Arquivo do mês: setembro 2013

Carta Aberta Transfeminismo Fazendo Gênero

Aviso: Este documento foi feito após no encerramento do ST do Transfeminismo ocorrido no Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, em virtude de algumas questões que surgiram durante o referido Seminário. Solicitou-se que tal carta fosse lida no evento de encerramento do Seminário, o que por motivos desconhecidos não ocorreu.

Nós, participantes do pioneiro Simpósio Temático “Feminismo Transgênero e Transfeminismo”, realizado durante o Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 – Desafios Atuais dos Feminismos (FG10), como coletivo auto-organizado e orientado pela agenda transfeminista, discutimos e aprovamos a presente Carta Aberta “Transfeminismo Fazendo Gênero” à comunidade universitária, participantes do evento e, em especial, à organização do Seminário, composta pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas e pelo Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina e pelo Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Reconhecemos a importância da inclusão da teoria e da ação transfeminista na pauta de discussões deste Seminário de impacto internacional, com repercussões estruturais e incontornáveis nos feminismos contemporâneos; nos debates sobre as condições das mulheres e no próprio entendimento de acadêmicas/os, ativistas e demais pensadoras/es sociais acerca do que configura o(s) gênero(s).

Nesse sentido, vimos por meio desta registrar à Coordenação Geral e à Comissão Científica do evento nosso reconhecimento pela abertura para o diálogo sobre o transfeminismo quando o Simpósio Temático foi aprovado – pertinência que foi referendada pela qualidade e quantidade de trabalhos submetidos e aprovados – e pela iniciativa de ter organizado a Mesa Redonda “Transfeminismos no Brasil”, ambos espaços de debate plenamente integrados ao espírito desta edição do FG10, os desafios atuais dos feminismos.

Alertamos, para fins de aprimoramento das futuras edições, que a atualidade do tema e a pouca produção no campo pode ter gerado o desconforto observado na Mesa “Transfeminismos no Brasil”, na qual, apesar da qualidade e importância das pesquisas das palestrantes que se apresentaram, apenas uma delas possuía escopo teórico na questão propriamente dita.

Sugerimos à organização do evento que todas/os as/os debatedoras/es em quaisquer mesas sobre transfeminismo sejam pesquisadoras/es e/ou pessoas com expertise na área.

Ressaltamos que urge uma valorização dos conhecimentos e modos de fazer das pessoas trans, construídos historicamente, por meio de enfrentamentos ao cotidiano de exclusão ao qual a população trans está submetida no Brasil, culminando em um genocídio trans invisibilizado nas estatísticas oficiais ou indevidamente identificado como parte de um processo de homofobia – esta é a nação na qual mais se matam pessoas trans no mundo, conforme dados de pesquisa coletados em 55 países pela Organização Não Governamental Transgender Europe.

Convidando para uma produção solidária de não silenciamento, discordamos de qualquer tentativa de menosprezar as vozes – cada vez mais audíveis – das pessoas trans que denunciam o sexismo, o cissexismo e, em certos casos, a transfobia de quem considera que as pessoas trans devam ser apenas ouvintes ou objetos de estudo, e não sujeitos produtores de saberes.

Em resposta a discursos mal intencionados ou desinformados, destacamos que não buscamos naturalização de identidades por meio do uso do termo “cisgênero”, em contraposição ao de “transgênero”, pretendemos tão-somente localizar as pessoas trans e cis em seus espaços identitários de gênero e forçar o reconhecimento de que há privilégios, constituídos socialmente, para pessoas cisgênero, em detrimento das pessoas transgênero.

Convidamos acadêmicas/os a se mobilizarem favoravelmente pela inclusão efetiva – e não apenas no discurso – da população transgênero nas universidades brasileiras, seja como estudantes, técnicas/os ou professoras/es, sem temores infundados de “invasão” de espaços, mas, isso sim, de diminuição de alguns dos inúmeros obstáculos que impedem ou prejudicam a inserção e a permanência de pessoas trans no Ensino Superior, em quaisquer posições.

Concluindo, exaltamos as/os estudiosas/os e grupos de pesquisa que, apesar da quase ausência de apoio financeiro e infraestrutural aos estudos e pesquisas sobre a realidade das pessoas trans e sua transformação, empreendem trabalhos intelectuais e de intervenção com ousadia e senso de justiça social.

 

Florianópolis, 20 de setembro de 2013.

1 comentário

Arquivado em Acadêmico, Política, Transfeminismo

AFORISMOS SOBRE OS QUAIS ERGUER O TRANSFEMINISMO*¹

Por JAQUELINE GOMES DE JESUS*2

Este não é um texto introdutório. Não se pretende didático, não é um jogral, tampouco se quer esotérico. Exigirá de você alguma experiência, senão a vontade de buscar informações quando não as tiver e, indispensavelmente, a capacidade de refletir de maneira autônoma.

A atual conjuntura cultural permite que se façam as afirmações a seguir, a mentalidade da população está preparada para receber esta mensagem, pelo menos é capaz de ouvi-la. Quanto a entendê-la, isso ainda dependerá de políticas sociais que ainda estão por vir, de uma educação sobre gênero que ainda é embrionária e experimental, de uma estrutura de poder que inexiste.

Neste momento, somos apenas eu e você dialogando. Quem por acaso ouvir nossa conversa, lá nos píncaros dos poderes estabelecidos ou sob as suas sombras, rotular-nos-á de “minoria radical”. Agora acenderei a fogueira.

