Arquivo do mês: março 2014

O que é cisgênero?

Falar sobre cisgeneridade ou que significa o termo cisgênero é falar sobre diversas lacunas que envolvem o conceito de gênero/sexo. É falar sobre abjeções, normatividades, discursos de resistência, equívocos, alteridades, lugares de falas e também sobre questões linguísticas que a dicotomia cis/trans* envolve ou propõe. Neste texto, pretendo abordar o termo cisgênero principalmente em sua faceta analítica/política (muito embora sua faceta subjetiva muitas vezes se mesclar com ela).

Acho que posso começar a falar sobre o que é cisgênero apontando um fato curioso: de longe, nas estatísticas deste blog, os termos de busca mais utilizados se relacionam com a partícula cis. “O que é cis?”; “O que significa cisgênero?”; “O que é cissexismo?”; etc. estão mais ao topo do que termos envolvendo a partícula trans, como “transgênero”; “transexual”; “transfobia”; etc. O que isso significa?

Digo que é um fato curioso por, a princípio, um blog destinado a tratar das questões das pessoas transgêneras, de nome TRANSfeminismo, ser mais conhecido e procurado por termos que envolvem a cisgeneridade. Seguindo uma lógica mais imediata, esperaríamos que quem procurasse um blog destinado ao transfeminismo, procurasse acerca das temáticas transgêneras em si mesmas. Mas não é exatamente isso o que acontece, já que nunca é possível pensar a transgeneridade em si mesma; sempre, ao tocar em qualquer coisa que remeta a um “trans*” estaremos remetendo a alguma coisa “cis”. Isso é justamente o que o transfeminismo traz de “novo”. Mas então por que exatamente o uso de cisgênero é tão importante?

Julia Serano neste texto traça um paralelo entre o uso de cisgênero com o de heterossexual e suas consequências políticas, já que se tornou possível não apenas nomear o “normal”, mas também o próprio sistema que gera as “anormalidades”, e com isso, pensar formas de resistência a esse sistema. Respectivamente, o vetor que envolve a orientação sexual e identidade de gênero são o heterosexismo/homofobia e cissexismo/transfobia. Percebam como formas de resistência a essas normatividades se relacionam com o reconhecimento do “Outro”, a alteridade, no que toca diretamente à língua. É através de palavras novas surgidas pelas vozes de pessoas marginalizadas através destes rótulos (homossexuais/transgêneros) que se desmascaram essas relações de poder, ao colocar o “normal” e o “natural” em uma nova relação com o “anormal”, uma relação agora simétrica através de novos rótulos (heterossexuais/cisgêneros).

São estes significantes que tornam possível o reconhecimento do Outro como uma variável tão legítima quanto à norma, que passa agora a ser designada com um rótulo, suprindo uma lacuna que por vezes é/era preenchida com termos naturalizantes. Quando alguém prefere se designar enquanto pessoa “biológica” ou “natural” para se dizer não-trans* (ou no passado, como não-homo) está se tentando preencher essa lacuna por meio de uma identificação delirante. Esta identificação delirante tenta continuar remetendo o Outro (as identidades trans* atualmente, e no passado, xs desviantes da norma heterossexual) ao seu lugar de abjeção.

Neste sentido, apontei neste texto como a luta referente à identidade de gênero está aquém da luta referente à orientação sexual meramente através da constatação na assimetria do uso dos termos cisgênero e heterossexual. Quero apontar como essa inferiorização da luta trans* impacta em nossas vidas e está diretamente relacionada com a (ausência) do reconhecimento e uso do termo cisgênero. Assim como muito provavelmente na época em que se começou a circular o termo heterossexual em que pessoas heterossexuais certamente (puderam) achar essa classificação pouco importante, inútil ou por vezes ofensiva, hoje vemos isso se repetindo, só que agora com o uso do termo cisgênero e seus derivados. O termo heterossexual já se encontra consolidado no léxico da língua, tanto é que já se encontra dicionarizado; já cisgênero (ainda) não.

Hoje em dia soaria absurdo alguém se contra-identificar como “biológico” para se dizer não-hétero e arrisco a dizer que é por isso que a homossexualidade não se encontra mais nos manuais de doenças como uma doença, ao contrário das identidades trans*. Digo também que a possibilidade de uma pessoa cis não se identificar enquanto cis é em si um próprio privilégio cisgênero.

