Por Katherine Cross
Tradução: Viviane V.
[primeira parte da tradução do texto “A Social Symphony: The Four Movements of Transphobia in Theory”, disponível em http://bit.ly/142Wzes]
Somente para dar ares mais, digamos, ‘tropicais’ a esta tradução, inicio com Chico Buarque:
“Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu”
(Chico Buarque - Apesar de você)
Esta tradução é particularmente importante para mim, por ter me permitido compreender as razões pelas quais me foi tão difícil encontrar referências e abordagens críticas sobre questões trans* em alguns meios acadêmicos. Tendo vindo das ciências econômicas, e iniciado meus estudos destas questões a partir da participação em fóruns trans* e da leitura de pessoas autoras trans* (como Julia Serano, por exemplo) – principalmente por uma questão de sobrevivência, neste processo de autoidentificação de gênero –, incomodou-me que parte significativa da produção acadêmica com que tive contato não dialogasse com estas perspectivas.
O texto de Katherine Cross me permitiu articular estes incômodos de maneira crítica, e espero que possa servir a outras pessoas que se preocupem com questões políticas trans*, seja na academia, seja ‘fora’ dela. Esta tradução está dividida em duas partes.
* * *
Analisando o lugar de pessoas trans* [nota da tradução (nt): transgender and transsexual people, no original] na teorização de várias disciplinas, podem-se encontrar diversas linhas comuns que articulam todo este projeto [nt: acadêmico]. As sociedades podem ser, com certa frequência, bastante confusas e, ainda assim, de forma paradoxal, podem ter nelas mecanismos identificáveis de operação que engendram certas forças sociais inexoravelmente adiante. Aonde pretendo chegar com isso? Quais são estas linhas comuns? Bem, com o indispensável apoio de uma renomada teorista social que é uma mulher trans*, acredito ter encontrado quatro.
Pessoas trans* não são o único grupo de pessoas tratadas de formas problemáticas pela teoria social e política; há muito a ser aprendido da análise de como paradigmas teóricos explicitamente excluíram outras pessoas marginalizadas. Em seu livro Southern Theory, a socióloga Raewyn Connell articula uma excelente exegese da teoria social ocidental que traz à tona suas premissas profundamente eurocêntricas, bem como o projeto colonial que a fundamenta. O mundo colonizado, ela diz, era somente uma mina de dados cujos números brutos seriam exportados à ‘metrópole’ (Europa e Estados Unidos) para produção teórica que trabalha na formação de uma visão definitiva da(s) pessoa(s) colonizada(s). Nesse sentido, a relação entre colonizador e colonizada não é diferente quando se considera a esfera acadêmica em oposição às esferas política ou industrial, por exemplo.
As relações com as maneiras através das quais pessoas acadêmicas conceituam e, principalmente, utilizam pessoas trans* ficam muito claras, aqui. Metáforas de colonização também são muito úteis para se discutirem dinâmicas sociais imensamente desiguais dentro de países ocidentais; histórias de apropriação e exploração certamente não se limitam ao ‘mundo em desenvolvimento’ [nt: majority world, no original], e ‘minas de dados’ podem ser encontradas na rua ao lado de onde estou [nt: a autora escreve do 'mundo desenvolvido'] bem como em Gana, Paquistão, ou na Austrália aborígene. O que é mais preocupante sobre tal teorização é que não somente ela se apropria, utiliza mal, e distorce as experiências da pessoa colonizada, mas em outras instâncias elas também são, como um todo, ignoradas (particularmente no tecer de teorias genéricas sobre a sociedade). Connell identificou quatro movimentos da academia colonialista que, segundo ela, caracterizam a maior parte dos intentos de teorização sobre a sociedade: a pretensão de universalidade, a leitura desde o centro, gestos de exclusão, e o grande apagamento. Passarei por cada um destes movimentos, discutindo sua relevância para teorias de gênero e, mais especificamente, para pessoas trans*.
Em seu fundacional artigo ‘O Império Contra-Ataca: um Manifesto Transexual’ [nt: tradução livre de 'The Empire Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto'] (1991), a teórica, mulher trans e ciborgue-feminista Sandy Stone articula resumidamente uma ideia que estrutura tanto este artigo quanto meu pensamento geral sobre as relações de pessoas trans* com instituições médico-jurídicas dominantes e com a academia:
Gostaria de apontar as amplas similaridades que esta justaposição peculiar tem com aspectos de discursos coloniais com os quais podemos ter alguma familiaridade: o fascínio inicial com o exótico, que se estende a pessoas pesquisadoras profissionais; a negação da subjetividade e o cerceamento do acesso ao discurso dominante; seguido por uma espécie de reabilitação. […]
Corpos são telas em que vemos projetados os assentamentos momentâneos que emergem dos embates correntes acerca de crenças e práticas realizados nas comunidades acadêmicas e médicas. Estes embates ocorrem em arenas muito distantes do corpo. Cada um deles é uma tentativa de adquirir um posicionamento altivo de caráter profundamente moral, de trazer uma explicação oficial e final para como as coisas são e, consequentemente, para como elas devem continuar a ser. Em outras palavras, cada um destes embates representa a cultura falando através da voz de uma pessoa. As pessoas que não têm voz nessa teorização são as pessoas trans* [nt: transsexuals, no original]. Da mesma forma que homens [nt: cis] teorizam sobre mulheres desde o início dos tempos, pessoas teóricas de gênero veem pessoas trans* como possuidoras de algo aquém de agência.
