Falar sobre cisgeneridade ou que significa o termo cisgênero é falar sobre diversas lacunas que envolvem o conceito de gênero/sexo. É falar sobre abjeções, normatividades, discursos de resistência, equívocos, alteridades, lugares de falas e também sobre questões linguísticas que a dicotomia cis/trans* envolve ou propõe. Neste texto, pretendo abordar o termo cisgênero principalmente em sua faceta analítica/política (muito embora sua faceta subjetiva muitas vezes se mesclar com ela).
Acho que posso começar a falar sobre o que é cisgênero apontando um fato curioso: de longe, nas estatísticas deste blog, os termos de busca mais utilizados se relacionam com a partícula cis. “O que é cis?”; “O que significa cisgênero?”; “O que é cissexismo?”; etc. estão mais ao topo do que termos envolvendo a partícula trans, como “transgênero”; “transexual”; “transfobia”; etc. O que isso significa?
Digo que é um fato curioso por, a princípio, um blog destinado a tratar das questões das pessoas transgêneras, de nome TRANSfeminismo, ser mais conhecido e procurado por termos que envolvem a cisgeneridade. Seguindo uma lógica mais imediata, esperaríamos que quem procurasse um blog destinado ao transfeminismo, procurasse acerca das temáticas transgêneras em si mesmas. Mas não é exatamente isso o que acontece, já que nunca é possível pensar a transgeneridade em si mesma; sempre, ao tocar em qualquer coisa que remeta a um “trans*” estaremos remetendo a alguma coisa “cis”. Isso é justamente o que o transfeminismo traz de “novo”. Mas então por que exatamente o uso de cisgênero é tão importante?
Julia Serano neste texto traça um paralelo entre o uso de cisgênero com o de heterossexual e suas consequências políticas, já que se tornou possível não apenas nomear o “normal”, mas também o próprio sistema que gera as “anormalidades”, e com isso, pensar formas de resistência a esse sistema. Respectivamente, o vetor que envolve a orientação sexual e identidade de gênero são o heterosexismo/homofobia e cissexismo/transfobia. Percebam como formas de resistência a essas normatividades se relacionam com o reconhecimento do “Outro”, a alteridade, no que toca diretamente à língua. É através de palavras novas surgidas pelas vozes de pessoas marginalizadas através destes rótulos (homossexuais/transgêneros) que se desmascaram essas relações de poder, ao colocar o “normal” e o “natural” em uma nova relação com o “anormal”, uma relação agora simétrica através de novos rótulos (heterossexuais/cisgêneros).
São estes significantes que tornam possível o reconhecimento do Outro como uma variável tão legítima quanto à norma, que passa agora a ser designada com um rótulo, suprindo uma lacuna que por vezes é/era preenchida com termos naturalizantes. Quando alguém prefere se designar enquanto pessoa “biológica” ou “natural” para se dizer não-trans* (ou no passado, como não-homo) está se tentando preencher essa lacuna por meio de uma identificação delirante. Esta identificação delirante tenta continuar remetendo o Outro (as identidades trans* atualmente, e no passado, xs desviantes da norma heterossexual) ao seu lugar de abjeção.
Neste sentido, apontei neste texto como a luta referente à identidade de gênero está aquém da luta referente à orientação sexual meramente através da constatação na assimetria do uso dos termos cisgênero e heterossexual. Quero apontar como essa inferiorização da luta trans* impacta em nossas vidas e está diretamente relacionada com a (ausência) do reconhecimento e uso do termo cisgênero. Assim como muito provavelmente na época em que se começou a circular o termo heterossexual em que pessoas heterossexuais certamente (puderam) achar essa classificação pouco importante, inútil ou por vezes ofensiva, hoje vemos isso se repetindo, só que agora com o uso do termo cisgênero e seus derivados. O termo heterossexual já se encontra consolidado no léxico da língua, tanto é que já se encontra dicionarizado; já cisgênero (ainda) não.
