Arquivo do mês: janeiro 2014

Disputas acerca do conceito de “privilégio” em discussões sobre privilégio cisgênero

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras e True Love.

Por Leda Ferreira do Amaral

Pessoas trans* que buscam engajamento e visibilidade em espaços de militância frequentemente precisam apontar o lugar de discurso de seus interlocutores cisgêneros, numa tentativa de demonstrar como os privilégios cisgêneros destes podem estar interferindo em sua capacidade de sentir empatia pelas pessoas trans*. Não raro, situações como essas terminam em disputas sobre o que “privilégio” envolve e se determinado grupo de pessoas cis têm ou não o que se chama de privilégio cisgênero – disputa essa que frequentemente prossegue para a própria negação da existência de privilégio cisgênero ou da cisgenereidade em si. Um dos espaços de militância onde isso ocorre repetidamente é o Feminismo.

Feminismo, para muitas pessoas, é um movimento que luta pela liberação e emancipação de todas as mulheres, e pessoas trans* buscam espaço e visibilidade dentro deste movimento, principalmente as mulheres trans*, que, mesmo se não fossem um grupo extremamente vulnerável socialmente, correndo os riscos mais altos de sofrerem violência física e sexual e exclusão das escolas e dos ambientes de trabalho, deveriam ter suas pautas levadas em conta por este movimento simplesmente pelo fato de serem mulheres.

A mera ideia de que todas as pessoas cisgêneras – incluindo as mulheres – exercem poder e privilégio sobre pessoas trans ainda encontra muita resistência entre muitas feministas. Uma das estratégias usadas é colocar em debate o próprio conceito de privilégio. Segundo esse pensamento, privilégio implica em beneficiar-se de alguma forma da marginalização ou exploração de outra pessoa. Mulheres cisgêneras não exerceriam privilégio cisgênero, portanto, porque elas não se beneficiariam de forma alguma da marginalização e violência que as pessoas trans* sofrem. O próximo degrau deste argumento é negar a própria cisgenereidade em si, potencialmente abrindo caminho para negar também a transgenereidade. É interessante perceber como a negação do privilégio cisgênero é base fundamental para a transfobia.

Para fundamentar tal pensamento, muitas vezes é feita uma analogia com o racismo: é ponto pacífico entre feministas que mulheres brancas exercem poder e privilégio sobre mulheres negras, devido ao racismo estrutural da sociedade, do qual mulheres brancas se beneficiam, por terem muito mais chances do que as mulheres negras de terem participação no patrimônio econômico que durante séculos foi gerado pelas próprias pessoas negras, sob condições de trabalho escravo desumanas, e por não enfrentarem o preconceito social resultante de séculos de estigmatização das pessoas negras. Porém, tal privilégio não existiria quando falamos das relações sociais com pessoas transgêneras. Por exemplo, o fato de as pessoas trans* encontrarem barreiras estruturais e sistêmicas para alterarem seus documentos e poderem ter direito ao seu nome e ao seu gênero e, por causa disso, serem excluídas do mercado de trabalho não implicaria em privilégio para as mulheres cisgêneras, que não enfrentam os mesmos problemas, pois elas não se “beneficiariam” do fato de as pessoas trans* passarem por essas dificuldades.

Comparando esse exemplo ao do racismo, e analisando o argumento, parece que quem defende isso entende privilégio exclusivamente como exercício de poder econômico, em que se possui alguma vantagem financeira sobre alguém. Naturalmente, classes privilegiadas reservam para si o direito de determinar o que é ou não privilégio. A manutenção do significado de privilégio permite às classes privilegiadas impedirem que se questione o próprio sistema que lhes dá poder, em primeiro lugar.

Questionar o poder de classes privilegiadas – incluindo, aí, pessoas cisgêneras – de decidirem acerca do significado de privilégio é vital. Mas hoje não faremos isso. Ao invés disso, aceitaremos, para os propósitos dessa discussão, a definição de privilégio que feministas cisgêneras escolheram como oficial, para demonstrar que, mesmo sob essa definição, ainda encontramos exemplos de privilégio cisgênero.

