Abrindo o mês de agosto, temos um guest post de Eduarda Alfena. Sempre debatemos como o sistema binário-cissexista nos exclui de uma vida legítima (e legitimada). Exclusão de todas as formas: as simbólicas, as reais… Exclusões sobre as nossas formas de existências. Para o cissexismo, nunca estaremos “prontxs”. Sempre haverá um empecilho para a transição, seja na infância, na adolescência, na vida adulta, na velhice… Afinal de contas, o cistema sempre irá buscar formas de silenciamento, de cooptação para a cisgeneridade obrigatória. Me lembro de uma metáfora (já não me lembro quem a fez) extremamente pertinente sobre como é abusivo os saberes-poderes médicos em torno da emissão do laudo: para estes médicos nos “laudarem” como transexuais “verdadeiros” é necessário que nós pessoas trans* desejemos cometer o suicídio com um belo sorriso no rosto. Ou também - propondo outra metáfora - os saberes-práticas médicas constroem uma “Donzela de Ferro”. A Donzela de Ferro, como aponta Naomi Wolf em “O Mito da Beleza”, era um instrumento de tortura medieval em uma espécie de caixão adornado com os membros e o rosto de uma jovem bela e sorridente, em que a vítima era aprisionada até uma morte angustiante, seja por inanição ou decorrência das lesões provocadas pelos espigões de ferro encravados na parte interna do caixão. Assim, o laudo médico-psicológico sem dúvidas tem um “que” de Donzela de Ferro: somos “recompensadas” pelo laudo na exata medida em que temos que nos adequar aos exatos centímetros do nosso próprio caixão - ou diagnóstico.
Ou seja: exigem-nos o impossível. O texto da Eduarda nos mostra muito bem como esse mecanismo operador de “impossibilidades” funciona. E isso fica ainda mais evidente quando observamos recortes de classe, raça, de natureza capacitista, etc. Eu mesma, Bia, no topo dos meus inúmeros privilégios fui gentilmente escorraçada destes (poucos) centros de atendimento para pessoas trans* através da cínica (não) comunicação cisgênera. Afinal de contas: “O que é tratamento? Isso não é tratamento!”, me interpelava uma médica. Vamos ficar aqui com as reflexões da Eduarda sobre suas vivências (e abusos!) em torno das inúmeras falhas dos serviços públicos. Falhas sim, porque sabemos como são as condições do serviço público de saúde neste país, mas também abusos de natureza transfóbica.
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Olá. Vejo muitas Teorias sendo discutidas por aqui, e gostaria de comentar sobre essa, que vivi na Pele. Sempre é bom observar que o Movimento Transfeminista é sempre um Local de inúmeras Discussões, o que enriquece qualquer Debate.
Certa vez, estava em Conflitos familiares e a Bia me passou um Texto falando sobre Desvirtuamento para iniciantes. Isso me fez perceber o quanto as Pessoas Cissexistas criam Argumentos muito interessantes, que (quase sempre) conseguem jogar outras Pessoas Cis cada vez mais contra Pessoas Trans*.
Eu sou Trans*, logo, acabei indo a um Centro de ‘’Atendimento’’ para Pessoas Trans*. No início, era extremamente submissa às Vontades do Médico Coordenador da Equipe e do Ambulatório. Um Dia, cansei, e comecei aos poucos a querer um pouco mais de Poder de Decisão. Isso foi mais ou menos na Época em que eu conheci o Movimento Transfeminista, principalmente através da Bia.
De certa forma, a Bia foi me dando Força para que fosse ouvida. O que mudou os Rumos das coisas lá no Ambulatório.
Para poder tentar resolver meu Processo, fiz inúmeros Pedidos para esse Médico (que chamarei agora de chefe) fizesse meu Laudo. Como sou Autista, mesmo num Grau leve, tenho grandes riscos de receber uma Curatela (Interdição Judicial, e consequente perda dos Direitos Civis). Foram Semanas de Brigas, até que minha Mãe ligou pra ele, e me disse ‘’ele PROMETEU fazer seu Laudo’’. Havia sido combinado que, mesmo antes deu operar, ele faria Laudo pedindo Processo de Ratificação do Prenome, e Alteração do Gênero nos Registros Civis.