Hoje em dia soaria absurdo alguém se contra-identificar como “biológico” para se dizer não-hétero e arrisco a dizer que é por isso que a homossexualidade não se encontra mais nos manuais de doenças como uma doença, ao contrário das identidades trans*. Digo também que a possibilidade de uma pessoa cis não se identificar enquanto cis é em si um próprio privilégio cisgênero.
Tentar pensar a transgeneridade em si mesma (recalcando ou não usando o termo cisgênero) é o que fazem, por exemplo, xs psiquiatras/profissionais psi , que essencializam e patologizam as identidades transgêneras, e algumas vertentes do feminismo dito radical. Isso decorre devido a uma falta de reconhecimento do “Outro”, que são as próprias pessoas trans*, produzindo anormalidades e marginalizações que servem a interesses ideologicamente marcados: aos primeiros interessa o controle biopolítico dos corpos e identidades trans e aos segundos, a supremacia das questões referentes às mulheres cisgêneras (e por vezes, de mulheres brancas, ocidentais, heterossexuais e de classe média) pautadas no feminismo.
As pessoas cisgêneras não sentiram e não sentem necessidade de se designarem enquanto cis. São as pessoas trans* que estão apontando e apontaram esta necessidade, e possibilitando, por exemplo, não apenas pensar formas emancipatórias e descolonizadas de se entender a transgeneridade, mas também como meio de se criticar as formas como foram representados os sujeitos “homem” e “mulher” na antropologia, nos estudos de gênero/feminismo e em qualquer outra materialidade discursiva.
Isso significa dizer que é possível fazer uma crítica transfeminista a qualquer estudo/teoria – ou melhor dizendo, a praticamente todos os estudos/teorias já produzidos, no sentido que a categoria cisgênera só começou a ser utilizada recentemente e em pouquíssimos e restritos espaços não legitimados enquanto produtores e legitimadores de conhecimentos e verdades – que envolva gênero/sexo/sexualidade em que não se encontra cisgênero enquanto categoria analítica. Não se trata de jogar fora tudo o que o feminismo, a psicanálise, marxismo, etc. produziram sobre gênero, mas apontar suas lacunas ou colonizações referentes à questão transgênera. Igualmente proporcionar contribuições a todas as áreas de saber e ativismo político (em especial as afeitas aos estudos de gênero e ao feminismo), ao incluir um novo vetor intra-gênero que se referem às questões e existências de pessoas transgêneras, que passarão a integrar as análises intersecionais que levem em conta a classe, raça, gênero, etc.
Trata-se sim de apontar certas opacidades da língua que o reconhecimento da cisgeneridade passa a permitir. Por exemplo, quando se usa termos como “mulher” ou “homem” para referenciar sujeitos no mundo como evidência de sentido de um sujeito universal, que é o cisgênero, passamos o questionar a naturalidade desta relação. Neste sentido vale dizer que a língua faz um determinado recorte do real e o termo cisgênero permite um recorte diferente deste real, na medida em que desestabiliza relações de sentido já consolidados das categorias “homem” e “mulher”, proporcionando a inclusão das identidades trans* como hipônimos nestas categorias.
Por fim, quero reforçar a ideia de que não existe mais volta. Não existe mais volta a um passado em que seria possível pensar as identidades trans* como anormalidades distantes e isso passar batido. Nós estamos aqui pelo menos, resistindo. Não existe mais volta quanto ao uso político da categoria cisgênero, assim como aconteceu com a categoria heterossexual. Quero frisar também que qualquer tentativa de rechaço a esse termo trata-se da reprodução da própria supremacia cisgênera e, portanto, um ataque transfóbico. E a própria possibilidade deste rechaço, um privilégio cisgênero, pois quando se rechaça o uso do termo cisgênero, são as vozes subalternizadas que são desqualificadas. São as vozes das pessoas trans* que buscam se libertarem destas formas estigmatizadoras e colonizatórias de entenderem suas existências.