1. Se posso iniciar descrevendo algo certeiro sobre o transfeminismo é que ele é uma chama e o combustível se chama gênero, embebido no pavio do feminismo — servindo como lamparina ou coquetel molotov.
2. Mas se eu pudesse ser menos objetiva, diria que o pavio, tanto quanto o combustível e a chama, são fabricados.
3. Caso você reflita, andando pelos mesmos caminhos tortuosos desta negra chata que peripateticamente vai planejando modos de luta ao longo da vida, também se perguntará, como eu agora: quem fabricou? O individualismo, elemento essencial de nossa modernidade, direciona nosso olhar para as pessoas, evitando ver os coletivos.
4. Porém, não elenquei como uma das metas deste texto apontar culpados. Então, para não perdermos muito tempo com filigranas, sugiro que se faça outra pergunta: no que o transfeminismo te beneficia?
5. Uma chama pode se tornar pavio de outras chamas.
6. A vós, pessoas trans, foi legado o juízo da inquisição nas chamas do ódio, da repulsa, do avesso do normal que deve ser extirpado — sois novas bruxas e feiticeiros!
7. Você conta em uma das mãos os professores transgênero que conhece? Você conta em uma das mãos os chefes transgênero que conhece? Você acha que assim o é por decreto? Talvez tenham decretado que estas pessoas sejam comparáveis a ratos, como o povo judeu foi assim rotulado pelos nazistas.
8. Agora eu sou apenas as mãos de que essa gente se serve para escrever e a boca para que falem.
9. Transfeminismo: pensamento com ação. Ação entremeada no pensamento. Radical porque vai à raiz das coisas.
10. Transfeminista: alguém que questiona a ordem do dia, gritando dos corredores (quaisquer) que lhe estão roubando a vida.
11. O transfeminismo incendiará os santos de pau oco vestidos com a verdade dos gêneros — mas as costureiras podem tecer para outros ídolos.
12. Por quê um transfeminismo?

Porque ainda há parceiros da população trans que divulgam artigos e livros sobre as pessoas trans de todos os gêneros, mas mantêm um discurso paternalista que infantiliza a população transgênero e generaliza suas diversas mobilizações como se fossem oriundas de um único movimento social, com uma pauta única;

Porque ainda há travestis, homens e mulheres transexuais que internalizam o cissexismo e a transfobia, adotando essas formas de dominação psicossocial como se fossem parte “essencial” de sua identidade;

Porque ainda há pessoas cisgênero e transgênero que, se não naturalizaram o discurso no qual as pessoas trans são sempre as diferentes, e diferentes como sinônimo de inferiores, tentam impelir as pessoas trans a serem objetos de uma guerra teórica segundo a qual elas teriam identidades políticas em tempo integral, e portanto seriam obrigadas a contestar diuturnamente o binarismo de gênero.

13. A transfobia funciona porque os que se apropriaram dos ideários de humanidade e de democracia os vendem em estabelecimentos nos quais a transgeneridade está ausente. O acesso não é permitido, e quem ouse adentrar é expulso.

14. Nem infantilizadas, nem unânimes, nem transtornadas, nem objetos: apenas pessoas, como quaisquer outras. Isso para mim é transfeminismo, uma linha de pensamento e ação que não se permite ser propriedade privada deste ou daquele gênero, deste ou daquele grupo social, desta ou daquela identidade de gênero, mas que pode, isso sim, ser parte do discurso e da prática de todas as pessoas.

15. Transfeministas são sementes que podem ser regadas ou esmagadas. Assassinar pessoas trans é hábito desta sociedade, quanto mais aquelas que defendem a ideia de que são gente.

16. O transfeminismo tem suas raízes no feminismo negro, no feminismo da diferença, nas vertentes pós-estruturalistas do feminismo — e nessas loucas e nesses loucos que vêm gritando dentro de casa, na internet e nas ruas, pelo direito de serem quem são.

17. Um olhar transfeminista é aquele que investiga, no mundo e no tempo, objetividades dinâmicas: contraposto à dominação científica que busca balizar, de forma fixa, totalidades universais.
18. O feminismo negro pariu o transfeminismo, foi um nascimento difícil, um processo longo.
19. Se o feminismo negro exige um olhar afrocentrado, qual seria a exigência do transfeminismo, um olhar a partir do ponto de vista dos marginalizados, das prostitutas, dos humilhados?
20. Comentário à parte 1: há muita militância trans fora do movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT, especialmente se levarmos em conta o ativismo online. Creio que estamos chegando em um ponto no qual não fará mais sentido falar em movimentos trans restritos aos LGBT.
21. Comentário à parte 2: causa trans não se restringe a questões de “aceitação”; políticas públicas não se restringem ao âmbito político; histórias pessoais não conseguem descrever plenamente a complexidade da luta trans.
22. Comentário à parte 3: a bandeira do arco-íris é linda, divertida, porém ela tem sido utilizada para encobrir as pessoas trans. Eu escrevo o que ouço: “Que as bandeiras trans sejam hasteadas!”, um sussurro a cada dia mais audível.
23. Reflexões soltas: se é transfeminismo…

…Desmantela e redefine a equiparação entre gênero e biologia;

Reitera o caráter interacional das opressões;

Reconhece a história de lutas das travestis e das mulheres transexuais, e as experiências pessoais da população transgênero de forma geral; e

Valida as contribuições de quaisquer pessoas, transgênero ou cisgênero.

