Arquivo do mês: agosto 2013

Sobre ser mulher trans* e bissexual – uma experiência pessoal

Hoje é o dia da visibilidade lésbica e bissexual, e como bissexual desejo comentar brevemente sobre minha identidade – uma identidade que por sinal costuma ser apagada com frequência das discussões gerais sobre sexualidade. Me identifico também como pansexual, mas para fins políticos, desejo falar somente de bissexualidade.

A bissexualidade sempre enfrentou vários mitos, inclusive na interseção monogamia/bissexualidade, onde pessoas bissexuais são vistas como infiéis ou promíscuas por ser capazes/desejarem se relacionar com dois ou mais gêneros. Além disso, o estigma da promiscuidade sempre recaiu mais fortemente às mulheres bissexuais.

Contudo, certamente as mulheres trans* sempre tiveram uma grande dificuldade em se assumir como lésbicas ou bissexuais. Isso acontece porque dentro da norma heterossexual se uma pessoa “deseja ser de outro gênero” automaticamente ela é heterossexual (heterossexualidade compulsória é inclusive uma das premissas dos compêndios médicos que patologizam a transexualidade). Por isso, ser uma mulher trans* que se relaciona com outras mulheres (cis ou trans*) era/é a “prova” de que a pessoa não era/é mulher de verdade, e sim homem. A ideia heteronormativa de “completude” heterossexual, inclusive, se estende aos relacionamentos gays/lésbicos onde sempre se perguntam “quem é o homem/mulher da relação”, mesmo sabendo-se de que se trata de duas mulheres ou dois homens.

Minha experiência pessoal sempre foi que, enquanto eu me identificava como homem (mas não necessariamente me via como homem), eu sempre achei que fosse gay. Sempre tive uma forte atração por homens, desde a adolescência - e enquanto essa é a experiência de muitas mulheres trans*(antes de se identificarem como mulheres), não significa que todas são ou deveriam ser heterossexuais. O estigma da deslegitimação identitária (mulheres trans* não são mulheres ou são menos mulheres porque se relacionam com outras mulheres) sempre foi (e é) muito forte nos espaços médicos e nos grupos trans*. Só comecei a repensar minha sexualidade quando entrei em contato com o feminismo, alguns anos atrás - e então fui me livrando de certos preconceitos, entre eles uma espécie de “translesbofobia” que eu tinha, me impedindo de relacionar com outras mulheres.

O feminismo foi essencial para essa descoberta, me permiti amar e ser amada por outras mulheres, sentir os prazeres do sexo lésbico, as maravilhas dos “ambientes femme” cheios de carinhos e afetos. Isso não quer dizer que eu ache que esse “ambiente” não possa existir entre homens ou entre pessoas de gêneros diferentes, mas nunca foi essa minha experiência com homens cis – até porque, infelizmente, minha experiência com homens cis sempre foi dentro do espectro fetichista. Os homens cis héteros e inclusive bissexuais sempre me pareceram estar muito mais focados na genitália do que as mulheres - e essas relações genitalizadas sempre me foram muito caras.

Eu escrevi sobre a genitalização dos relacionamentos em outra postagem. A importância que as pessoas dão à genitália de outra, como elemento fundante das relações, elemento essencial dos afetos e do “gostar” romanticamente, é algo que talvez eu jamais entenda – e não acho que isso tem a ver com bissexualidade, mas sim com a importância que colocamos em certos signos corporais que se tornam premissas para nossas relações (inclusive heterossexuais). O que citei brevemente sobre fetiche acima é, inclusive, um bom exemplo. Os homens por quem eu me interessava (com reciprocidade) ora encerravam seu interesse romântico por mim no momento que “descobria” que eu sou trans* (e non-op), ora o interesse se intensificava, pois o que essa pessoa buscava em mim era tão somente essa diferença genitalizada em relação a outras mulheres.

Sempre quis ser vista por mim mesma e não pelo corpo que eu tenho.