Tentar pensar a transgeneridade em si mesma (recalcando ou não usando o termo cisgênero) é o que fazem, por exemplo, xs psiquiatras/profissionais psi , que essencializam e patologizam as identidades transgêneras, e algumas vertentes do feminismo dito radical. Isso decorre devido a uma falta de reconhecimento do “Outro”, que são as próprias pessoas trans*, produzindo anormalidades e marginalizações que servem a interesses ideologicamente marcados: aos primeiros interessa o controle biopolítico dos corpos e identidades trans e aos segundos, a supremacia das questões referentes às mulheres cisgêneras (e por vezes, de mulheres brancas, ocidentais, heterossexuais e de classe média) pautadas no feminismo.

As pessoas cisgêneras não sentiram e não sentem necessidade de se designarem enquanto cis. São as pessoas trans* que estão apontando e apontaram esta necessidade, e possibilitando, por exemplo, não apenas pensar formas emancipatórias e descolonizadas de se entender a transgeneridade, mas também como meio de se criticar as formas como foram representados os sujeitos “homem” e “mulher” na antropologia, nos estudos de gênero/feminismo e em qualquer outra materialidade discursiva.

Isso significa dizer que é possível fazer uma crítica transfeminista a qualquer estudo/teoria – ou melhor dizendo, a praticamente todos os estudos/teorias já produzidos, no sentido que a categoria cisgênera só começou a ser utilizada recentemente e em pouquíssimos e restritos espaços não legitimados enquanto produtores e legitimadores de conhecimentos e verdades – que envolva gênero/sexo/sexualidade em que não se encontra cisgênero enquanto categoria analítica. Não se trata de jogar fora tudo o que o feminismo, a psicanálise, marxismo, etc. produziram sobre gênero, mas apontar suas lacunas ou colonizações referentes à questão transgênera. Igualmente proporcionar contribuições a todas as áreas de saber e ativismo político (em especial as afeitas aos estudos de gênero e ao feminismo), ao incluir um novo vetor intra-gênero que se referem às questões e existências de pessoas transgêneras, que passarão a integrar as análises intersecionais que levem em conta a classe, raça, gênero, etc.

Trata-se sim de apontar certas opacidades da língua que o reconhecimento da cisgeneridade passa a permitir. Por exemplo, quando se usa termos como “mulher” ou “homem” para referenciar sujeitos no mundo como evidência de sentido de um sujeito universal, que é o cisgênero, passamos o questionar a naturalidade desta relação. Neste sentido vale dizer que a língua faz um determinado recorte do real e o termo cisgênero permite um recorte diferente deste real, na medida em que desestabiliza relações de sentido já consolidados das categorias “homem” e “mulher”, proporcionando a inclusão das identidades trans* como hipônimos nestas categorias.

Por fim, quero reforçar a ideia de que não existe mais volta. Não existe mais volta a um passado em que seria possível pensar as identidades trans* como anormalidades distantes e isso passar batido. Nós estamos aqui pelo menos, resistindo. Não existe mais volta quanto ao uso político da categoria cisgênero, assim como aconteceu com a categoria heterossexual. Quero frisar também que qualquer tentativa de rechaço a esse termo trata-se da reprodução da própria supremacia cisgênera e, portanto, um ataque transfóbico. E a própria possibilidade deste rechaço, um privilégio cisgênero, pois quando se rechaça o uso do termo cisgênero, são as vozes subalternizadas que são desqualificadas. São as vozes das pessoas trans* que buscam se libertarem destas formas estigmatizadoras e colonizatórias de entenderem suas existências.

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Sara, por Sara (e mais ninguém)

Hoje temos a participação de Sara Jhones, com seu relato. Devemos proporcionar um espaço para que nós, pessoas trans*, possamos ter nossas vozes ouvidas e publicizadas. Precisamos de mais relatos como esse aqui no transfeminismo. Precisamos também, sobretudo, garantir através dessas “novas” vozes, a construção contínua de diálogos entre nós mesmxs, tanto para discutirmos questões mais teóricas como para garantir nossa própria sobrevivência física e emocional. Porque nós sabemos que para nós, não existe o privilégio de pensarmos as teorias separadas das práticas (de resistência, já adianto).

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Meu nome é Sara e sou uma mulher trans*

Venho nesse momento expor alguns fatores que fazem parte da minha história/vivência enquanto pessoa trans*.

