu comecei a trabalhar no Feministing em 2009 com o objetivo de centrar questões trans dentro do feminismo. Eu penso que a opressão que colegas trans sofrem, especialmente a extrema marginalização e violência direcionada a mulheres trans nessa cultura misógina, é exatamente uma das coisas pelas quais o feminismo existe para mudar. Eu entendo o feminismo como uma resposta à opressão de gênero em um contexto patriarcal onde o feminino é desvalorizado. Eu vejo o pior de nossa hierarquia de gênero recaindo sob as pessoas que falham em cumprir regras rígidas do binário de gênero compulsório, de uma forma percebida como feminina. Isso se revela quando, por exemplo, há violência específica direcionada a homens queer e mulheres trans. Dessa forma, vejo a exclusão tanto de mulheres trans quanto de nossas questões do feminismo (ou a contínua reprodução de transmisoginia dentro movimento feminista) como um problema que necessita ser posto em pauta.

Contudo, centrar as questões de pessoas trans e não-conformes de gênero exige uma mudança de pensamento para as pessoas cujo feminismo está baseado em normas cisgêneras. A norma em nossa cultura é supor que uma pessoa irá se identificar com o gênero designado ao nascer com base nx médicx olhando para sua genitália. O que significa que supomos que existe uma conexão entre gênero e genitália, que leva a uma suposta conexão entre gênero e os papeis sexuais, e também às capacidades reprodutivas de uma pessoa. Como demonstrei no que diz respeito à retórica da “Guerra às Mulheres”, sobre os ataques aos direitos reprodutivos, a maioria das organizações para direitos reprodutivos coloca a suposição de que mulher = pessoa com vagina que pode gerar filhxs. Isso é verdade para muitas mulheres, mas não é a experiência de todas as mulheres. E colocar todas as mulheres como fundamentalmente máquinas de fazer filhxs é exatamente o que o movimento anti-escolha deseja. Um feminismo que se baseia na conexão entre gênero e genitais não só exclui pessoas cujos corpos não se encaixam - é também uma análise fundamentalmente falha que perpetua uma ideia essencialista a qual o feminismo parcialmente existe para combater. Um feminismo que centraliza uma abordagem trans feminista sobre gênero, que reconhece que mulher ≠ vagina, oferece uma análise de gênero mais precisa no geral que beneficia todxs.

Um número crescente de mulheres trans, incluindo eu mesma, têm trabalhado na blogosfera feminista e de justiça social agora já faz algum tempo. Ouvi várias escritoras feministas famosas dizerem que realmente gostam do meu trabalho. O que é legal, mas sinceramente estou aqui para realizar uma mudança dentro do feminismo, logo isso não significa nada para mim se meus textos não estiverem encorajando uma mudança em suas análises. Isso é a continuação de um problema familiar: Quando mulheres negras introduziram a ideia de intersecionalidade, elas reforçaram o ponto de que suas experiências não eram as experiências das mulheres brancas somadas de raça. Para o feminismo levar suas questões a sério, necessitou centrar as experiências das mulheres negras. O extraordinário dessa abordagem é que continua beneficiando mulheres brancas, mas não exclui as experiências que ocorrem na interseção de raça e gênero. No entanto, feministas brancas continuam a tratar as questões das mulheres negras como algo a ser adicionado ao feminismo, o “especialmente mulheres negras” que faz com que seus argumentos sejam mais fortes. Mas o argumento continua começando majoritariamente com as experiências das mulheres brancas (e comumente com privilégio de classe - o mesmo ocorre quando se fala sobre as questões das mulheres trans; e fui completamente cúmplice nisso).

Vejo a continuação desse padrão em um momento no qual mulheres trans estão tentando levantar suas questões dentro do feminismo. Reconhecer nossa humanidade e nossa opressão exige mudar a conexão entre gênero e genitais. Um feminismo que não realiza tal mudança continuará a perpetuar nossa exclusão. Eu fiquei especialmente surpresa no outono passado com a cobertura do livro Vagina da Naomi Wolf. A crítica feminista pareceu ser de que Wolf reduziu mulheres a suas vaginas, ou mesmo a própria experiência específica de sua vagina. Assim, com base nessa leitura feminista, o fato de que o livro é cisnormativo é a primeira crítica mais óbvia. No entanto, essa crítica estava em falta na maioria das discussões feministas na imprensa sobre o livro. O argumento de Wolf foi constantemente chamado a atenção por essencializar vaginas e mulheres de uma forma heterossexista e racista. Fiquei sabendo que questões trans foram cortadas por motivos de espaço de uma mesa-redonda absurdamente grande sobre o livro entre um grupo de famosas feministas na mídia. Algo que é honestamente ridículo. Como Jaclyn Friedman demonstrou em um dos poucos artigos que de fato mencionou a questão, o assunto requer pouco espaço para destaque:

“Mulheres que não tem vaginas, e pessoas com vaginas que não são mulheres? [Wolf] Nunca ouviu falar delas.”

Bem simples, certo? O fato de que a crítica mais óbvia não foi uma prioridade para muitas feministas que escreveram sobre o livro, diz muito sobre o lugar das questões trans dentro de seu feminismo. Não é algo de fato importante. É algo que se faz um adendo quando estamos falando especificamente sobre pessoas trans. Mas não é central em relação a como pensam gênero.

As vozes das pessoas trans dentro do feminismo definitivamente vêm tendo um impacto. O tumblr é um excelente exemplo - muito da base feminista está refletindo bastante seriamente sobre como nosso entendimento do mundo está enraizado em normas cisgêneras, e estão criando espaço dentro do gênero para outras formas de se ter corpos. Mas a maioria das feministas famosas, as pessoas que estão escrevendo nas grandes publicações, participando de programas de TV e adquirindo oportunidades para publicação de livros, não mudaram suas análises baseadas em experiências cis. Sinceramente, o movimento poderia deixar muitas dessas pessoas famosas a ver navios.

Então, constantemente eu leio uma versão de feminismo que me deixa de fora. Isso acontece regularmente nesse mesmo blog, algo que estamos começando a trabalhar diretamente para mudar. As suposições cisnormativas também são uma parcela padrão de conversas pessoais as quais eu participei entre feministas com visibilidade pública (eu fico frequentemente impressionada com o que as pessoas não percebem que estão dizendo na minha frente). Isso se destaca na linguagem que define mulheres como produtoras de filhxs. Mas é também um conjunto de suposições em um nível enraizado que determina quais problemas são considerados importantes problemas feministas e como tais problemas serão pautados. Violência sexual e de gênero, opressão reprodutiva, acesso à saúde, empregos, imagem corporal… Questões que são frequentemente delimitadas de forma a ignorar as experiências particulares de pessoas trans e não-conformes de gênero, especialmente as pessoas dentro do espectro feminino. Isso não é um problema apenas retórico - o feminismo atuou no estabelecimento de abrigos para vítimas de violência doméstica que excluem mulheres trans, por exemplo.

Pessoas trans e não-conformes de gênero enfrentam uma discriminação absurda que deveria ser um foco feminista, mas ainda é uma questão marginal, na melhor das hipóteses. Isso precisa mudar. Está mudando. Não é suficiente para feministas aproveitarem os textos das pessoas que experienciam a marginalização que as mesmas não sofrem. Para encarar tais questões seriamente, é necessário pensar em como são diferentes de sua experiência, como mudam a base sob a qual trabalham, e as suposições que você tem que pode terminar por perpetuar exclusão. Esse é o trabalho que todxs temos de fazer como parte de um movimento feminista intersecional onde todxs temos diferentes experiências de privilégio e opressão.

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