Tudo isto se faz manifestar no fascínio que algumas pessoas teóricas têm conosco, fetichizando as exóticas pessoas trans* que elas veem em suas mentes como inerentemente radicais ou conservadoras, negando que as autocompreensões individuais das pessoas trans* são importantes (a não ser que elas se alinhem com uma narrativa cis dominante), e crendo que as ideias articuladas tanto na medicina, na psiquiatria ou na academia patriarcalmente controladas podem de alguma forma nos salvar. Permeando tudo isso como uma camada de suporte, está a ideia de que nós não podemos falar ou agir por conta própria, de que nós nunca poderemos ser pessoas produtoras adequadas de conhecimento sobre nossas próprias vidas.
Isto é realizado das seguintes formas:
A pretensão de universalidade
Certamente, seu significado pode ser facilmente compreendido. Raewyn Connell diz deste tropo:
Em cada um dos textos discutidos até agora, há uma forte e repetida pretensão de relevância universal. Para estas pessoas autoras, e para muitas outras, a ideia mesma de teoria envolve dialogar em termos universais. Presume-se que todas as sociedades sejam conhecíveis, e conhecíveis da mesma forma e desde o mesmo ponto de vista.
Em relação a teorias feministas, isso acontece da seguinte maneira. Tudo se inicia com a tendência a se universalizar gênero como um todo posicionado no binômio macho-fêmea: assim, todas mulheres [nt: cis] são relacionadas entre si, bem como os homens [nt: cis], e cada grupo tem interesses idênticos e corpos idênticos. Da mesma forma que a teorização metropolitana sobre sistemas sociais de maneira mais geral é excludente de tudo que não se encaixa neste paradigma, assim também acontece com este tipo particular de teorização, que é excludente de todas pessoas cujos gêneros não possam ser assim categorizados.
Considere-se a seguinte passagem da filósofa feminista Elizabeth Grosz em ‘Corpos Voláteis’ [nt: tradução livre de 'Volatile Bodies']:
Sempre haverá uma espécie de exterioridade ou estranheza nas experiências e na realidade vividas de cada sexo em relação ao outro. Homens, contrariamente à fantasia do transexual [nt: sic], não podem nunca, mesmo com intervenções cirúrgicas, sentir ou experienciar o que é ser e viver como mulher. No máximo, o transexual [nt: sic] pode viver sua fantasia de feminilidade – uma fantasia que em si mesma é frequentemente frustrada com as transformações toscas [nt: sic] resultantes de intervenções cirúrgicas e químicas. O transexual [nt: sic] pode parecer uma mulher, mas não pode nunca se sentir como ou ser uma mulher.
Temos, assim, uma colocação teórica que pressupõe a universalidade de três conceitos: mulher, homem, e transexual. Os problemas ficam rapidamente explícitos. Em primeiro lugar, este tríptico é um desenho da própria Grosz. Não deve surpreender ninguém que ela seja uma mulher cis. Nesse sentido, “o transexual” se torna uma espécie de terceiro gênero, o que é algo que despreza completamente a realidade vivida e corporificada de [nt: diversas pessoas] homens e mulheres trans*. Considerar homens trans* é particularmente interessante aqui, pois Grosz fala somente de pessoas que parte considerável das pessoas leitoras entenderá como mulheres transexuais. No entanto, ela fala no termo universalizante “o transexual” como se estas pessoas [nt: mulheres] trans* fossem tudo que pudesse estar incluído neste conceito.
Então, evidentemente, ela precisa utilizar uma premissa sobre o caráter existencial da hombridade ou mulheridade [nt: manhood e womanhood, no original]. Há, ela infere, uma poderosa experiência universal inerente à ontologia da mulher. Ser mulher, ela argumenta, significa algo que aquelas pessoas que ela generifica como homens não podem acessar. O problema é que sua definição desta experiência universal ignora a sua própria posição subjetiva – o tipo de mulher que ela é molda o que a mulheridade é para ela, para começar. A sua mulher existencial seria o mesmo tipo de mulher em Nova Iorque, Dubai, ou Jacarta? Em uma Reserva Hopi ou ao sul do Bronx? Em um subúrbio francês ou em Estocolmo? A resposta, naturalmente, é não. O mesmo se aplica a mim. E se isto é verdadeiro, então todo o projeto se desmonta, bem como as bases para se promulgar firmemente que “o transexual” é ou não pode ser x, y ou z.