O “ser mulher” e “ser homem” sempre me foi ensinado tanto no núcleo familiar em que cresci (assim como na maioria dos lares brasileiros), quanto nas escolas que frequentei e a todo o tempo, pelas pessoas que conheci. Pessoas cisgêneras que faziam questão de separar muito bem o gênero, assim como as cores, brinquedos, brincadeiras, roupas, hábitos, comportamentos e costumes. Não questionava, pois pensava: “Acho que ninguém gosta de ser homem”. Impressionava-me constantemente com a forma de pensar dos meninos e tentava ao máximo compreender o que motivava os pensamentos parecidos, sendo que sentia só o meu ser completamente diferente. Procurava sempre fazer amizade com outras garotas, para ter com quem compartilhar ideias e pensamentos parecidos, mas na hora de formar a fila para cantar o hino nacional ou para passeios da escola, sempre me colocavam na fila errada. Cresci de certa forma “conformada” com a situação, pois não era apenas a minha família ou funcionários da escola que “supervisionavam” a minha adequação ao gênero designado, mas a sociedade como um todo. E isso é algo realmente infeliz de se perceber aos 7/8 anos de idade. Parecia a sociedade protegendo-me da própria sociedade, como se me dissessem aos sussurros: “Faça isso, para que nós não te punamos e consigas viver em paz”. Pensava que queriam o “meu bem”, mesmo que o “meu bem” não me fizesse bem.

Não estou replicando aquela história: “Quando eu era criança gostava de brincar de boneca e não de carrinho”, estou dizendo que a não similaridade com o gênero masculino sempre me foi bastante nítida. E se há algo que me lembra isso é o fato de que adorava subir no palco da escola todos os dias na hora do *recreio* para cantar as músicas de “Sandy&Junior” (obviamente só cantava as partes da Sandy rsrs).

Não tive uma infância sofrida nem com episódios de automutilação como muitos psicólogos e psiquiatras adorariam que fosse para inserir no meu prontuário médico e dessa forma compor um diagnóstico de “transsexualismo irrefutável”. Um caso fácil. CID 10 F 64.0 na ficha médica e pronto.

Por sorte, e MUITA sorte faço hoje acompanhamento com uma excelente ginecologista que acima de tudo leva em consideração minha intenção com tratamento hormonal e objetivos reais. Que não me tratou como um objeto a ser estudado ou me trouxe formulários pré-estabelecidos para hormonização pré-cirúrgica, afinal, muitos médicos nem nos questionam a intenção da hormonoterapia e pensam que todas as pessoas trans* obrigatoriamente fazem seu uso com fins de redesignação sexual,*mesmo que a hormonização seja totalmente desnecessária para a realização da mesma*, mas o protocolo adotado exige hormonoterapia, então uma trans (que não é o meu caso) que deseja realizá-la terá de seguir o protocolo querendo ou não.

Protocolos, normas, regras, exigências, paramentos, métricas, processos, tratamentos.

Chegamos a um ponto e na verdade nunca saímos dele, de que se pessoas cisgêneras nos dizem que devemos ser atestadas(os) como doentes para nos tratarem, tudo bem. Se precisamos de laudos, provas e tudo mais que nos identifiquem possuidoras(es) de transtorno mental/comportamental necessários à retificação dos documentos, faremos o quê? Colocaremos-nos mais uma vez nas mãos de um (cis)tema que nos obriga a pedir permissão de existir. Se um erro aconteceu no momento do nascimento por avaliação da morfologia genital, não nos dão o direito de corrigir esse erro. Não nos dão o direito de corrigir sem depender de uma pessoa cisgênera para dar ou não a permissão para que isso ocorra, para ter minha vida em meu poder. Não nos dão direitos simplesmente.

Não só param aí as decisões tomadas por nós, pois mesmo nas relações permeadas pelo “teórico” afeto, também se vê a sobreposição de poder, quando homens cis héteros dizem para mulheres trans*: “Gostei de você, quero você”. Como se a decisão fosse a deles, nunca a nossa, pois na nossa cultura não deveríamos “escolher” e já seria um verdadeiro “milagre” atrairmos uma pessoa sem ela estar bêbada ou sem a enganarmos escondendo nossa “verdadeira identidade” (identidade essa que não se verifica psiquicamente mas compulsoriamente). Não é inteligível nem aceitável nossa opção de revelar ou não nossa condição trans*, afinal, o mundo precisa saber e se defender de nós, que existimos para “enganar”, né? E precisamos ser resumidas(dos) a um genital, para tornar as coisas simples, muito simples, o mais simples possível até chegar no religioso e científico “macho” e “fêmea” que tantos discursos transfóbicos amam se sustentar.

