Por viviane v.
Trilha sonora:
dead prez – ‘Propaganda’ http://tny.gs/13JUG3m
dead prez – ‘Walk like a warrior’ http://tny.gs/13JSSrc
dead prez – ‘Hell yeah’ http://tny.gs/13JXXzD
Caetano Veloso – ‘Alegria, alegria’ http://tny.gs/13JY26A
Perota Chingo – ‘Soy el verbo’ http://tny.gs/13JX7TK
Ideias intersecionais:
José Ribamar Bessa Freire – ‘Morte e vida Amarilda’ http://bit.ly/13JTY6h
Idelber Avelar – ‘Crítica:Trabalho é tão ideológico quanto a ideologia que quer combater’ http://on.fb.me/13JU262
Primeiramente, gostaria de enfatizar o caráter de opinião pessoal deste texto, o que significa que ele, embora inspirado em perspectivas transfeministas, não necessariamente expressa a opinião das pessoas que compõem este coletivo Transfeminismo.
Participei, nos últimos dias, do I Seminário Internacional Desfazendo Gênero: Subjetividade, Cidadania e Transfeminismo, em Natal (RN), organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade Social, Gênero e Direitos Humanos Tirésias, da UFRN, coordenado pela Profa. Dra. Berenice Bento. É uma iniciativa extremamente importante e corajosa, a de lutar academicamente por um evento que se proponha a pensar questões de gênero a partir “do protagonismo de pessoas trans*” e de lentes transfeministas. Infelizmente, talvez não tenhamos pessoas trans* em suficiente número na academia para atender ao chamado, mas é plenamente louvável que se potencializem as reflexões e posicionamentos políticos sobre questões historicamente marginalizadas nos movimentos gggg e tratadas a partir de perspectivas colonizatórias+inferiorizantes+patologizantes em parte significativa do meio acadêmico – medicina, psiquiatria, direito e quetais incluídos com muito ‘carinho’ nisso. Fico muito feliz, neste sentido, por todos os momentos em que pessoas trans* puderam construir, junto a outras pessoas acadêmicas, perspectivas e documentos críticos relativos às questões trans*.
Apresentei, neste Seminário, o artigo ‘Explorando momentos de gêneros inconformes – esboços autoetnográficos’ (Grupo de Trabalho - GT 38), em que penso, entre outras coisas, sobre o caráter indispensável da intersecionalidade nas análises sociais, e sobre a autoetnografia como “possibilidade epistemológica interessante para grupos marginalizados”. Acredito que estes pensamentos metodológico+políticos possam servir como ferramenta para a análise crítica de algumas linhas discursivas que me inquietaram intelectual+afetiva+politicamente durante o evento, e é esta análise que pretendo a seguir.
“Você não pode enganar todas as pessoas todo o tempo
Mas se você enganar as pessoas certas, então o restante irá seguir”
“You can’t fool all the people all of the time
But if you fool the right ones, then the rest will fall behind”
Algo que me surpreendeu muito positivamente no Seminário foi a utilização bastante frequente dos termos analítico+políticos ‘cisgeneridade’, ‘cisgênera’, e para pessoas íntimas, ‘cis’. A genealogia destes termos, talvez para tristeza de uma academia que valori$a neologismos hip$ter, é bastante simples, e se funda na mera utilização do prefixo latino oposto a ‘trans’ para, politicamente, nomear normatividades e posições subjetivas dominantes em termos de identidades de gênero, usualmente identificadas com terminologia supremacista como ‘natural’, ‘de verdade’, ‘biológica’, ‘cromossômica’, etc – sim, a criatividade é grande. É uma solução que, como apreciadora da matemática, caracterizo como profundamente elegante, sem me surpreender que seus primeiros usos tenham sido (ao que tudo indica) realizados por pessoas trans* (procurar por Emi Koyama, por ex.): a necessidade de resistências leva, não raro e a despeito de nos tentarem posicionar como alienadas ou infantilizadas, pessoas trans* aos mais diversos ‘truques’, dos mais triviais aos mais sofisticados. A micropolítica, afinal, não se alimenta somente de teoria, especialmente conforme esta se afaste do chão das ruas e pistas.
“Se você vai incomodar, incomode por mudanças, não incomode por doideiras [1] / Se não, não incomode”
“If you gonna bang, then bang for change, don’t bang for crazy thangs / If not don’t bang”
Em determinada mesa do evento, um homem branco (cis? cisco?) refletia sobre dois ‘objetos de estudo’, “um michê” e “uma travesti”. Seu nome, utilizo pseudônimo, é Ed. Ele é acompanhado, na mesa, por dois outros homens brancos e uma mulher branca. Uma dessas pessoas me é muito querida, as demais não conheço pessoalmente. Ed, em dado momento, comenta à plateia lotada – sento-me ao chão, como muitas outras pessoas – que o michê, negro e “de corpo muito bonito”, tenha repetidamente afirmado preterir pessoas negras (homens) a pessoas brancas (homens) através de argumentação profundamente racista. Incomodo-me com a tranquilidade objetiva e científica com que se descrevem as justificativas do ‘objeto’ para, em dado momento de sua existência, desistir de ter relações sociais com homens negros; algo cheira mal, e não me parece ser o michê, tampouco nenhum corpo negro.
