Arquivo do mês: junho 2014

Sobre o termo cisgênero, o equívoco da língua e o político na sigla LGBT

Escrevo este texto pensando o encontro que a defensoria pública realizou para falar sobre “identidades trans”, em que estavam presentes a psicóloga Bárbara Dalcanale Menêses e o assessor técnico do centro de referência LGBT, Márcio Régis Vacon como palestrantes. Ao se falar sobre transgeneridade, é urgente problematizarmos certas evidências de sentidos, na medida em que considero extremamente importante o não apagamento do político da questão transgênera. Aprendi com a análise de discurso fundada por Michel Pêcheux (AD) que a impressão que as palavras designam inequivocamente coisas e objetos no mundo se dá através de um efeito ideológico; também aprendi, contudo, que a ideologia funciona pela falha. Isso significa dizer, entre outras coisas, que o sentido, apesar de parecer evidente, pode ser sempre outro, a partir do momento em que a língua (para significar) necessita da inscrição da história, e com isso, os sentidos estão sempre já divididos pelas contradições das lutas de classes. Dizemos, portanto, que a linguagem não é transparente, já que ela não designa de forma unívoca; ela é, ao contrário, opaca.

Para a AD, a falha da língua pela ideologia se denomina equívoco. A ideologia aqui é entendida como necessária para a relação do sujeito com os sentidos, se distanciando, portanto, de concepções de ideologia como “ocultação da verdade”. É a partir de uma formação discursiva que os sentidos vão ser mobilizados através de uma posição de sujeito (um exemplo clássico para entender isso sucintamente quando, a rede Globo, por exemplo, utiliza “invasão” enquanto que um blog de esquerda, para referenciar a mesma situação, irá utilizar o termo “ocupação”; os sentidos estão divididos, e uma posição sujeito determina, neste caso, uma “escolha” diferente do léxico).

Então o que a cisgeneridade diz respeito ao equívoco da língua? O que diz respeito ao (apagamento do) político? Certamente muita coisa. Bárbara começou sua palestra “explicando” quem eram (ou o que eram?) as letrinhas da sigla LGBT. LGB são pessoas não heterossexuais, dizem respeito às orientações sexuais, e o T são pessoas trans*, diz respeito às identidades de gênero. Percebam, contudo, que essa definição, a priori, “correta”, mobiliza certas evidências, pré-construídos. Por que, ao falar sobre pessoas não-heterosexuais, sempre referenciamos pessoas cisgêneras? Quem são os (cisgêneros) gays, lésbicas e bissexuais afinal de contas? Por que o tema da identidade de gênero é sempre secundarizado (e como isso se dá historicamente, na materialização dos discursos?)?

"Por que eu deveria... me designar como cisgênero?". Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

“Por que eu deveria… me designar como cisgênero?”. Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

Os LGB são sempre os homens e mulheres (cisgêneros) que se atraem por homens e mulheres (cisgêneros); enquanto que o T apenas atrapalha essa cadeia de significações. Essa é uma das evidências de sentido sobre a sigla LGBT: a tensão/contradição entre a reunião entre orientações sexuais desviantes e identidades de gêneros desviantes não é “resolvida” (ou é para mim, enquanto transfeminista, a materialização de um discurso cissexista) de forma satisfatória pela posição de sujeito cisgênera, na medida em que apaga a possibilidade de (existência do) sujeito trans*, e também apaga a própria possibilidade do sujeito trans* de ter uma sexualidade (!). Não somos destituídxs “apenas” da família, do acesso à educação e empregos, mas também da ordem significante que simboliza a sexualidade. Não temos também o direito de termos desejos! A sexualidade de uma mulher trans* em especial é vista de forma abjeta pelo discurso médico. Somos obrigadas a realizar o impossível em busca do laudo: ora performando uma identidade heterossexual legitimada socialmente, ora performando uma identidade assexual na qual nunca é suficiente, já que sempre somos passíveis de sermos desqualificadas enquanto mulher e enquanto ser humano por qualquer sinal (ou ausência) de sexualidade/gênero.

Esses sentidos desarticulam a possibilidade de resistências transgêneras, já que a própria possibilidade de humanidade nos é interditada pela linguagem. É aí que o simbólico diz respeito ao político, aliás. Afinal de contas, quem nunca se deparou com o equívoco (percebam a relação sempre com o linguístico e os significantes) acerca da orientação sexual tanto de pessoas trans* quanto de pessoas (cisgêneras) que se atraem por pessoas trans*? A pessoa (cisgênero) que namora uma mulher trans*/homem trans* é “hétero” ou “homo”? Ou nenhum dos dois? Risos!