Parem com isso. Devem-nos o direito de decidirmos por nós mesm@s, de corrigir erros que não fomos nós quem cometemos, de decidir o que fazer com nossos corpos, de decidir o que fazer com nossas vidas! Não vou pedir permissão para existir assim como não vou pedir permissão para me aceitar! Não irei faltar-lhes com respeito, porém não vou permitir que me subjuguem ou que me resumam, pois não posso ser resumida, principalmente não irei ser resumida a um órgão, a um gênero que não me define, nem a um monte de conceitos cisnormativos que me impuseram.

Se não tivesse meus cabelos longos “de mulher”, minhas saias “de mulher”, meus sapatos “de mulher”, meu rosto “de mulher”, seria “mulher” mesmo assim. Podem me tirar e negar o que não tenho. Mas não podem tirar minha essência, minha alma e minha vida, pois senhoras e senhores CIS, sinto informá-los, mas são puramente e naturalmente “de mulher”.

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Por um conceito de sexo transfeminista

Em tempos de carnaval, em que pessoas cisgêneras (em especial, homens) se veem livres para tratar mulheres trans* e travestis com chacotas enquanto enganadoras, acho bastante relevante falar como o aparentemente inocente conceito de sexo implica nestas formas cruéis e opressoras de se compreender as pessoas trans*. Diversos autores – como Judith Butler - vêm questionando e problematizando com bastante minúcia o conceito de sexo e o estatuto de sua materialidade. Essas discussões colaboram para uma perspectiva essencial para compreendermos práticas e teorias transfeministas, pois trazem o caráter político/ cultural do sexo, e não apenas, como tradicionalmente foi entendido, acerca do conceito de gênero. Aqui, neste primeiro momento, não me interesso em aprofundar estes debates sobre as controversas acerca da materialidade do sexo, mas sim, enquanto pessoa trans* transfeminista que está iniciando seus estudos nestes autores e nestes temas, apontar minhas impressões sobre algo que ainda me parece incipiente nestes debates: a representação do sujeito coletivo e político de pessoas trans*.

Acredito que esta falta se dê justamente pelo apagamento/silenciamento das questões tipicamente transfeminista pela brutal violência com a qual são submetidas as pessoas transgêneras, que as impedem de acessar direitos básicos, quem dirá espaços como a academia para discutir estas questões políticas (que trazem implicações nos campos do feminismo, teoria queer, antropologia, etc.). Acho que nem ao menos preciso lembrar sobre como a voz das pessoas trans* é correntemente colonizada por pesquisadores, pois isso já foi denunciado aqui neste blog, dentre outros, e em discussões nos grupos e páginas sobre o tema no facebook.

Eu acredito que o transfeminismo seja capaz de suprir esta falta, enquanto meio efetivo para que as vozes das pessoas trans* sejam efetivamente ouvidas e expostas. E é a partir desta voz, antes não ouvida, que vamos passar a compreender o sujeito político de pessoas trans*. Quero problematizar alguns conceitos sobre sexo que tem suas implicações no meu cotidiano e nas demais pessoas trans* e neste momento não vou me aprofundar nas teorias feministas ou queer, mas desejo que seja feito o convite (mais do que urgente) em se pensar de vez sobre transfeminismo e suas implicações na teoria/prática.

Como disse, existe um debate acadêmico/político acerca do conceito de sexo que visa questionar o estatuto abstrato, biologizante e a-histórico do sexo. Esse debate está imerso em diversas “polêmicas”, pois o que se discute aqui se refere ao caráter contraditório do sexo que se manifesta muitas vezes nas tensões entre áreas de conhecimento ditas “humanas” e “biológicas”. Resumindo as querelas, sexo deixa de ser um dado objetivo e passa a ser cada vez mais compreendido – em diversas nuances - como um dado prescritivo que só pode ser entendido nas relações de poder em que se encontra. Estes apontamentos são essenciais para entendermos o transfeminismo, mas não são suficientes a meu ver.

Tenho a impressão que ainda falta discutimos sobre o sujeito político que é diretamente oprimido, que neste recorte, são as pessoas trans*/mulheres trans*. Se não falarmos sobre quem são as pessoas trans* quando discutimos sobre as relações de poder que envolvem o sexo, parte essencial do debate sobre sexo é violentamente silenciado, pois não se leva em consideração integralmente sexo enquanto sua materialidade contraditória.