A marginalização das pessoas trans* diminui o acesso dessas pessoas às escolas, faculdades e universidades e ao mercado de trabalho – e consequentemente diminui a concorrência que as pessoas cisgêneras enfrentam. Isso é uma vantagem econômica – um privilégio, que mulheres cis também exercem. Cabe ressaltar que não se deseja, com essa constatação, culpabilizar as mulheres cisgêneras pela marginalização das pessoas trans*. Os meios de produção são, em sua maioria, controlados por homens cisgêneros, que decidem quem contratam ou não, e que certamente são responsáveis pela exclusão de pessoas trans*. Porém, mesmo não sendo responsáveis por isso, mulheres cisgêneras ainda assim se beneficiam disso.

O mesmo vale para abrigos para mulheres vítimas de violência e estupro. Mulheres trans* são desproporcionalmente mais afetadas por esse tipo de violência, e teoricamente haveria uma ocupação grande desses espaços por elas, diminuindo as chances de mulheres cisgêneras que sofressem a mesma violência de encontrarem lugar nestes espaços. A atitude de banir mulheres trans* desses espaços sem levar em conta os riscos sofridos por elas – atitude essa apoiada por muitas feministas – resulta em maior chance de mulheres cisgêneras encontrarem lugar nesses espaços se precisarem.

Quanto ao próprio Feminismo em si, impedir o acesso de mulheres trans* aos espaços feministas resulta em mais tempo, energia, dinheiro, esforço e atenção dedicados às pautas específicas das mulheres cisgêneras. Aceitar mulheres trans* nestes espaços significa, para muitas feministas, ver todos esses recursos sendo dedicados em menor quantidade às pautas delas, para serem dedicados às pautas específicas de toda uma classe de mulheres. Isso também pode ser entendido como vantagem competitiva e privilégio.

Questionar a existência de privilégio cisgênero é silenciar as denúncias de opressões vividas por pessoas trans* e se isentar de responsabilidade. É impedir que o lugar de discurso das pessoas cisgêneras seja apontado. É negar que a sociedade e a cultura são cis-supremacistas. É desqualificar a existência de cissexismo. Cissexismo é o fundamento teórico para a transfobia. Não reconhecer a existência de privilégio cisgênero está na base da transfobia.

Que nesta Semana da Visibilidade Trans*, e em todas as demais semanas do ano, se reconheça a existência da transfobia, e que privilégio cisgênero está na base dela. Que lutemos contra a transfobia com coragem.

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Que visibilidade queremos? Qual a visibilidade dos homens trans (e outras pessoas dentro da trans masculinidade)?

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras e True Love.

Hoje, Jamal conta sua experiência enquanto pessoa trans* em um breve relato.

Por Jamal Panda

De alguma forma eu consegui registrar alguns passos importantes da minha transição que se deu no meu ano de 2013, ano que de certa forma eu resignifiquei muitas questões da minha vida e organizei de uma forma diferente a percepção do que eu sou, como as pessoas me vem e na minha busca por ter a vida mais significativa pra mim mesmo. Me disse que era queer, multigênero, e mais um monte de coisa.

Eu não paro de fluir, entre sensações de gênero, me sentir de uma forma ou de outra, de sentir afinidade com questões femininas (ou ditas femininas). Acho que as coisas dentro de mim nunca vai parar de se mexer e dançar.
Mas estão organizadas de uma forma diferente, eu sou homem trans. Todas minhas inconstâncias, sentimentos diversos estão dentro desde fato. Sou homem trans.

A visibilidade que eu quero é além das pessoas saberem que transexualidade existe, que homens trans existem e que sexualidade é diferente de gênero. A visibilidade que eu quero e preciso é pela despatologização das identidades trans, que as pessoas possam ter acesso a saúde sem constrangimentos, que tenham direito ao seu nome.

