Linguagem, poder e sexismo (módulo para uma sequência didática)

Dando continuidade com o post anterior, segue o segundo módulo. Nele, pretende-se trabalhar questões de gênero e poder diretamente relacionadas com a língua/linguagem. A língua pode servir como um meio de reprodução dos discursos sexistas, assim, torna-se trabalho para x professorx alertar aos alunxs acerca da não neutralidade do que escrevemos, lemos ou falamos. Não são óbvios, porém, os discursos (cis)sexistas, ao contrário, eles são naturalizados. Neste módulo focou-se na problematização do sexismo na linguagem – na qual se verifica a subalternização das mulheres em relação aos homens . No entanto, temos que considerar a importância de também problematizarmos especificamente a linguagem cissexista – na qual o ocorre subalternização das pessoas trans* em relação às pessoas cis – que espero fazer isso em outra ocasião. Temos que nos atentarmos, portanto, para a intersecionalidade entre ambos os casos.

A primeira noção que é interessante no estudo das relações entre poder e linguagem dentro dos comentários feitos na internet é a noção de ponto de vista criada pela modalidade epistêmica da linguagem usada. Para discutir a noção de ponto de vista (PDV), Santos (2012) diz que:

“A noção de PDV se aproxima da posição axiológica, da atitude valorativa postulada por Bakhtin (s/d: 50): O simples fato de que eu comecei a falar sobre ele (objeto do discurso) já significa que eu assumi uma certa atitude em relação a ele — não uma atitude indiferente, mas uma atitude efetiva e interessada. E é por isso que a palavra não apenas designa um objeto como uma entidade pronta, mas também expressa, por sua entoação, minha atitude valorativa em relação ao objeto, em relação àquilo que é desejável ou indesejável nele, e, desse modo, movimenta-se em direção do que ainda está por ser determinado nele, transforma-o num momento constituinte do evento vivo. Essa visão também se encontra nos escritos de Voloshinov: “Todos os fenômenos que nos cercam estão [...] fundidos com julgamentos de valor. [...] Um julgamento de valor social que tenha força pertence à própria vida e desta posição organiza a própria forma de um enunciado” (Voloshinov s/d: 6).Na sua concepção axiológica do discurso, a escolha das palavras exprime a orientação social. Algumas abordagens linguísticas e enunciativas (Rabatel, Nolke, Perrin) do PDV partem da distinção feita por Ducrot entre locutor e enunciador: “o locutor, responsável pelo enunciado, faz existir, por meio deste, enunciadores dos quais ele organiza os pontos de vista e as atitudes.” (Ducrot 1984 apud Rabatel 2008: 13).

A noção de ponto de vista dialoga com as posições subjetivas de autores de comentários em suas falas. A não preocupação com a origem dos discursos reproduzidos nas falas indica a proximidade com muitas formas de dominação que se manifestam e são reproduzidas na linguagem. A preocupação com a ação social da escola se dá quando se tenta despertar a consciência de uma linguagem não-transparente e não-original, ou seja, uma linguagem que não reflete diretamente os pensamentos dxs pessoas, mas que utiliza-se de empréstimos representacionais para essa expressão.

Desta forma, a importância dx educadorx ou dxs teóricxs feministas mediados por uma pedagogia feminista se torna ainda mais imprescindível. Scott e Candau (apud DA SILVA) enfatizam a importância do “papel central da linguagem na comunicação, na interpretação e na representação do gênero”; desta forma, uma pedagogia feminista:

“Apoiada na escola francesa pós-estruturalista, especificamente, nos estudos de Jacques Derrida sobre a desconstrução como meio de “analisar, leva em conta o contexto, a forma pela qual opera qualquer oposição binária, reverte e desloca sua construção hierárquica, em vez de aceitá-la como real ou auto-evidente ou como fazendo parte da natureza das coisas”. Com tal posicionamento, é possível contribuir para uma “educação que favoreça a interrelação dos diferentes grupos sociais e culturais” na escola e desenvolver “práticas pedagógicas democráticas.””