24. O que seria misoginia vinda de mulheres trans? Uma forma de auto-depreciação?
25. O transfeminismo não reforça dicotomias. Isso é diferente de afirmar que pessoas se consideram homens ou mulheres, trans ou cis, e que há privilégios sociais para alguns, em detrimento de outros.
26. Transfeministas são sementes que podem ser cultivadas ou esmagadas.
27. Assassinar pessoas trans é hábito desta sociedade, quanto mais aquelas que defendem que são gente.
28. O transfeminismo tem suas raízes no feminismo negro, no feminismo da diferença, nas vertentes pós-estruturalistas do feminismo.
29. O feminismo negro pariu o transfeminismo, foi uma gestação complexa, um nascimento difícil, enfim, um longo processo.
30. O transfeminismo tanto é filho do feminismo negro que partilha com esse — pelo menos com suas linhas mais críticas — o entendimento de que, se as pessoas negras foram “desgenerificadas” quando da Diáspora (homens negros não eram tidos como homens, nem mulheres negras como mulheres), também pessoas trans têm sido vítimas de desgenerificação, em nome do modelo branco, heterossexual e cisgênero.
31. O transfeminismo é irmão do feminismo lésbico, também este, por muito tempo, taxado como uma ovelha negra por alguns integrantes da família dos feminismos.
32. Se há um compromisso social do transfeminismo, ele é com a construção de uma sociabilidade alternativa.
33. Quais são os desafios do transfeminismo?

Despontar como uma filosofia e uma prática dos movimentos sociais;

Popularizar-se como discurso viável;

Adotar um olhar que reconheça particularidades etnicorraciais, regionais, de classe e habilidades físicas nos contextos sociais diversificados da população transgênero; e

Questionar diuturnamente os modelos idealizados de homem e de mulher.

34. Entender o transfeminismo em si, para além dos estereótipos de gênero e de conflitos pessoais, é um dos desafios atuais dos feminismos.
35. Quais práticas se demonstram mais consistentes para a consolidação do transfeminismo? Criticar a socialização de gênero que aí está, combater a lógica classificatória que segrega pessoas trans de cis sem considerar as nuances entre elas.
36. Se as pessoas trans não forem empoderadas a falarem por si mesmas, continuarão infantilizadas ou tratadas como objetos descartáveis.
37. A razão indolente é um fato cotidiano para pessoas trans: é apagado seu pensamento autônomo como racionalidade possível.
38. Do que falam as pessoas transgênero? De quaisquer assuntos que lhes interessem. Essa mesma pergunta soaria natural se feita com relação às pessoas cisgênero?
39. Devem elas e eles serem assassinados? Demitidos, expulsos, perseguidos, agredidos, ridicularizados, reprovados? Isso ocorre tão cotidianamente…
40. As pessoas trans há muito falam dos sabores amargos em suas bocas, precisam agora dizer que também experimentam delícias e fazem doces.
41. Nem só de lamentos vivem as pessoas trans, mas também de beleza.
42. Uma minoria desprezível: pensamento seguido de sensação de alívio para alguns que observam silentes os gritos de dor, horror ou protesto dessa gente tida como abjeta.
43. Ainda bem que não é comigo — outro pensamento comum.
44. Sabe que falam pelas suas costas — sobre você — quando te saúdam alegremente usando tratamento de gênero incoerente com a sua identidade — a armadilha dos liberais de fachada. Pergunte a eles de quem estão falando.
45. Como identificar uma pessoa cisgênero? Quais são os “marcadores cis”?
46. Por que essas perguntas fariam sentido se fossem feitas com relação a pessoas trans?
47. O que são as mulheres transexuais e as travestis? ( ) coitadas / ( ) doentes / ( ) confusas / ( ) exóticas / ( ) humanas / ( ) putas sujas.
48. O que querem as mulheres transexuais e as travestis? ( ) um homem para chamar de seu / ( ) uma vagina para chamar de sua / ( ) glamour / ( ) viver suas vidas.
49. Homens transexuais, tão invisíveis. Quem não está olhando para eles? Ou talvez a pergunta correta seja: estão olhando para eles ou para outra direção?
50. Falta se pensar na auto-representação de gênero dos homens trans, tanto como…
51 …Na auto-representação sexual dos homens cis heterossexuais que em relações sexuais gostam de serem penetrados por mulheres…
52 …Na auto-representação sexual de mulheres cis heterossexuais que gostam de penetrar homens nas relações sexuais…
53 …Na auto-representação de gênero de homens e mulheres cisgênero cujos pênis, úteros ou seios foram extirpados, por quaisquer razões.
54. Nossos modelos de representação sobre quem são e o que fazem homens e mulheres são por demais tacanhos, deveras pautados pela lógica dos contos de fada, que a massa silenciosa tenta reproduzir no dia-a-dia. Não é à-toa que haja tantos seres humanos invisíveis.
55. O pensamento transfeminista, traduzido por diferentes meios, criará indivíduos sociais novos, que o feminismo ainda terá de reconhecer.
56. Como existir racionalmente na sociedade sexista?

Lutando contra a naturalização das estruturas de dominação e do binarismo de gênero (homem = pênis, mulher = útero).