A transgeneridade (enquanto cisgeneridade mostrada em sua opacidade significante), portanto, é uma verdadeira arma (aliás, arrisco dizer a maior delas) contra a heteronormatividade. Quem dera os gays (cisgêneros) dessem conta disso e articulassem isso politicamente… mas infelizmente é mais fácil se apegar a certas identidades essencializadas, tomadas como transparência da linguagem. Identidades essas, que dizem respeito à orientação sexual, que pessoas trans* não têm o privilégio de reivindicarem plenamente. Falar sobre tudo isso, portanto, é também falar sobre o impossível da orientação sexual, sobre suas falhas, equívocos.

Os sentidos sobre a sexualidade das pessoas trans* estão interditados na medida em que o sujeito (de orientação sexual neste caso) universal é cisgênero. E isso se dá através das evidências mobilizadas pela posição de sujeito cisgênera. Por que pessoas trans* são sempre o puxadinho (precário) da laje da significação, são sempre o Outro, que, a partir do momento (contraditório) em que se reconhece o real deste grupo até certa medida: até a medida em que a cisgeneridade é posta como ponto incontornável (e insuportável)? São sempre aqueles que sobram, são o Outro não na sua relação de alteridade, mas na sua relação de abjeção. A simbolização da linguagem de tudo o que se refere a transgeneridade (o real) pela posição de sujeito cisgênera é marcada pelo político, pelas relações de poder. Isso significa que há uma “afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos, caracterizada pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real”, como bem define Eduardo Guimarães na sua semântica do acontecimento. E o discurso da biologia também é mobilizado por esse discurso cisgênero (designar pessoas cisgêneras como “biológicas” é um exemplo disso). E inserir o biológico na discussão é o mesmo que retirar-se do debate político.

Que existe um desconforto de pessoas cis com o termo cis não é novidade. Já falei muito disso aqui no blog. O que também é curioso é ver pessoas trans* “defendendo” a não utilização do termo cisgênero. Isso apenas nos mostra que a posição do sujeito não é empírica nem automática: pessoas trans* podem assumir esta posição de sujeito cisgênera, assim como pessoas cis podem assumir uma posição de sujeito trans* (ou transfeminista).

Vejamos certos efeitos de sentidos nos enunciados:

  • As pessoas trans* são aquelas que se identificam com o gênero oposto.
  • O homem que se veste como mulher é uma mulher transexual.
  • O que diferencia uma transexual de uma mulher é o biológico.

Nos enunciados há o efeito de pré-construído. Isso significa que algo nos enunciados “disse antes, independentemente” que atravessa o dizer e que, nestes casos, se dá sobre a forma da contradição, gerando um efeito de sentido ora paradoxal, ora transparente. Quando se define que uma “pessoa trans é aquela que se identifica com o gênero oposto” se afirma, por meio do implícito, que a pessoa trans pertence a um gênero (ela “é” alguma coisa) com o qual ela não se identifica. É aí que o equívoco se manifesta: como posso me identificar com algo que desde sempre (desde todos os dizeres, os já-ditos) eu já não seja? Este pré-construído articula dizeres anteriores que afirmam que mulheres trans* não são mulheres e homens trans* não são homens. Qual é o gênero oposto de uma mulher trans*: o feminino ou masculino? Este enunciado afirma o paradoxal: o gênero “oposto” de uma mulher trans*, a partir do seu próprio ponto de vista, é o masculino. Como poderia uma mulher se identificar com o gênero masculino? Sentidos de transparência acerca dos termos “homem” e “mulher” atuam de forma semelhante no segundo enunciado. Esses efeitos de pré-construído se dão através de um atravessamento com o discurso da biologia/medicina, no qual o desígnio de gênero ao nascer é mobilizado como evidência de que “sejamos” homens ou mulheres produzindo coerência para os termos “homens” e “mulheres”. Por isso o terceiro enunciado possui efeito de transparência. Mas aqui vai o equívoco: falar sobre transgeneridade é falar sobre o biológico? Como, então, esses enunciados podem ser tão transparentes? Como essa relação de transparência se deu historicamente? É hora de deixar para trás o “biológico” para se falar sobre (cis)generidade. Isso significa dizer, afinal, que pessoas cis não são biológicas.

3 Comentários

Arquivado em Cissexismo, Invisibilidade, LGBT, Linguística

Tornar-se cisgênero

No ritual de passagem adolescente, alterações corporais irrefreáveis ganham espaço nas vidas de várias pessoas, agregando-se às suas subjetividades. Tornar-se cisgênero acaba sendo, então, um evento inevitável, nem sempre desejável, um modus operandi hormonal inesperado.

A partir daí, nossos corpos são (mais) veementemente simbolizados, nossas sexualidades mais fortemente evidenciadas (e/ou hipersexualizadas), nossos atos cistematicamente indesculpáveis; Não podemos mais, na presumida inocência infantil, perguntar por que não podemos usar/se associar a essa ou aquela coisa, agir dessa ou daquela maneira. Não que a coerção (e a correção) não viesse, de outras formas, enquanto crianças, mas há algo de agenciador no ritual de passagem cisgênero, que marca a nossa (i)responsabilidade em não sermos outra coisa que não cisgêneros. Após o ritual deixamos de ser crianças, e socialmente devemos responder por nossos atos que podem ou não tencionar nossa cisgeneridade.