No meu mundo ideal todxs seriam bissexuais (e/ou pansexuais). Acredito que as corporalidades são empecilhos que nos previnem de relacionarmos com pessoas maravilhosas. O gênero e o corpo de alguém são, de fato, parte daquela pessoa – mas haveríamos de nos perguntar se isso é tudo o que aquela pessoa é. Desejo conhecer as pessoas – todas elas – em suas particularidades, seus gostos, suas idéias, seus modos. Desejo conhecer as pessoas em outros espectros que não (só) gênero e corpo.

Sou uma mulher trans* e bissexual.

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Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans* (Parte II de II)

Por viviane v.

[link para a Parte I]

dead prez – ‘Propaganda’ http://tny.gs/13JUG3m
dead prez – ‘Walk like a warrior’ http://tny.gs/13JSSrc
dead prez – ‘Hell yeah’ http://tny.gs/13JXXzD
Caetano Veloso – ‘Alegria, alegria’ http://tny.gs/13JY26A
Perota Chingo – ‘Soy el verbo’ http://tny.gs/13JX7TK

“Deve-se lutar pela porra do poder”

“Gotta struggle for the motherfucking power”

Após o almoço, sentamos para um café e um providencial reasoning. Chegamos ao GT alguns minutos após o início, o que me faz perder a apresentação que mais me interessava. A segunda apresentação se inicia, e é sobre “um transgênero”, pessoa descrita como alguém nascida do “sexo feminino” (sic) e identificada com o gênero masculino. Conforme Kate (uso pseudônimo, novamente) descreve a vida de seu ‘objeto’, insistentemente utiliza ‘ela’ para se referir a ele (objeto). Relevo como quem se acostuma a relevar instâncias cissexistas para não ser chamada de ‘impaciente’ e problemática [1], e também por imaginar que Kate se refere a seu ‘objeto’ como ‘ela’ por estar tratando de algum momento ‘gênero conforme’ de sua vida, como a infância. Quando Kate insiste demais em utilizar ‘ela’, levanto minha mão e pergunto se se trataria de ‘ele’ ou ‘ela’. Continuar lendo

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Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans* (Parte I de II)

Por viviane v.

Trilha sonora:
dead prez – ‘Propaganda’ http://tny.gs/13JUG3m
dead prez – ‘Walk like a warrior’ http://tny.gs/13JSSrc
dead prez – ‘Hell yeah’ http://tny.gs/13JXXzD
Caetano Veloso – ‘Alegria, alegria’ http://tny.gs/13JY26A
Perota Chingo – ‘Soy el verbo’ http://tny.gs/13JX7TK

Ideias intersecionais:
José Ribamar Bessa Freire – ‘Morte e vida Amarilda’ http://bit.ly/13JTY6h
Idelber Avelar – ‘Crítica:Trabalho é tão ideológico quanto a ideologia que quer combater’ http://on.fb.me/13JU262

Primeiramente, gostaria de enfatizar o caráter de opinião pessoal deste texto, o que significa que ele, embora inspirado em perspectivas transfeministas, não necessariamente expressa a opinião das pessoas que compõem este coletivo Transfeminismo.

Participei, nos últimos dias, do I Seminário Internacional Desfazendo Gênero: Subjetividade, Cidadania e Transfeminismo, em Natal (RN), organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade Social, Gênero e Direitos Humanos Tirésias, da UFRN, coordenado pela Profa. Dra. Berenice Bento. É uma iniciativa extremamente importante e corajosa, a de lutar academicamente por um evento que se proponha a pensar questões de gênero a partir “do protagonismo de pessoas trans*” e de lentes transfeministas. Infelizmente, talvez não tenhamos pessoas trans* em suficiente número na academia para atender ao chamado, mas é plenamente louvável que se potencializem as reflexões e posicionamentos políticos sobre questões historicamente marginalizadas nos movimentos gggg e tratadas a partir de perspectivas colonizatórias+inferiorizantes+patologizantes em parte significativa do meio acadêmico – medicina, psiquiatria, direito e quetais incluídos com muito ‘carinho’ nisso. Fico muito feliz, neste sentido, por todos os momentos em que pessoas trans* puderam construir, junto a outras pessoas acadêmicas, perspectivas e documentos críticos relativos às questões trans*. Continuar lendo

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