O acesso a saúde é muito reduzido, eu e a maioria das pessoas trans se hormonizam por conta. Sabem que vão encontrar mais transfobia no atendimento, vão reconhecer a transexualidade a pessoa se ela se enquadrar ou fingir se enquadrar perfeitamente num discurso patologizante.

Por exemplo, se a transexualidade é vista como doença então não se pode ter outra doença. Ou então te acusarem de não ~~sofrer o suficiente~~ com um desconforto presente com relação ao próprio corpo. Ser vistos o tempo todo como serem que merecem pena, que estão doentes, que nunca serão de verdade. Isso pra me parece muito estranho, já que minha busca sempre foi de ter a vida que fosse mais significativa pra mim e depois ter minha existência invalidada constantemente.

O CIStema produz diversos mecanismos que deixam nossas vidas invivivéis.

E todo dia a gente vai lutando, pelo direito de ser quem se é, pela responsabilidade de tornar a própria vida mais confortável e seguir lutando com outras pessoas pra que pelo menos entre a gente e nos espaços próximos a gente consiga se sentir bem, acolhido e respeitado.

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O que vejo nas realidades e lutas trans*

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras e True Love.

Por Viviane V.

Já vi muito ódio, já vi piadas e nojos, tiros, sangue. Desempregos, subempregos, pistas. Já vi pessoas cis interpretando pessoas trans*, e roteiros de estereótipos, e erros de pronomes, e risos. Risos. Há risos até quando morremos. Não leiam os comentários. Não leiam. Não sejam. Não vivam.

Colonizam nossas mentes a ponto de nos negar autoidentificação enquanto pessoas humanas. Até minha morte, sei que terei o espectro do transtorno de identidade de gênero às costas. Mesmo que cuspa na cara de psiquiatras que fazem graça de nossas existências (cito nomes com fundamentação testemunhal e epistemológica disto, se necessário), sei que para algumas pessoas acadêmicas minha produção intelectual – ele olha com nojinho e ajeita sua gravata borboleta – possa ser caracterizada como uma “reprodução de estereótipos patologizantes” (idem). E os psiquiatras estarão rindo. E outras pessoas acadêmicas (algumas até bem próximas) silenciarão.

Nos colonizam e nos transtornam sem que haja nenhuma fundamentação decente para isso. É esse o ponto, e é bastante simples: pouco me importam os meandros e os nomes detrás destas peças colonialistas. Elas precisam ser derrubadas, implodidas. Ficar discutindo se ‘transtorno’ ou se ‘problema’ ou se ‘ilegalidade’ é se perguntar sobre diferentes contextos de colonização, e não sobre uma nova possibilidade descolonial[1].

Minha retórica se esquenta. O cistema é quente. Tira essa bermuda que eu quero você sério. Sério? Não. A intenção, a partir deste breve texto, é de problematizar determinadas normatividades relativas a identidades de gênero, a partir de inspirações anticoloniais intersecionais. Pega essa: autoetnografia travesti balançando seu cistema.

Enfim, eu vejo barbárie neste mundo que nem se sustenta mais. O pau-brasil derrubado lá atrás entra no saldo do aquecimento global? Entra pras dívidas anticoloniais? E a travesti e a pessoa indígena que morrem degoladas, entram onde? Com que nome? Com que hipóteses para o crime? Morremos por todas partes, a cada momento. A cada medicamento usado por nós que não tem informações sobre sua interação específica com nossos corpos. A cada vez que “erram” nossos pronomes e nomes autodeterminados. Morremos em solidões de existências negadas, em porões marginais de gênero, nos desempregos da vida. Morremos? Não sei nem que nome estará nas memórias de quem amo.

Vi, vejo e verei muitas dores nas realidades trans*, estou infelizmente segura disto.

Mas, é preciso dizer. É preciso dizer com toda a tranquilidade inssureta que, se vi, vejo e verei tragédias colonialistas de gênero, minha visão não se deprime com isto. Ela se entristece, não há dúvidas, porém se excita na percepção de que há resistências por todas as partes. Em todas as partes. E, se os inimigos também estão em todas partes, é nas forças de cada sorriso de resistência trans* que eu vejo nossas potências descoloniais.