O discurso essencialista comumente embasado por supostos fatos biológicos tende a relacionar as mulheres e/ou o feminino a características como fragilidade e delicadeza, e os homens e/ou masculino a outras essencialmente antagônicas, como força e assertividade, sendo tais características tidas como “naturalmente” masculinas ou femininas. Assim, tem-se a impressão que tais características são intrínsecas a um gênero/identidade/morfologia genitais. Esta assimetria entre masculino e feminino é usada para que se perpetuem privilégios sociais para homens em detrimento das mulheres: o machismo/sexismo. Assim, torna-se urgente discutir gênero não através de uma concepção essencialista, mas sim por meio de uma perspectiva social, e como estas relações dissimétricas de poder se configuram, da mesma forma com que se faz com a questão de raça ou classe social, por exemplo. Neste sentido, Scott (apud DA SILVA MACHADO) afirma que:

“O processo de construção das relações de gênero poderia ser utilizado para examinar a classe, a raça, a etnicidade ou qualquer processo social. [...] O gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder [...] é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado.”

Tendo em vista que gênero se configura em uma relação hierárquica de poder, pretende-se observar como esta relação se configura na língua. O uso do gênero gramatical masculino para nos referirmos ao geral, segundo Jeane Félix da Silva, é uma forma de reprodução ideológica da cultura androcêntrica. Para a autora, se propõe o uso da linguagem não-sexista para:

“[...] contrapor a essa prática de reprodução ideológica, utilizando os termos nos dois gêneros (masculino e feminino), ou utilizando termos que se refiram a mulheres e homens, sem marcar um ou outro gênero, como mostram os exemplos: seres humanos, ao invés de homem; e língua de origem, ao invés de língua materna.”

Argumentos contrários a importância do uso da linguagem não-sexista se focam na gramaticalidade stricto sensu, de forma a se conceber que as vogais temáticas não tem ligação com o “sexo” das pessoas. Azeredo e Cardoso (apud VILLELA) se firmam na dicotomia de gênero (categoria linguística) versus a noção biológica de sexo (extralinguística), sendo que uma “não tem a ver com a outra”. No entanto, de acordo com Félix da Silva, tais argumentos demonstram certo desconhecimento das consequências sociais e de gênero ocasionadas pelo uso da linguagem sexista. A autora diz que os perigos da linguagem sexista não estão necessariamente na inferiorização das mulheres, mas sim na sua invisibilidade. Foucault (apud VILELA) analisa que:

“(..) o silêncio é o primeiro e o mais forte componente de exclusão, a marca mais forte da impossibilidade de se considerar sujeito aquele a quem a fala é de antemão desfigurada ou negada.”

Outro argumento evocado por aqueles que acreditam que a escolha pelo uso de uma linguagem não-sexista e inclusiva ser irrelevante é acerca da economia linguística. Segundo tal visão, ao trazer a duplicação de um substantivo, como “menino e meninas”, “os/as”, o princípio de economia estaria sendo ferido. No entanto, Villela discorda:

“É importante destacar, porém, que a proposta do uso de uma linguagem inclusiva para as mulheres não pretende ferir o pilar da economia da língua. A ideia de duplicar a linguagem sequer é adequada à situação, já que duplicar é produzir uma cópia igual do mesmo objeto (ALARIO et alli, 1995). Portanto não é uma repetição nomear em masculino e em feminino quando se quer representar grupos mistos. Quando se diz meninos e meninas, não se trata de fazer uma cópia, já que um não é igual ao outro, assim como não é repetição quando se diz azul, amarelo, verde ou preto. Quando se usa cores, fala-se de todas, da mesma forma que quando se usa crianças, nomeia-se a meninos e meninas (ALARIO et alli, 1995).”

Julia Cervera e Paki Franco questionam inclusive a suposto caráter neutro do masculino generalizante. Por meio de exemplo de algumas frases, elas deixaram evidente que o masculino generalizante, a revelia dos gramáticos tradicionais, aponta para um sujeito em especial: o homem (e por extensão, afirmamos também o homem cisgênero) como presente na frase “os heróis morreram” ou “os homens são violentos”. O termo homem, definitivamente, não representa as mulheres. Elas citam outros exemplos, agora de palavras que variam de sentido drasticamente em função do gênero, como:

“Homem público… “o que intervém publicamente nos negócios políticos”. Mulher pública.… “prostituta”

Governanta… “a que dirige os empregados de uma casa”. Governante… ”o que dirige um país”

Mundana… “puta, prostituta, meretriz.” Mundano… “frívolo, fútil, elegante, cosmopolita, conhecedor, experiente.”