57. O corpo como território da rebeldia.
58. Ilude-se quem pensa “esse assunto não é comigo”. Iluminando a condição das pessoas trans também conseguimos enxergar a das demais.
59. Como chegamos a ser quem somos? Antigo questionamento da Psicologia para o qual há tantas respostas… A novidade seria perguntar como nós podemos não nos tornar o que os outros são, como se tornarmos o avesso do que tantos idolatram. Pensar gênero no mundo de hoje tem a ver com essa questão um tanto prospectiva e obviamente iconoclasta, tem a ver com mostrar que as estátuas mais adoradas têm ranhuras e podem ser quebradas.
60. Um velho poema escrito por esta quando jovem. Ao fundo, dança uma orixá (escolha a sua, não precisa acreditar):

PORQUE SOU MULHER

Antes de morrer

Quero ver brotar

Do papel mais árido,

O suave prazer

De ter um lugar

Pro som do meu hálito.

Depois de nascer

Desabrochará

A flor do meu nome?

O encanto de ver

Satisfeita cá

Essa minha fome?

Porque sou mulher.

Essa é a minha letra,

Verdade adorada,

Igual a qualquer

Outra, que remeta

À minha alvorada.

Serei este ser

Sempre, não importa

Se dizem “jamais”.

Não posso esquecer

O que me conforta,

Meu canto fugaz.

61. Onde está a mulher ideal, a mulher hiper-real? É tão fácil vê-la nos meios de comunicação, nas propagandas, nos livros didáticos e paradidáticos… porém, há quem a procure com uma lupa pelas ruas, dia e noite, e não a encontra…
62. O apartheid de gênero está entranhado nos corações e mentes.
63. Porém há uma revolução em curso. Ela tem uma festa de lançamento, que já foi marcada pela internet. Talvez se espalhe pelas ruas.
64. Das margens, das sombras, estão aquelas e aqueles que subvertem o controle institucionalizado sobre os corpos, que maquinam contra a tirania do Sexo-Rei.
65. Incomodam, aquelas e aqueles que pulam as cercas que segregam homens e mulheres nesse regime totalitário para a livre vivência de identidades e sociabilidades.
66. Desde o princípio do feminismo como pensamento e ação há um temor no núcleo das inquietações contemporâneas (ocidentais), ora potencializado: de que seja possível se libertar das amarras de gênero, que então se fragilize a estabilidade das identidades e a “naturalidade” corporal do ser mulher ou ser homem.
67. O gênero, quando pensado e abordado como sinônimo de sexo biológico, situa algumas pessoas fora de suas fronteiras rígidas, tornando-se, dessa forma, um conceito excludente, herdeiro do patriarcado e da supremacia colonialista.
68. Como pensar o gênero aquém do sexo? Grandes são os desafios para se superar o paradigma dimorfista. Mais do que instilar medo, precisamos demonstrar confiança.
69. Minha intuição: o caminho começa não no dizer não para o sexo, mas no dizer sim para o gênero.

Era noite de Lua Cheia quando encerrei a escrita destes aforismos (também o Bebê Real nasceu e o Papa chegou). Agora, voltemos nossos olhares para a vida.

*1 Texto a ser discutido durante apresentação da autora na mesa-redonda “TransFeminismos no Brasil”, a ser realizada no dia 19 de setembro, das 9h às 12h, durante o Seminário Internacional Desfazendo Gênero: Desafios Atuais dos Feminismos, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis.

*2 Doutora em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília. Escreve no blog Jaqueline J.

9 Comentários

Arquivado em Uncategorized

Uma sinfonia social: Os Quatro Movimentos da Transfobia na Teoria (Parte II)

Por Katherine Cross

Tradução: Viviane V.

[segunda parte da tradução do texto “A Social Symphony: The Four Movements of Transphobia in Theory”, disponível em http://bit.ly/142Wzes]

Gestos de exclusão

Este é um movimento bastante crítico, uma vez que ele descreve o fundamento da ‘mina de dados’: o fato de que pessoas colonizadas ou marginalizadas são fontes de dados inertes, objetivos e sem voz que estão livres para serem moldados de acordo com a vontade da pessoa teorista.

A exclusão, neste caso, é de qualquer teoria gerada pelas pessoas colonizadas. Neste movimento encontramos teoristas falando em nome daquelas pessoas que estudam, interpretando suas vozes e, mais frequentemente, teorizando sobre elas e tomando para si a tarefa de dar a elas um significado para suas próprias existências. Assim, em discussões sobre pessoas transgêneras, pessoas trans* pensadoras são usualmente excluídas de formas bastante dramáticas em prol dos próprios esforços de teoristas na definição de quem e o que são pessoas trans*, do que significamos, e na determinação de como os dados brutos de nossas vidas devem ser melhor utilizados.

Quando nos deparamos com uma variedade de textos teóricos que discutem pessoas trans* de formas que prontamente podemos identificar como transfóbicas, há um notável buraco negro em quaisquer das páginas de “referências bibliográficas” ao final deles. Não se encontram referências a pessoas pensadoras trans* como Riki Wilchins, Susan Stryker, Sylvia Rivera, Julia Serano, Vivian Namaste, Dean Spade, Paisley Currah, Pat Califa, Stephen Whittle, Carol Riddell, Lou Sullivan, Jay Prosser, Tobi Hill Meyer, Emi Koyama, Joelle Ruby Ryan e outras mais. Caso se encontrem, elas são mencionadas de forma bastante oblíqua. Isto é especialmente marcante em relação a mulheres trans* teoristas que são, muitas vezes, mais fortemente excluídas que seus colegas homens trans*, para que não se fale das pessoas pensadoras que se identificam fora destas fronteiras (Kate Bornstein é uma rara exceção).

Dito isso, fazer referência de forma positiva a diversas teoristas trans* não significa a inoculação contra transfobia, como se evidencia em ‘Transgendering’, de Kessler e McKenna.