Para fornecer uma contraposição sobre o assunto, podemos analisar a teórica feminista Linda Nicholson, que teve o seguinte a dizer sobre a premissa do gênero universal:
Quero sugerir que pensemos sobre o significado de mulher da mesma forma que Wittgenstein sugeriu pensarmos sobre o significado de jogo [nt: game, no original], como uma palavra cujo significado não se encontra através da elucidação de alguma característica específica, mas sim através da elaboração de uma complexa rede de características. […] Isso também permite que se considere o uso desta palavra em contextos onde tais características [biológicas] não estão presentes, como por exemplo em países de língua inglesa anteriormente à adoção do conceito de vagina, ou em sociedades contemporâneas de língua inglesa onde se refere àquelas pessoas que não têm vaginas mas ainda se sentem como mulheres, isto é, a transexuais antes de operação médica.
Para que fique bem claro, a sua definição de “transexual” feita aqui pode ser retrabalhada, mas seu argumento central é que mulheres trans* são mulheres e que qualquer definição viável de “mulher” deve incluir grupos que teorias universalizantes excluíram pela sua própria construção.
A leitura desde o centro
Este movimento é mais complexo. O argumento de Connell, aqui, é de que teoristas ocidentais (ou setentrionais, como ela se refere a estas pessoas neste texto) investem esforços consideráveis determinando ou se posicionando em meio a dicotomias que nós criamos e que têm pouca, se alguma, relevância para pessoas não ocidentais ou meridionais [nt: o contexto da autora é 'do norte', 'setentrional', 'ocidental', por isso o 'nós']. Isto se origina na perspectiva de pessoas teoristas dedicadas a problemas que surgem somente na literatura de suas próprias pessoas, desta maneira perpetuando conceitos equivocados e paradigmas irrelevantes.
No caso das pessoas trans*, encontramos os paradigmas e antinomias de gênero criados por pessoas cis impostas sobre nós, e assim tornadas assustadoramente relevantes em nossas vidas. Frequentemente somos utilizadas como peças em discussões de ‘natureza versus socialização’, uma das maiores antinomias em que somos consideradas como de alguma relevância. Precisa-se somente analisar o infame experimento John/Joan de John Money [http://en.wikipedia.org/wiki/David_Reimer], em que ele toma um garoto cujo pênis fora removido através de um acidente cirúrgico e recomenda às suas pessoas progenitoras que o socializem como garota. O experimento, apesar de suas enormes falhas metodológicas e, sobretudo, éticas, teria o objetivo de resolver o debate extremamente alardeado entre ‘natureza versus socialização’ – uma antinomia eterna nas ciências sociais e naturais. Seu fracasso trágico se tornou bastante famoso, e foi utilizado por muitas pessoas (incluindo-se pessoas trans*) para provar esta ou aquela teoria.
Para além disso, podemos nos encontrar em teorias sobre como a socialização predomina (ver: ‘Problemas de Gênero’, de Judith Butler) e outras pessoas propondo, seja para nos apoiar ou para se opor a nós, que nós demonstramos (ou que estamos tentando provar) que o sexo é inato. Muitas críticas feministas nos desprezam por esta última linha de pensamento, e dizem que reificamos o binário de gênero ao reivindicarmos sermos objetivamente homens ou mulheres, mas somente em um corpo inapropriado. Já foram extensamente discutidas as razões pelas quais esta é uma ideia problemática [http://quinnae.wordpress.com/2010/10/21/a-cliche-trapped-in-a-metaphor%E2%80%99s-body/], e ela representa bem como teorias criadas por pessoas cis são projetadas de volta sobre nós como uma verdade acerca de nossas existências pelas quais supostamente lutamos.
Se as dicotomias como ‘homem e mulher’ ou ‘natureza e socialização’ são tornadas problemas de existências trans*, é porque nós somos com frequência recrutadas nos debates como ‘Figura A’ em favor de um lado ou de outro, muitas vezes contra nossas vontades. Judith Butler tenta utilizar pessoas trans* para provar suas próprias teorias (com as quais, registre-se, concordo em muitas partes, embora ainda assim reconhecendo sua posição e expropriação tácita), enquanto outras pessoas tentam demonstrar que pessoas trans* provam que há um “sexo cerebral” inato. Porém, muitas de nós temos autocompreensões complexas que complicam ou tornam inúteis tais dicotomias, e ao invés disso nos encontramos utilizadas em tentativas vãs de resolvê-las.