Pois acredito, enquanto transfeminista, que pessoas trans* são aquelas que sofrem (materialmente) a faceta transfóbica das normas de gênero/sexo. O feminismo conseguiu/tem conseguido problematizar a faceta misógina das normas de sexo/gênero e proponho que façamos o mesmo para a faceta transfóbica, e para isso, é essencial entendermos qual é o seu sujeito político. Se não dermos “nomes aos bois”, a meu ver, estaremos nos furtando de entender as diversas formas de como sexo enquanto norma se materializa. Isso significa dizer que são as pessoas trans* que sofrem com transfobia, e transfobia decorrendo diretamente das normas cisgêneras que o conceito de sexo pressupõe. A discussão sobre o sujeito político do feminismo também foi feita, a partir da dessencialização da categoria mulher proporcionado por perspectivas intersecionais que levaram em consideração questões como classe, raça e agora, também (assim espero), um recorte intra-gênero que considerará a questão transgênera. E vale a pena também ressaltar que este recorte transgênero se relaciona diretamente com a utilização do termo cisgênero enquanto conceito analítico que questiona as diversas formas de naturalização da supremacia cisgênera.

Então afinal, o que é sexo enquanto produtor de transfobia? É bastante fácil observar isso no cotidiano. Não se trata de discussões acadêmicas e difíceis de entender. Quando lemos nas matérias de jornais a forma como tratam as pessoas trans* com nomes, pronomes e flexão de gênero com o qual não se identificam, isso é uma manifestação de sexo enquanto supremacia cisgênera. Quando vemos a insistência contraditória de se levar em consideração o (suposto) respeito à identidade das pessoas trans* porém, ao esbarrar no discurso biológico que ditaria que a verdade por trás do “gênero” de uma mulher trans* estaria “escondido” o “sexo” masculino e com homens trans*, o “feminino”, o que de fato estas construções de sentido implicam? Vemos com relativa frequência esse discurso que respeita as identidades trans* até a página dois, até quando falamos em “biologia”, na qual uma suposta verdade objetiva entraria em jogo e imperaria. É sobre dizer e descrever objetivamente alguma coisa no mundo ou, ao contrário, construir um argumento, de que pessoas trans* são, apesar de suas identidades psíquicas, as “falsas”, aquelas cuja, em última instância, não são capazes de sustentar seus gêneros através de seus corpos?

A pergunta aqui foi retórica: a instrumentalização ideológica de conceitos da biologia serve para a perpetuação de pessoas trans* enquanto falsas e abjetas e a destituição de direitos civis. Quando um juiz nega o reconhecimento à retificação dos documentos às pessoas transgêneras, é usado o discurso biológico, de que tais pessoas não seriam verdadeiramente homens ou mulheres. Quando pessoas trans* são exotificadas, objetificadas, transformadas em seres de potencial “engano” e destituídas de consentimento sobre seus próprios corpos também. Quando pessoas cis se sentem no direito de tornar a transgeneridade de alguém objeto de escrutínio público, quando elas se sentem no direito a saberem se uma pessoa é trans*, caso contrário a pessoa trans* é vista enquanto praticante de alguma forma de delito, também. Quando pessoas cis acham que se trata de apenas uma “piada” chamar uma travesti de mulher falsa, tratando-a como motivo de chacota, também. Trata-se da perpetuação de uma opressão e para isso a utilização de conceitos de sexo enquanto pretenso dado biológico, objetivo, abstrato e a-histórico. Pessoas são trans*, portanto, são oprimidas pelo sexo, não apenas pelo “gênero” (entendido em sua faceta social da dicotomia natural-social).

O que eu quero é que tragamos o transfeminismo para a academia, para as discussões teóricas e políticas das questões de gênero e isso irá significar levar em consideração, em última instância, sexo como materialidade contraditória do discurso que poderá ser apreendido e entendido enquanto produtor não apenas em seu vetor de opressão misógina (às mulheres cisgêneras), mas também em seu vetor transmisógino (às mulheres/pessoas transgêneras); sexo não entendido como um produtor de normas em abstrato, mas que se manifesta e se materializa nas vidas destas pessoas. Levar, portanto, a existência dessas pessoas para estas discussões, em especial, as mais subalternizadas e desvelar como essas formas de opressão ocorrem em suas formas concretas.

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