Nossa memória do futuro é cisgênera, ao passo que o ritual já está prescrito, é um evento pré-determinado do futuro, normalizado, esperado, acatado, e qualquer tentativa de interrupção ou desvio é considerada um ultraje, execração, um atentado contra a ordem natural das coisas, contra o que deus fez, contra a biologia, contra a saúde.

Crianças, acreditamos, não são agentes de si. “É coisa de criança” dizemos, enquanto corremos para levá-las ao/à psicólogx, que nos dará a resposta esperada, o conforto ansiado: “seu/sua filhx é normal” ou “seu/sua filhx é portador/a/x de uma doença, mas que poderá ser curada e elx será normal, viverá uma “vida normal”. A “cura” pode vir na forma de duas coerções: o impedimento cistemático de todos gestos, expressões, gostos pelo “sexo oposto” ou o “processo transexualizador” que irá reorganizar binariamente esses corpos.

Toda vez que um sujeito diz “não desejo passar por isso”, “não me reconheço nesse corpo”, “minha memória não é essa”, “esse não é meu futuro”, um conjunto de discursos é colocado em prática, para defender a criança dos agentes externos que lhe desejam modificar a estrutura, ou para reorganizar esse corpo dentro do cistema, como outro binário. Mas quem defende a criança queer, como pergunta Preciado?

Que diferenças, tão díspares, haveria entre o ritual cisgênero pautado pela injeção interna de hormônios, cujos efeitos serão determinadas modificações corporais, e as injeções externas de hormônios cujos efeitos serão determinadas modificações corporais?

O que o devir cisgênero tem a ensinar sobre autonomia?

Tornar-se transgênero é categoria nosológica, tornar-se cisgênero é natureza.

Tornar-se transgênero é a pedra no caminho, tornar-se cisgênero é o próprio caminho.

Nos compêndios médicos, uma infinidade de técnicas e guias sobre como “tratar” a nosologia trans*, mil e uma explicações que inexplicavelmente reduzem as subjetividades trans* a apenas uma. Um estudo de caso com 14 sujeitos que universalizam a experiência identitária. Dezenas de artigos e discussões sobre “transexualidade na infância”. A patologia amplia seus domínios. Logo estaremos falando no gene da transexualidade, se é já não existe e felizmente me poupei de acessar tais informações.

Vejo muita gente com boa intenção falando em “crianças trans*” ou “transexualidade na infância”. A transexualidade é também um conjunto de crenças médicas materializadas numa nomenclatura/categoria nosológica. Quando corremos para classificar crianças que expressam seu gênero de forma inconforme com o cistema, ou seja, a(s) expressão(sões) de gênero(s) e o(s) corpo(s) designado(s) e cistematizado(s) não são isonômicos, estamos indiretamente patologizando uma expressão e estereotipando comportamentos. Ser trans* é sobretudo uma experiência identitária, e como toda experiência identitária ela é - ou deve ser - autônoma, deve haver agência por parte dxs sujeitxs que a experienciam. Essa também é uma luta do Transfeminismo.

Crianças devem ser livres para expressar seu(s) gênero(s) sem classificações identitárias que não escolheram, caso contrário acabaremos essencializando certas expressões/vivências como sendo trans*, sem ao menos deixarmos que seus agentes decidam por si mesmxs, quando forem capazes de compreender o que tal identidade significa e quais são as implicações existentes.

Nós trans*, nem sempre fomos trans*, mas pode-se dizer que muitxs de nós fomos pessoas cujo gênero era inconforme ao cistema. Fomos não, somos. Muitas de nossas infâncias foram pautadas pela subversão das normas que orientam o gênero. E nós éramos quem sempre fomos: nós mesmxs. Que essa experiência, posteriormente, foi classificada com o termo “transexualidade” de nada sabíamos e não teria feito diferença. Talvez a diferença tivesse sido o conforto que a patologia traz aos pais e mães desesperados com a “pane no cistema”.

Me entendo como trans* porque existe uma categoria identitária que abraço, sobretudo politicamente, para demandar direitos e explicar o que meu corpo e meu gênero significam para um mundo cistemático. Para mim, é uma categoria que inteligibiliza minha existência. Só que ao mesmo tempo, essa categoria permanece como doença mental. Só existe se for através do estigma da doença. E como lembra Missé, só podemos subir à Arca que promete a cura para os corpos errados, que nos levará à Ítaca com a promessa de uma vida melhor, se estamos convencidxs que nossos corpos sempre foram errados, de que necessitamos consertos, e essa memória de nunca termos sido normais é algo que jamais conseguiremos desexperienciar.

Meu corpo não é errado, não necessito de cura, errado é o cistema. Nunca fui uma criança transgênera, eu fui eu.

Prazer, eu sou a Hailey.

 

 

1 comentário

Arquivado em Uncategorized