Não, eles não haverão de evitar que as pessoas possam autodeterminar seus gêneros.

Amanhã vai ser outro dia, e só vai ser outro dia porque há resistências acontecendo. Elas nem sempre são gloriosas, e frequentemente é o oposto disto: resistências precárias, fracassadas, difíceis. Ela desatinou, e vê toda a gente sofrendo normalmente. Toda a gente. E é preciso se mexer, bater cabelo. Estamos nos organizando, estamos reagindo, mesmo quando tudo que possamos fazer seja gritar aos ventos por cidadania. Por humanidade. Os recursos são muitos para brutalizar, e escassos para dignificar. Apesar de todas minhas dificuldades e limitações, venho tentando trazer meus precários recursos para fortalecer estas lutas trans*, onde quer que elas estejam. Porque acredito nelas, porque acredito nas suas potências para a construção de um mundo mais justo para tudo que existe nele. Mas tem horas… que é difícil.

Ser trans* não é fácil, afinal: ouço variantes desta frase-conselho de cada sobrevivente trans* que conheço. Sobrevivente, colonizada, pero submissa jamás. Nas pistas, com silicones, nas clínicas em que nos violentam, hormonizadas, colocadas e bonitas, resistimos apesar de vocês.

Sim, estamos todas pessoas implicadas nos cissexismos do mundo.

É menino ou menina?


[1] E não é que tais discussões sejam desnecessárias: elas o são, desde que orientadas por um horizonte anticolonial. É certo que, a partir deste horizonte, ainda é importante saber de meandros e históricos em detalhe. Mas estes são estudos que devem partir deste propósito descolonial, de forma a não fazerem parte de um jogo colonial de discussões infrutíferas que não gerem estratégias de resistência e luta anticolonial melhores – afinal, os recursos investidos nestes estudos poderiam estar sendo empregados em outras propostas descoloniais trans*.

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Medo, violência e diferenças

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras e True Love.

Por Leila Dumaresq

Não me espanto tanto com a ignorância acerca da transgeneridade. Também tive dificuldade para entender do que se tratava. E não é difícil entender porque faltam informações: É porque sobram mentiras e difamações. Mas todos sabemos que estamos em uma sociedade violenta. De tal modo que não consigo ser condescendente com a desinformação: Ela muito raramente é inofensiva, todo o tempo é nociva e é letal com uma frequência assustadora.

Também não é espantoso que tantos queiram sentir-se distantes da violência contra transgêneros. Afinal, medo é uma causa bastante plausível para alguém esconder-se em silêncio. Outros também têm esperança que a estrutura da sociedade irá protegê-las porque comportam-se “normalmente”. Esquecem-se, apavoradas, eu acho (porque este esquecimento é bastante irracional) que essa confortável “normalidade” é definida pelos agressores e não por quem está os evitando.

Esta fuga para a “normalidade” é ilusória. Porque quando uma pessoa transgênera é agredida, algo acontece com todas as pessoas da comunidade. Principalmente com as ditas “normais”. Tentarei esclarecer isso. Principalmente para você, que não é uma pessoa transgênera:

A justificativa mais comum para todo o tipo de violência contra pessoas transgêneras é que o comportamento transgênero ofende, agride e ameaça o modo de vida das pessoas “normais” como você. Num primeiro nível esta afirmação já é errada, pois não vemos por aí pessoas trans obrigando outras a comportarem-se como não desejam. Pelo contrário, no que toca o gênero, as pessoas trans estão cuidando de suas próprias vidas. Então é interessante perguntar-se por que alguém justificaria sua violência assim?

Quando expulsam transgêneros de lojas e restaurantes; Negam vagas em empregos; Também quando espancam e assassinam nos lugares escuros onde empurraram transgêneros para longe de você; Dizem, na justificativa do repúdio aos corpos trans, que pessoas como você não devem conviver com este outro tipo de pessoa. E atribuem isso à “normalidade”. Isso é uma espécie de calúnia coletiva. Parece estranho, mas é exatamente o que fazem os agressores.