Assim, as autoras corroboram para a concepção de língua não neutra, tampouco simétrica em relação ao gênero. A definição que o dicionário dá para as palavras sempre segue o significado da flexão masculina, de forma que não encontramos a definição de “mundano” como aquelx que se prostitui. Fica evidente que a forma marcada é a feminina, e é ela que precisa ser explicitamente mencionada como exceção, descontrói-se, portanto, a tese que a flexão de gênero se dá apenas na troca do “o” pelo “a” sem alteração drástica de significado, assim, não se sustenta uma concepção de gênero gramatical stricto sensu, que não considera a língua como produto sócio histórico.

Elas também vão usar outro exemplo para corroborar para a não neutralidade da língua através dos “saltos semânticos”. Um salto semântico acontece quando se inicia uma sentença usando um aparente neutro, mas depois, fica evidente que se estava falando de homem (ns). O suposto neutro da língua é novamente colocado em cheque, ao problematizar a frase: ““A lei proíbe a bigamia, mas quase todos têm duas mulheres.” Será que a bigamia está proibida só para os homens? Ou se supõe que as mulheres também costumam ter duas mulheres?” ” (CERVERA e FRANCO). Por fim, as autoras indicam que a língua é intimamente ligada com a forma de nós significarmos o mundo, então, se se pretende lutar contra o sexismo, ou seja, mudar a sociedade, deve-se mudar também a língua.

Entendemos que práticas de ensino de gramática tradicionais cristalizam em nosso imaginário o conceito de “certo” e “errado” gramaticalmente, assim, prevemos que o contexto escolar de ensino do Português tenha resistência aos preceitos da linguagem não-sexista já que historicamente é tido como “correto” o uso do masculino generalizante. Esta proposta de uso de linguagem não-sexista vai contra a vasta maioria de manuais de gramática da Língua Portuguesa, dentre outros editoriais canonizados que prescrevem o uso “correto” da flexão de gênero. Porém, possíveis entraves não podem ser vistos como impedimentos para que a discussão do tema progrida. Para Félix da Silva, a instituição escolar, ao mesmo em tempo que historicamente vem reforçando o sexismo pela reprodução dos discursos androcêntricos, é a mesma instituição capaz de promover deslocamentos, o princípio de uma mudança social. Para Moreno (apud DA SILVA):

“Todo pretenso fundamento científico em nome do qual se discrimina a mulher deve ser energicamente rechaçado e criticado pela escola, para que esta não se converta em cúmplice da manipulação ideológica da ciência e para que se rompa, assim, a cadeia de transmissão do androcentrismo.”

Shirley da Luz Villela alerta, ao citar o livro Gênero e Diversidade na Escola (BRASIL, 2009), que os materiais didáticos não estão isentos de reproduzirem discursos sexistas/androcêntricos através da linguagem (incluindo multissemioses), como na representação da mulher em figuras e imagens em postos subalternos ao homem, como garçonetes, enfermeiras, donas de casa, etc. Desta forma, o módulo orienta para que x professorx atente xs alunxs para que todxs prestem atenção a possíveis manifestações de sexismo no próprio material didático que é utilizado pela escola. Ele deve ficar atento para as múltiplas propostas e possibilidades de significar as mulheres, através de mecanismos linguísticos, tais como: substituição de termos, retextualização, mudança de conjugação verbal, omissão de pessoa do discurso, uso do termo “pessoa” como neutralizador, inclusão de ambas as flexões binárias do gênero gramatical e/ou por meio dx “x” ou “@”.

Referências Bibliográficas:

CERVERA, Julia P.; FRANCO, Paki V. Manual para o uso não sexista da linguagem. Trad. Beatriz Cannabrava. Montevideo: REPEM, 2006. Disponível em: http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/publicacoes/outros-artigos-e-publicacoes/manual-para-o-uso-nao-sexista-da-linguagem

DA SILVA, Jeane Félix. Linguagem Sexista sob a Perspectiva da Análise do Discurso: Olhares Esboçados em uma Revista Dirigida a Professores/as.Olhar de Professor, v. 7, n. 1, 2009.

DA SILVA MACHADO, Raimunda Nonata. RELAÇÕES DE GÊNERO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA

SANTOS, Eliane Pereira dos. “O uso de modalizadores epistêmicos no gênero comentário online.” Revista Diálogo das Letras 1.1 (2012): 168-181.

VILLELA, Shirley da Luz. Linguagem sexista na língua portuguesa: norma e uso. 2012.

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