Ele deu o Prazo (final de Maio). Como nossa Relação não anda bem, ele nomeou um Residente para me atender. Chegado o Prazo de entrega, o chefe não fez o meu Laudo, nem me deu retorno. Passadas 2 Semanas do Prazo, nada ainda. Dada 3 Semanas, nada. Me irritei com a tamanha falta de Respeito dele, e fiz uma Queixa na OUVIDORIA do Hospital. O engraçado é que dei de cara com ele depois disso. Disse-me apenas ‘’veja com o Residente. Ele quem te atende agora. Te Dará o Laudo do jeitinho que combinei com a sua Mãe’’.
Chego no Residente, isso já um Mês depois do Prazo inicial, o que eu escuto? ‘’Não fui informado de nada. O Laudo só pode ser feito, para Ratificação de Prenome. Gênero, só depois da Cirurgia. Te darei o Laudo no FINAL de JULHO’’ (2 Meses depois de eu ter pedido).
Eu saí do Serviço. Minha Paciência não resistiu. O que acontece sempre, é que eu ‘’melhoro’’, e na hora de pedir o Laudo o ‘’Chefe’’ me irrita profundamente, aí eu fico ‘’descompensada’’. Qual Médico pode dar um Laudo para Pessoas ‘’descompensadas’’? Nenhum.
Vejo que por muito Tempo fui Vítima dessa Arma. Sempre que estava mais animada, mais confiante, bum. Recebia o Tiro da Irritação que ele usa. Perdia muito a Paciência, e, estava descompensada. No caso, ele sabe fazer isso em nível ‘’Mestre Ninja’’. Vejo o quanto é fácil, irritar uma Pessoa Trans*, em situação vulnerável, e depois jogar isso contra nós mesmxs.
Mas não vejo que somente xs Médicxs desses Centros fazem isso. Por exemplo, uma Pessoa Trans* Disfórica tem Danos Emocionais por conta dessa Disforia, logo, ouvimos que estamos muito mal, e não podemos operar por conta disso. “É perigoso operar uma Pessoa deprimida”. Se ficamos ansiosxs esperando uma Resposta que nunca vem, estamos ansiosxs demais, logo, isso é perigoso. Uma Pessoa Trans* que critica uma Ordem Médica (algo como um Decreto Absolutista), estamos revoltadxs demais, logo, não estamos bem. E percebo o quanto outras Pessoas Cis dizem isso, o Tempo todo. ‘’Você só pensa nessa Cirurgia. E só fala nisso, vá viver sua vida e esqueça desse negócio de disforia’’. Nós jamais estaremos prontxs, pq sempre que estivermos, haverá alguém pra puxar o Tapete.
Há Pessoas que realmente querem me ajudar. Acho que esse ‘’Descompensamento’’ precisa ser urgentemente discutido. Não dá para outras Pessoas Trans* continuarem sendo atropeladas por ele. O que resolve Disforia é combate-la. Tenho Disforia com meu Corpo? Me Hormonize. Tenho Disforia Genital? Me opere. Não adianta ficar jogando pra dentro do Tapete.
Espero ter ajudo um pouco. Agradeço a Bia pelo Espaço que ela me deu.
Muito obrigada
Eduarda Johanna Alfena.
Acréscimo da autora:
Para vocês verem como esse Médico é Mestre Ninja na Arte de descompensar, durante as duas ou três Semanas que fiquei sem Resposta dele, tive Pesadelos quase todas as Noites, gripei, ainda perdi um Kilo.
Quero agradecer a Bia, a Hailey, e ao Transfeminismo pelo Espaço! Bia, arrasou na Introdução!