Entretanto, em muitos textos problemáticos, e mais amplamente na mídia problemática como um todo, encontramos uma exclusão praticamente completa de produções intelectuais trans*, e das teorias que fazemos sobre nossas próprias vidas. Para além dos “grandes nomes” que mencionei acima, praticamente todos dentro dos padrões acadêmicos de publicação, estão inúmeras pessoas blogueiras que pensam de maneiras muito interessantes sobre suas vidas, pensamentos que tendem a enfraquecer significativamente toda narrativa cis presente nos livros, mas tais ideias nunca merecem menção na teoria ou nos noticiários.

O grande apagamento

Se todos estes movimentos aparentam caminhar juntos de alguma maneira, eu imagino que seja por construção; eles estão todos relacionados entre si e frequentemente requerem uns aos outros para operar. Por exemplo, gestos de exclusão de teoristas trans* facilitam enormemente o grande apagamento, que é o generalizado apagamento ou desconsideração de experiências vividas por pessoas trans* na produção de teorias sociais e de gênero. A afirmação de Kessler e McKenna sobre o “profundo conservadorismo” que gera uma “aceitação relativa do transexualismo” [nt: sic] é algo que funciona somente caso se apague o sonoro coro de vozes transexuais que vão em sentido contrário a este, vozes que atestam tanto a falta de aceitação quanto as perspectivas políticas frequentemente complexas e diversas que qualquer de nós pode articular.

O mesmo ocorre quando Judith Lorber afirma que o “objetivo” de pessoas transexuais é serem “mulheres femininas e homens masculinos”. Nem preciso me dar ao trabalho de mostrar as legiões que são apagadas com esta proclamação teórica.

Até o momento, há uma tensão irônica presente neste texto, e ela se relaciona com o fato de que eu estou surrupiando este paradigma de quatro frentes de um livro que é fundamentalmente sobre o apagamento, efetivado pelo ocidente, de culturas, vidas, e pessoas não ocidentais, e ainda não falei sobre a ligação última da preocupação pós-colonial de Connell com a minha preocupação trans*: o apagamento ocidental da diversidade de gêneros em culturas não ocidentais.

Uma das melhores coisas que Suzanne Kessler e Wendy McKenna fizeram foi chamar a atenção a como teoristas ocidentais impuseram suas próprias definições sobre pessoas de gênero variantes que tais teoristas iam encontrando nas culturas que estavam colonizando. Kessler e McKenna apontam como, por exemplo, pessoas nativas americanas Dois Espíritos [nt: two spirit Native American, no original] foram classificadas de maneiras diversas em um esquema analítico de gênero e sexualidade que era decididamente europeu, mesmo que isso não tivesse nenhuma relação com as maneiras através das quais estas pessoas concebiam suas próprias vidas e através das quais suas culturas as viam. Isso, então, facilitou uma visão universalizante de gênero com a qual ainda vivemos, em que um ideal de gênero ocidental hegemônico é popularmente tido como culturalmente e temporalmente universal. Sempre houve homens masculinos e mulheres femininas – e somente isso – em todas culturas, em todos períodos históricos. Sendo assim, nosso sistema de gênero é “natural” e atemporal.

Você somente pode fazer isso se apaga as inúmeras formas através das quais as pessoas, historicamente e nas contemporaneidades, fizeram e fazem gêneros diferentemente deste esquema, estejam elas no ocidente ou não.

Há inúmeras [http://en.wikipedia.org/wiki/Mahu_%28person%29] pessoas [http://en.wikipedia.org/wiki/Hijra_%28South_Asia%29] que não são consideradas [http://en.wikipedia.org/wiki/Two_Spirit] nas grandes teorias de gênero, e pessoas com gêneros distintamente não ocidentais também veem suas contribuições apagadas, como a pessoa ativista e poeta Menominee Chrystos, cujo trabalho figurou na antologia ‘This Bridge Called My Back’. Mesmo teoristas feministas que, ostensivamente, estão investidas em quaisquer conceitos que as ajude a demonstrar que a designação de gênero patriarcal é construída e maleável, frequentemente não parecem prestar muita atenção a como tais gêneros [inconformes] imediatamente problematizam teorias universalizantes. Afinal, considerando-se estas existências, a filosofia de Elizabeth Grosz se torna bem mais frágil, não? As visões de uma universalidade feminina ou de uma mulheridade essencial [nt: essential womanhood, no original] em Luce Irigaray e Nancy Chodorow também se tornam profundamente problemáticas.

Para retornar a Robert Jensen também, suas repetitivas afirmações de que “trans falhou como um projeto político” constituem não somente um ‘grande apagamento’ dos êxitos que vejo ao meu redor dia após dia, mas também uma forma particular de fantasia que tanto pressupõe a ‘falha’ como o ‘projeto político’ mesmo: nem todas pessoas trans* são políticas ou compartilham dos mesmos objetivos ou conceituam a importância política de seu[s] gênero[s] das mesmas maneiras. Parece seguro admitir que Jensen não prestou atenção a nada disso (retornarei ao sr. Jensen em outra oportunidade, também).

Penetras no baile

Estes quatro movimentos, fases de uma amável sinfonia que mantém a fábrica de teoria de gênero trabalhando em sua ignorância de questões e políticas trans*, representam obstáculos bastante visíveis; eles têm de ser quebrados de forma a fazer o cânone mais inclusivo e mais preciso. De muitas e muitas formas, isso já aconteceu. Da próxima vez, discutirei algumas destas teorias.