E para que esse ódio não pudesse ser atribuído a todos os cidadãos do nosso país que o respeito à dignidade de cada pessoa está na constituição; Por isso ele é garantido a todos sem distinção. Essa cláusula tão básica criminaliza a calúnia coletiva. Diz que é crime tentar tornar as pessoas cúmplices de barbárie por apelo à cidadania ou à uma definição distorcida de ser humano.

Quando indivíduos conseguem desumanizar alguém ou um grupo, você está deixando que as pessoas atribuam à sua cidadania e à sua humanidade a permissão para agredir um outro diferente. Deveríamos ser todos muito preocupados a respeito dos motivos para se agredir dentro da nossa sociedade. Deveríamos cobrar mais as autoridades destas justificativas.

Uma coisa é falar bobagens, outra é justificar violência. E se a justifica passa sem resistência, ela recebe um aval da sociedade. Isso mancha sim nossa cidadania. Os agressores não estão contando somente com a “opinião” deles. Eles sabem muito bem que mera opinião não é motivo para declarar-se inocente. Eles justificam seus atos apelando para você, dizendo que qualquer um deveria fazer o mesmo. Fazem isso toda vez que esperam escapar da punição. Eles acreditam e afirmam que a sociedade é violenta como eles. A crença pode ser delírio deles, mas quando eles se expressam livremente, ofendendo a dignidade de pessoas, tornam toda a sociedade sua cúmplice.

Não podemos abrir mão da dignidade de ninguém, sob pena de nos desumanizarmos. E obrigamos o estado a reconhecer dignidade humana sem distinção para que ele use o poder que lhe demos de modo regulador. Quando o estado distribui direitos ao invés de garanti-los, o poder já tornou-se arbitrário. Então, não são mais só as pessoas excluídas e vulneráveis que podem ser agredidas. A qualquer momento, alguém pode decidir que você, por qualquer motivo, não é “normal” o suficiente. Pois o discurso de ódio já conquistou esse poder. E nessa sociedade, quem tem o poder são os violentos. Quem está em silêncio nessa situação de ódio contra minorias, vive a miséria de ser uma vítima em potencial, independente de quão “normal” seja.

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Descolonizando os entremeios de Travestis e Transexuais

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras e True Love.

Por Bia Pagliarini Bagagli

Sinto a necessidade de abordar uma velha questão, que mesmo sendo velha, tenho certeza que continuará a ser posta na ordem do dia através de perguntas e controvérsias acerca das diferenças (opacas, já vou adiantando) entre “travestis” e “transexuais”. Acho interessante falarmos sobre isso pensando o dia da visibilidade trans*, já que muitas vezes (senão todas), são a partir destas duas categorias que pessoas trans* são designadas e, portanto, trazidas para a ordem da representação e do cognoscível (e também para uma ordem do político, como espero mostrar). Quando se pergunta acerca do “estatuto” de uma pessoa trans* - se ela é “travesti” ou “transexual” – não está ocorrendo apenas uma mera pergunta se ela “é travesti ou transexual”. Este tipo de pergunta está atrelada a uma memória discursiva sobre os sentidos de “travesti” e “transexual”, que é rememorada no momento da enunciação, tencionando constantemente os sentidos sobre essas duas palavras na enunciação.

Autores como Bruno César Barbosa e Jorge Leite Júnior¹, mostram como essas categorias médicas referentes à transgeneridade mudaram com o passar do tempo. O que parece ocorrer é uma variável flutuação dos termos “travesti” e “travestismo” (sic); “transexual” e “transexualismo” (sic); “transtorno de identidade de gênero” e “disforia de gênero” (dentre outras variações). Ora são termos mais ou menos intercambiáveis, ora não; ora significam mais ou menos a mesma coisa e ora não². Fica bastante evidente que se trata, antes de uma questão meramente médica ou psíquica, afeita aos campos da psiquiatria e psicologia, uma questão linguística, por estarem expostas questões da significação de palavras – e seus equívocos – permeados e indissociáveis de seus contextos históricos. Percebem-se aí como certas palavras tem uma “importância” pela qual o discurso médico insiste, através de inúmeros pequenos e contínuos deslocamentos, uma apreensão definitiva, legitimada e verdadeira do real.