Penso (não posso deixar de pensar) na tranquilidade com que se fez e faz o escrutínio pretensamente (e socialmente referendado como tal) científico das existências trans*, penso nas violências discursivas a que estas existências são cotidianamente expostas, inclusive nos espaços que presente+anteriormente se acostuma+vam a referir a nós na terceira pessoa. Neste sentido, temo por aquilo que será dito sobre a travesti, e ‘felizmente’ há uma ‘descrição etnográfica’ um tanto mais empoderadora – pessoa leitora, favor apontar se não atentei a algum elemento problematizável.
Não permaneço na sala para o momento alocado ao debate, resolvemos ir ao RU para posteriormente participar de um grupo de trabalho. Pergunto-me se problematizarão a falta de sensibilidade na reprodução dos ‘relatos sobre o campo’, e minha pergunta se responde negativamente por algumas pessoas amigas que permaneceram. Entristeço-me ao pensar na comum exotificação de minha ancestralidade leste-asiática, e na frequente abjeção a certos corpos negros+sul-asiáticos tidos como diferentes da branquitude historicamente vista como ‘cheirosa’ (tenho razões profundamente afetivas para ambas tristezas). Seguimos ao RU, onde atento mais uma vez à branquitude dominante do espaço; ouço que várias das poucas pessoas negras da universidade são imigrantes de África, não pessoas brasileiras de ancestralidade africana. Vir da UFBA e de Salvador em 2013 traz uma outra perspectiva que estranha a predominância da branquitude com mais facilidade [2], mas ainda assim não posso deixar de notar que eu, enquanto pessoa branca+leste-asiática, não atentei a diversas expressões desta predominância senão via relatos de pessoas racializadas.
Reflito enquanto sento à mesa do restaurante com pessoas amigas. Nossos gêneros e estéticas inconformes causam alguns olhares, mas trocamos algumas ideias. Quando chegam outras pessoas cisgêneras à mesa, sinto-me constrangida em utilizar minha voz, que é frequentemente lida como ‘masculina’ e gera olhares de estranhamento. Reflito, afinal, sobre como Ed, através do michê que utiliza em sua apresentação, permitiu-se não somente a vocalização de graves violências racistas caracterizadas como – utilizarei uma aproximação do que lembro ter ouvido de Ed – “problemáticas”, mas especialmente a reprodução, com mais floreios e devaneios acadêmicos [3], de tropos clichês como ‘as piores racistas são as pessoas negras+racializadas’ ou, intersecionalmente, ‘pessoas trans* são vítimas alienadas do cistema e ainda por cima reproduzem estereótipos de gênero’. Direi com todas as letras: pessoas negras não ‘fedem’, pessoas negras têm (mais que tudo, mais que toda propaganda racista quer fazer crer) existências repletas de dignidades resistentes – como se testemunha facilmente em tantos olhos+olhares críticos de pessoas negras que venho tendo a honra e gratidão de conhecer –, existências que me inspiram profundamente em minhas lutas e em meu espírito [4]. Por sua vez (intersecionalmente), pessoas trans* não contribuem para sua própria patologização, pessoas trans* resistem, também com criatividades malandras (e problematizáveis desde diversos pontos de vista, evidentemente), aos intentos de criminalização, patologização, infantilização, exotificação e inferiorização de suas existências.
. . . [Final da parte I]
[link para a Parte II]
Notas.
[1]- Penso em conceitos ampliados de ‘mudança’, o que, espero, permita-me afastar de tentativas normatizantes+patologizantes de ‘doideiras’: acredito que muitas daquelas perspectivas que se consideram dominantemente como ‘doideiras’ são profundamente empoderadas e revolucionárias.
[2]- Mesmo que ainda seja muito insuficiente a redução na desproporção da branquitude nesta universidade, a disparidade observada entre as populações universitárias de UFRN e UFBA é evidente. A racialização das pessoas funcionárias, por sua vez, não mostrou diferenças significativas para mim, e é predominante, como usual pelos lugares que conheço do país.
[3]- Floreios e devaneios que são desejáveis e necessários (nota-se que não sou particularmente avessa a eles em minha escrita), mas que, imagino, podem ser utilizados sempre com vistas à máxima efetividade das lutas por justiças sociais.
[4]- Faço breve louvor ao confrade Zé Mina, que segundo minha mãe (de origem branco-portuguesa, até onde sei) foi um ex-escravo que ajudava outras pessoas negras em sua resistência de liberdade, e que ainda ajuda a todas pessoas de alguma forma. Sinto que sua existência discursiva me apoiou profundamente em minha autoidentificação de gênero, reconhecendo ainda a necessidade de investigar como minha ancestralidade contribuiu com genocídios brancos.