Mas enfatizando, um pensamento distintamente transfeminista exige que se afaste destes tropos, bem como – em minha opinião – exige algo mais que, até agora, já discuti de algumas maneiras. A redefinição da teoria. Aquilo que se constitui como teoria válida é ainda frequentemente limitado às páginas em branco e preto de periódicos oficialmente impressos e revisados por pares completamente dominados por pessoas cis que ou mal ouviram falar de nós ou teorizam contra nós de maneiras incompetentes.

Ao considerarmos a ampla blogosfera trans*, torna-se evidente que a produção teórica e intelectual está – por necessidade – ocorrendo fora da academia ou em suas periferias. Os lugares onde pessoas trans* aprendem, se reúnem, se expressam e, sim, criam teoria estão frequentemente distantes destes lugares tidos como mais legítimos ou oficiais. O problema central que estes quatro movimentos definem é um problema de exclusão explícita: eles são aquilo que emerge da exclusão das pessoas trans*, do fracasso em tomar nossas experiências em consideração, e finalmente do desejo de falar por nós. Podem as pessoas cis evitar estes quatro tropos? Certamente. Mas o outro antídoto vital é que as inúmeras pessoas trans* no presente sejam consideradas teoristas de acordo com nossas capacidades, independentemente de nossas posições acadêmicas. Ainda vivemos em um mundo, afinal, em que pessoas médicas e psiquiatras cis supostamente sabem mais sobre nós do que nós mesmas.

Em ensaios recentes, falei sobre como nós precisamos tomar os meios de produção intelectual. A questão é que, de várias maneiras, nós já fizemos isso – acontece que algumas pessoas teoristas cis ainda não se dignaram a perceber isso.

Deixe um comentário

Arquivado em Uncategorized

Uma sinfonia social: Os Quatro Movimentos da Transfobia na Teoria (Parte I)

Por Katherine Cross

Tradução: Viviane V.

[primeira parte da tradução do texto “A Social Symphony: The Four Movements of Transphobia in Theory”, disponível em http://bit.ly/142Wzes]

Somente para dar ares mais, digamos, ‘tropicais’ a esta tradução, inicio com Chico Buarque:

“Hoje você é quem manda

Falou, tá falado

Não tem discussão

A minha gente hoje anda

Falando de lado

E olhando pro chão, viu”

(Chico Buarque - Apesar de você)

Esta tradução é particularmente importante para mim, por ter me permitido compreender as razões pelas quais me foi tão difícil encontrar referências e abordagens críticas sobre questões trans* em alguns meios acadêmicos. Tendo vindo das ciências econômicas, e iniciado meus estudos destas questões a partir da participação em fóruns trans* e da leitura de pessoas autoras trans* (como Julia Serano, por exemplo) – principalmente por uma questão de sobrevivência, neste processo de autoidentificação de gênero –, incomodou-me que parte significativa da produção acadêmica com que tive contato não dialogasse com estas perspectivas.

O texto de Katherine Cross me permitiu articular estes incômodos de maneira crítica, e espero que possa servir a outras pessoas que se preocupem com questões políticas trans*, seja na academia, seja ‘fora’ dela. Esta tradução está dividida em duas partes.

* * *

img_vivi_texto

Analisando o lugar de pessoas trans* [nota da tradução (nt): transgender and transsexual people, no original] na teorização de várias disciplinas, podem-se encontrar diversas linhas comuns que articulam todo este projeto [nt: acadêmico]. As sociedades podem ser, com certa frequência, bastante confusas e, ainda assim, de forma paradoxal, podem ter nelas mecanismos identificáveis de operação que engendram certas forças sociais inexoravelmente adiante. Aonde pretendo chegar com isso? Quais são estas linhas comuns? Bem, com o indispensável apoio de uma renomada teorista social que é uma mulher trans*, acredito ter encontrado quatro.

Pessoas trans* não são o único grupo de pessoas tratadas de formas problemáticas pela teoria social e política; há muito a ser aprendido da análise de como paradigmas teóricos explicitamente excluíram outras pessoas marginalizadas. Em seu livro Southern Theory, a socióloga Raewyn Connell articula uma excelente exegese da teoria social ocidental que traz à tona suas premissas profundamente eurocêntricas, bem como o projeto colonial que a fundamenta. O mundo colonizado, ela diz, era somente uma mina de dados cujos números brutos seriam exportados à ‘metrópole’ (Europa e Estados Unidos) para produção teórica que trabalha na formação de uma visão definitiva da(s) pessoa(s) colonizada(s). Nesse sentido, a relação entre colonizador e colonizada não é diferente quando se considera a esfera acadêmica em oposição às esferas política ou industrial, por exemplo.

As relações com as maneiras através das quais pessoas acadêmicas conceituam e, principalmente, utilizam pessoas trans* ficam muito claras, aqui. Metáforas de colonização também são muito úteis para se discutirem dinâmicas sociais imensamente desiguais dentro de países ocidentais; histórias de apropriação e exploração certamente não se limitam ao ‘mundo em desenvolvimento’ [nt: majority world, no original], e ‘minas de dados’ podem ser encontradas na rua ao lado de onde estou [nt: a autora escreve do 'mundo desenvolvido'] bem como em Gana, Paquistão, ou na Austrália aborígene. O que é mais preocupante sobre tal teorização é que não somente ela se apropria, utiliza mal, e distorce as experiências da pessoa colonizada, mas em outras instâncias elas também são, como um todo, ignoradas (particularmente no tecer de teorias genéricas sobre a sociedade). Connell identificou quatro movimentos da academia colonialista que, segundo ela, caracterizam a maior parte dos intentos de teorização sobre a sociedade: a pretensão de universalidade, a leitura desde o centro, gestos de exclusão, e o grande apagamento. Passarei por cada um destes movimentos, discutindo sua relevância para teorias de gênero e, mais especificamente, para pessoas trans*.