Os esforços presentes nas diversas categorizações e subdivisões das identidades transgêneras, tanto inicialmente feitas por Harry Benjamin nos anos 50 e 60 quanto pelos atuais manuais diagnósticos como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e CID (Classificação Internacional de Doenças), operam com o intuito de produzir um norte capaz de conter, pelas palavras e nosologias, a diversidade tida como patológica do gênero. Essas categorizações, com um suposto intuito inicial de descrever objetivamente um “fenômeno”, acabam por prescrever e idealizar, dentro da própria categoria abjeta da transgeneridade, corpos e identidades mais ou menos inteligíveis, utilizando para isso as categorias “travesti” e “transexual” e outros conceitos analíticos como “falso” ou “pseudo”, “diagnósticos diferencias” e “intensidades” (referentes aos tidos “desvios” de gênero).

Afinal de contas, o que está em jogo é o preciso “diagnóstico” capaz não apenas de desvelar uma suposta verdade essencial e anterior sobre corpos, identidades e práticas, mas também capaz de imputar um poder colonizador de natureza biomédica: o “tratamento” tido como correto. Médicos e profissionais psi, ao conceber os sujeitos trans* como completamente incapazes de decidir sobre si mesmos, são tidos como corpos passivos que o conhecimento médico deve preencher. Para isso, o poder médico concebe práticas que julgam proteger os sujeitos trans* de si mesmos. É então, por exemplo, que o mito³ da correlação mágica e completamente linear entre cirurgias de redesignação sexual e suicídios é trazido à tona para alertar sobre os “perigos” de uma maior autonomia para as pessoas trans*. As pessoas trans* são destituídas de autonomia sobre seus corpos, narrativas e identidades através destas formas perversas de controle cispatriarcal. E estas formas de dominação irão articular a dicotomia “travesti-transexual” em seu favor.

Para isso, vão operar discursos que procuram estabelecer uma coerência inequívoca entre as palavras, produzindo então uma verdade essencializada sobre esses dois termos. Essa construção de coerência, que visa esconder, por um processo de naturalização apoiada pelas ciências médicas e psi, o caráter contraditório dos termos, vai conseguir operar um controle biopolítico dos corpos e identidades trans*, na medida em que estes termos são acionados e articulados pelos saberes e poderes da medicina e do jurídico enquanto “mediadores” de direitos civis. Para citar dois exemplos clássicos: as resoluções sobre o “diagnóstico” (que permitirá uma pessoa trans* acessar cuidados básicos de saúde) e dos processos judiciários de retificação de documentos (que são condicionados por laudos psi/médicos/sociais pautados, em sua maioria, na patologização da transexualidade). Este controle está guiado por um processo de legitimação4 da identidade transexual em detrimento da travesti. Isso ocorre através de uma burocratização do acesso a atendimento médico e jurídico, pela estrita necessidade da apresentação do laudo de transexualidade. Percebam que quando falamos sobre o tal “laudo”, enquanto um dispositivo normativo requerido para o acesso à cidadania, não é qualquer laudo, na medida em que um hipotético laudo atestando travestilidade jamais teria o mesmo valor que aquele atestando a transexualidade. Nem ao menos concebemos a ideia de um laudo de travestilidade, pois é a transexualidade a categoria almejada e regulada. Isso se torna especialmente cruel, na medida em que reconhecemos a existência de pessoas travestis que requerem certas demandas que são as mesmas das pessoas transexuais, e que são ameaçadas por este dispositivo de terror que é o laudo médico/psi/social. Em última instância, a exigência do laudo de transexualidade como mediador de direitos humanos é uma forma de excluir pessoas trans*, em especial, travestis, negrxs, deficientes e pobres.