Em seu fundacional artigo ‘O Império Contra-Ataca: um Manifesto Transexual’ [nt: tradução livre de 'The Empire Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto'] (1991), a teórica, mulher trans e ciborgue-feminista Sandy Stone articula resumidamente uma ideia que estrutura tanto este artigo quanto meu pensamento geral sobre as relações de pessoas trans* com instituições médico-jurídicas dominantes e com a academia:

Gostaria de apontar as amplas similaridades que esta justaposição peculiar tem com aspectos de discursos coloniais com os quais podemos ter alguma familiaridade: o fascínio inicial com o exótico, que se estende a pessoas pesquisadoras profissionais; a negação da subjetividade e o cerceamento do acesso ao discurso dominante; seguido por uma espécie de reabilitação. […]

Corpos são telas em que vemos projetados os assentamentos momentâneos que emergem dos embates correntes acerca de crenças e práticas realizados nas comunidades acadêmicas e médicas. Estes embates ocorrem em arenas muito distantes do corpo. Cada um deles é uma tentativa de adquirir um posicionamento altivo de caráter profundamente moral, de trazer uma explicação oficial e final para como as coisas são e, consequentemente, para como elas devem continuar a ser. Em outras palavras, cada um destes embates representa a cultura falando através da voz de uma pessoa. As pessoas que não têm voz nessa teorização são as pessoas trans* [nt: transsexuals, no original]. Da mesma forma que homens [nt: cis] teorizam sobre mulheres desde o início dos tempos, pessoas teóricas de gênero veem pessoas trans* como possuidoras de algo aquém de agência.

Tudo isto se faz manifestar no fascínio que algumas pessoas teóricas têm conosco, fetichizando as exóticas pessoas trans* que elas veem em suas mentes como inerentemente radicais ou conservadoras, negando que as autocompreensões individuais das pessoas trans* são importantes (a não ser que elas se alinhem com uma narrativa cis dominante), e crendo que as ideias articuladas tanto na medicina, na psiquiatria ou na academia patriarcalmente controladas podem de alguma forma nos salvar. Permeando tudo isso como uma camada de suporte, está a ideia de que nós não podemos falar ou agir por conta própria, de que nós nunca poderemos ser pessoas produtoras adequadas de conhecimento sobre nossas próprias vidas.

Isto é realizado das seguintes formas:

A pretensão de universalidade

Certamente, seu significado pode ser facilmente compreendido. Raewyn Connell diz deste tropo:

Em cada um dos textos discutidos até agora, há uma forte e repetida pretensão de relevância universal. Para estas pessoas autoras, e para muitas outras, a ideia mesma de teoria envolve dialogar em termos universais. Presume-se que todas as sociedades sejam conhecíveis, e conhecíveis da mesma forma e desde o mesmo ponto de vista.

Em relação a teorias feministas, isso acontece da seguinte maneira. Tudo se inicia com a tendência a se universalizar gênero como um todo posicionado no binômio macho-fêmea: assim, todas mulheres [nt: cis] são relacionadas entre si, bem como os homens [nt: cis], e cada grupo tem interesses idênticos e corpos idênticos. Da mesma forma que a teorização metropolitana sobre sistemas sociais de maneira mais geral é excludente de tudo que não se encaixa neste paradigma, assim também acontece com este tipo particular de teorização, que é excludente de todas pessoas cujos gêneros não possam ser assim categorizados.

Considere-se a seguinte passagem da filósofa feminista Elizabeth Grosz em ‘Corpos Voláteis’ [nt: tradução livre de 'Volatile Bodies']:

Sempre haverá uma espécie de exterioridade ou estranheza nas experiências e na realidade vividas de cada sexo em relação ao outro. Homens, contrariamente à fantasia do transexual [nt: sic], não podem nunca, mesmo com intervenções cirúrgicas, sentir ou experienciar o que é ser e viver como mulher. No máximo, o transexual [nt: sic] pode viver sua fantasia de feminilidade – uma fantasia que em si mesma é frequentemente frustrada com as transformações toscas [nt: sic] resultantes de intervenções cirúrgicas e químicas. O transexual [nt: sic] pode parecer uma mulher, mas não pode nunca se sentir como ou ser uma mulher.

Temos, assim, uma colocação teórica que pressupõe a universalidade de três conceitos: mulher, homem, e transexual. Os problemas ficam rapidamente explícitos. Em primeiro lugar, este tríptico é um desenho da própria Grosz. Não deve surpreender ninguém que ela seja uma mulher cis. Nesse sentido, “o transexual” se torna uma espécie de terceiro gênero, o que é algo que despreza completamente a realidade vivida e corporificada de [nt: diversas pessoas] homens e mulheres trans*. Considerar homens trans* é particularmente interessante aqui, pois Grosz fala somente de pessoas que parte considerável das pessoas leitoras entenderá como mulheres transexuais. No entanto, ela fala no termo universalizante “o transexual” como se estas pessoas [nt: mulheres] trans* fossem tudo que pudesse estar incluído neste conceito.

Então, evidentemente, ela precisa utilizar uma premissa sobre o caráter existencial da hombridade ou mulheridade [nt: manhood e womanhood, no original]. Há, ela infere, uma poderosa experiência universal inerente à ontologia da mulher. Ser mulher, ela argumenta, significa algo que aquelas pessoas que ela generifica como homens não podem acessar. O problema é que sua definição desta experiência universal ignora a sua própria posição subjetiva – o tipo de mulher que ela é molda o que a mulheridade é para ela, para começar. A sua mulher existencial seria o mesmo tipo de mulher em Nova Iorque, Dubai, ou Jacarta? Em uma Reserva Hopi ou ao sul do Bronx? Em um subúrbio francês ou em Estocolmo? A resposta, naturalmente, é não. O mesmo se aplica a mim. E se isto é verdadeiro, então todo o projeto se desmonta, bem como as bases para se promulgar firmemente que “o transexual” é ou não pode ser x, y ou z.

Para fornecer uma contraposição sobre o assunto, podemos analisar a teórica feminista Linda Nicholson, que teve o seguinte a dizer sobre a premissa do gênero universal:

Quero sugerir que pensemos sobre o significado de mulher da mesma forma que Wittgenstein sugeriu pensarmos sobre o significado de jogo [nt: game, no original], como uma palavra cujo significado não se encontra através da elucidação de alguma característica específica, mas sim através da elaboração de uma complexa rede de características. […] Isso também permite que se considere o uso desta palavra em contextos onde tais características [biológicas] não estão presentes, como por exemplo em países de língua inglesa anteriormente à adoção do conceito de vagina, ou em sociedades contemporâneas de língua inglesa onde se refere àquelas pessoas que não têm vaginas mas ainda se sentem como mulheres, isto é, a transexuais antes de operação médica.

Para que fique bem claro, a sua definição de “transexual” feita aqui pode ser retrabalhada, mas seu argumento central é que mulheres trans* são mulheres e que qualquer definição viável de “mulher” deve incluir grupos que teorias universalizantes excluíram pela sua própria construção.

A leitura desde o centro

Este movimento é mais complexo. O argumento de Connell, aqui, é de que teoristas ocidentais (ou setentrionais, como ela se refere a estas pessoas neste texto) investem esforços consideráveis determinando ou se posicionando em meio a dicotomias que nós criamos e que têm pouca, se alguma, relevância para pessoas não ocidentais ou meridionais [nt: o contexto da autora é 'do norte', 'setentrional', 'ocidental', por isso o 'nós']. Isto se origina na perspectiva de pessoas teoristas dedicadas a problemas que surgem somente na literatura de suas próprias pessoas, desta maneira perpetuando conceitos equivocados e paradigmas irrelevantes.

No caso das pessoas trans*, encontramos os paradigmas e antinomias de gênero criados por pessoas cis impostas sobre nós, e assim tornadas assustadoramente relevantes em nossas vidas. Frequentemente somos utilizadas como peças em discussões de ‘natureza versus socialização’, uma das maiores antinomias em que somos consideradas como de alguma relevância. Precisa-se somente analisar o infame experimento John/Joan de John Money [http://en.wikipedia.org/wiki/David_Reimer], em que ele toma um garoto cujo pênis fora removido através de um acidente cirúrgico e recomenda às suas pessoas progenitoras que o socializem como garota. O experimento, apesar de suas enormes falhas metodológicas e, sobretudo, éticas, teria o objetivo de resolver o debate extremamente alardeado entre ‘natureza versus socialização’ – uma antinomia eterna nas ciências sociais e naturais. Seu fracasso trágico se tornou bastante famoso, e foi utilizado por muitas pessoas (incluindo-se pessoas trans*) para provar esta ou aquela teoria.

Para além disso, podemos nos encontrar em teorias sobre como a socialização predomina (ver: ‘Problemas de Gênero’, de Judith Butler) e outras pessoas propondo, seja para nos apoiar ou para se opor a nós, que nós demonstramos (ou que estamos tentando provar) que o sexo é inato. Muitas críticas feministas nos desprezam por esta última linha de pensamento, e dizem que reificamos o binário de gênero ao reivindicarmos sermos objetivamente homens ou mulheres, mas somente em um corpo inapropriado. Já foram extensamente discutidas as razões pelas quais esta é uma ideia problemática [http://quinnae.wordpress.com/2010/10/21/a-cliche-trapped-in-a-metaphor%E2%80%99s-body/], e ela representa bem como teorias criadas por pessoas cis são projetadas de volta sobre nós como uma verdade acerca de nossas existências pelas quais supostamente lutamos.

Se as dicotomias como ‘homem e mulher’ ou ‘natureza e socialização’ são tornadas problemas de existências trans*, é porque nós somos com frequência recrutadas nos debates como ‘Figura A’ em favor de um lado ou de outro, muitas vezes contra nossas vontades. Judith Butler tenta utilizar pessoas trans* para provar suas próprias teorias (com as quais, registre-se, concordo em muitas partes, embora ainda assim reconhecendo sua posição e expropriação tácita), enquanto outras pessoas tentam demonstrar que pessoas trans* provam que um “sexo cerebral” inato. Porém, muitas de nós temos autocompreensões complexas que complicam ou tornam inúteis tais dicotomias, e ao invés disso nos encontramos utilizadas em tentativas vãs de resolvê-las.

Deixe um comentário

Arquivado em Acadêmico, Traduções, Trans*