Podemos, a partir do momento que compreendemos as relações de poder que articulam essa dicotomia identitária, fomentar novas formas de se pensar e entender as identidades travesti e transexual: extrapolando o “bom-senso” médico-psiquiátrico e jurídico; reafirmando a humanidade das pessoas trans*, em especial das travestis; exigindo a desburocratização do acesso a direitos civis para a população trans* e o respeito à auto identificação; apontando para a própria relação de poder (que procura em si mesma se mostrar inexistente para garantir sua dominação) que está sendo articulada pelos discursos médicos e jurídicos e denunciar os cinismos políticos no que se referem políticas públicas acerca da transgeneridade; problematizar, questionar e borrar os limites entre as duas categorias, ao apontar para os efeitos de pré-construído (o efeito que produz uma transparência e a necessidade de um já-dito para fazer sentido) delas, elaborar, enfim, formas emancipatórias, descolonizadas, empoderadoras e não prescritivas de “ser” travesti ou transexual e negar os entendimentos cisgêneros e patriarcais sobre nossas identidades trans*/femininas.

Isso significa que não estamos discutindo sobre se travestis fazem a cirurgia de redesignação sexual ou não ou outra coisa parecida (como frequentemente ocorrem em discussões homéricas e desnecessárias), mas sim entender que não existe forma correta e definitiva de ser travesti e transexual. Quero, portanto, acirrar e problematizar esses termos a ponto de extrapolar uma nova perspectiva que pode soar absurda que se refere em última instância para a impossibilidade de uma definição unívoca para tais palavras e que, portanto, “existem” e ao mesmo tempo “não existem” as “diferenças” entre travestis e transexuais.

Vamos entender como se constrói a subalternidade5 da identidade travesti em relação à transexual e não naturalizar esta relação. Trata-se de colocar estas palavras de volta ao lugar em que pertencem ao compreendê-las na história e, portanto, enquanto materialidades contraditórias do discurso. Desta forma, se tornam passíveis de serem contestadas as articulações ideológicas destas palavras que corroboram cissexismo. Por fim, cabe desvelar o absurdo e perversidade que é controlar e oprimir pessoas trans* por meio de suas próprias categorias identitárias (que são também, em última instância, palavras). O empoderamento se dará também através das palavras e acredito que as palavras “travesti” e “transexual” trazem à cena um palco privilegiado e necessário para práticas de resistências transfeministas.

Notas

1. Ver Nossos corpos também mudam: sexo, gênero e a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico, de Jorge Leite Júnior e Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e transexual, de Bruno Cesar Barbosa.

2. Relevante igualmente apontar para, ao mesmo tempo em que um discurso médico de língua inglesa influenciou o discurso médico brasileiro (e consequentemente, influenciando terminologias), produzindo, portanto, algumas correlações de sentidos entre termos traduzidos, é de suma importância notar as incompatibilidades de sentidos produzidas entre as línguas, devido a não possibilidade de intercambialidade transparente entre um termo de uma língua e outro. Posto isto, deve-se levar em consideração não apenas equívocos entre línguas, mas também dentro de uma mesma língua e as relações de sentidos que daí decorre.

3. Sobre esse mito (dentre outros) ser articulado para a permanência do diagnóstico de transexualidade, ver LUTA GLOBALIZADA PELO FIM DO DIAGNÓSTICO DE GÊNERO?, de Berenice Bento.

4. Legitimação precária, uma vez que a categoria transexual está condicionada a uma noção patológica e nosológica, destituindo, portanto, qualquer agenciamento e auto identificação por parte da pessoa trans*. Essa legitimação estará condicionada a um dispositivo normativo, na qual pessoas que apresentem características indesejadas ou ininteligíveis quanto ao gênero (ou outros vetores), vão ser facilmente identificadas como travestis e então marginalizadas.

5. Subalternidade esta que só pode ser entendida através de uma perspectiva intersecional, na qual vetores de classe, raça e (performances de) gênero, dentre outras, são consideradas. No que se refere à construção da subalternidade associada à travestilidade, recomendo a leitura dos autores supracitados.

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