Com o transfeminismo podemos pensar a questão da transgeneridade em sua especificidade, enquanto luta política. Existem múltiplos feminismos, com o transfeminismo também não seria diferente. Isso significa, portanto, que existem múltiplas formas de se pensar a transgeneridade. Poderíamos dizer, que mesmo existindo essa diversidade, que a base comum do(s) transfeminismo(s) seria pautar a transgeneridade em seu aspecto político. O que, contudo, também não nos garante muita homogeneidade, já que também poderíamos pensar sobre diferentes formas de como concebemos o político.
Aqui de adiante, portanto, vai da forma como eu, Bia, compreendo o transfeminismo e portanto, o modo como a transgeneridade se liga simbolicamente no político. Muito das minhas interpretações da questão se dão a partir das discussões propostas pela análise de discurso materialista, cujo principal expoente é Michel Pêcheux. Em vários textos aqui do blog tenho tentando essa aproximação teórica. Tenho proposto, portanto, pensar em um transfeminismo materialista. Isso significa pensar em uma teoria não subjetivista do sujeito. Este sujeito, no nosso caso, é/são o(s) sujeito(s) trans*. Ou seja, o que eu pretendo é pensar a transgeneridade enquanto vetor material ético-político (Orlandi, 2014) de resistências à interpelação ideológica do (cis) gênero compulsório.
Esta proposta teórica, tenho que frisar, não nasce do vácuo. Eu viso manter uma ruptura, por meio desta perspectiva, tanto com o biologismo e psicologismo – materializados nos discursos médicos - quanto com o sociologismo – materializado sobretudo nos discursos feministas radicais. Ou seja, parto da crítica tanto da psiquiatrização da transgeneridade quanto pela sua (cis)socialização via feminismo radical. Meu discurso transfeminista, neste sentido, é antagônico tanto ao discurso médico quanto ao feminista radical. Não é por acaso podemos observar uma aliança insólita entre o discurso do feminismo radical e da psiquiatria em relação à transgeneridade: eis o ponto no qual Sheila Jeffreys junta esforços com Ray Blanchard no discurso furado sobre a “autoginecofilia”, por exemplo. Julia Serano aborda esta questão em um artigo chamado “The Case Against Autogynephilia“.
Em ambos os casos (discursos), a questão do sujeito é que está posta, por isso a importância de se pensar sobre uma teoria (não subjetivista) da transgeneridade. Vale dizer, igualmente, que pensar no estatuto do sujeito trans* na sua forma-sujeito (enquanto interpelado ideologicamente), inevitavelmente nos faz tocar no sujeito cis. Portanto, é preciso entender primordialmente o sujeito do gênero (englobando tanto a cisgeneridade quanto a transgeneridade) interpelado pelo (cis) gênero. Isso se dá na medida em que as formações discursivas – as regiões insulares no interdiscurso que fornecem os sentidos aos sujeitos – se ligam às formações ideológicas, que por sua vez, representam o todo complexo com dominante.
Percebam, portanto, que não existe diferença essencial entre cisgeneridade e transgeneridade. Tampouco diferença estanque ou já dada entre elas. A diferença se dá apenas como o gênero se cinde ideologicamente pela forma da contradição. O que significa compreender também que existe cisões que dividem inclusive a própria cisgeneridade e transgeneridade nos seus interiores. A intersecção (falamos tanto de feminismo intersecional) eu entendo, portanto, como contradição. A diferença entre pessoas cis e trans* certamente existe, pois trata-se de diferentes lugares que os sujeitos ocupam empiricamente, que é descritível sociologicamente, sobretudo quando nos atentamos para as relações de privilégios.
Mas o que proponho prestar atenção é que, no interdiscurso, a transgeneridade não está apartada da cisgeneridade, na medida em que no Mesmo se encontra o Outro. Ainda temos que levar em consideração que o inconsciente, enquanto lugar que ocupa junto com a ideologia na constituição do sujeito e dos sentidos, nos aponta para o que é mais “instável” na relação cis/trans*; cis/cis e trans*/trans*. Fluxos contraditórios que orientam para uma forma de identificação. Não existe, portanto, essência biológica, psicológica ou sociológica “atrás” das materialidades cis e trans* (ou também, da materialidade do gênero). Essa afirmação pode “assustar” muita gente, e é certo que este é o ponto mais “caro” do que proponho, já que prevejo que muita gente entenderá a questão de outra forma. Vale então aprendermos a discordar, claro, e é assim que o conhecimento e o debate avançam. Aproveitando o ensejo, refuto certas leituras que fazem do transfeminismo, nas quais nós supostamente estaríamos reificando supostas essências entre pessoas cis e trans*. Oras, estou propondo justamente o contrário. O que eu digo é que não é possível fugir da língua, no sentido em que não é possível simplesmente fugir da cisgeneridade, empurrá-la para debaixo do tapete como se ela já não estivesse lá desde sempre significando (nem que seja justamente pelo recalque, em sua ausência necessária). A cisgeneridade é a irrupção do não sentido para o (outro) sentido do gênero.
Mas voltando ao assunto, se proponho um sujeito de gênero assujeitado pela ideologia isso significa dizer (ao menos): 1) o sujeito do gênero é interpelado ideologicamente pela cisgeneridade compulsória; 2) em decorrência disso, tanto pessoas cis quanto trans* são interpeladas pela cisgeneridade; 3) as diferenças das identidades entre pessoas cis e trans* se dão como os sujeitos se “relacionam” com seu próprio assujeitamento (ou seja, como se relacionam com a cisgeneridade compulsória) 4) essas diferenças não são essenciais – não são de natureza biológica, psicológica ou sociológica; 5) os sujeitos não são intencionais (no sentido que não escolhem os seus gêneros), neste sentido, ninguém “escolhe” ser homem ou mulher, cis ou trans*; 6) dizer que o sujeito de gênero não escolhe o seu gênero não significa cair, portanto, na “armadilha” do biologismo, psicologismo ou sociologismo, ou seja, não é a biologia que interpela o indivíduo em sujeito do gênero, nem as relações interpessoais tampouco a “socialização” (tal como é entendida pelo feminismo radical); 7) a forma como os sujeitos se “relacionam” com a própria interpelação, portanto, com o próprio gênero é entendida como um processo material que conjuga tanto a reprodução quanto a transformação (tanto reiteram quanto deslocam o gênero, e não existe separação estanque entre essas duas modalidades, já que elas funcionam, necessariamente, juntas pela contradição).
O sujeito do gênero, portanto, é interpelado pela ideologia (tenho que repetir), o que significa reiterar o caráter histórico, opaco e contraditório do gênero. Isso significa dizer, que o gênero não pode ser determinado de forma direta pelas “ciências positivas” da biologia, da psicologia ou da sociologia. Ou melhor, proponho que ao menos se faça a crítica da forma como essas ciências positivas tem apreendido a transgeneridade de forma completamente colonizatória, ignorando a questão da opressão transfóbica (apagando portanto a interpelação ideológica). Isso porque o gênero tem sua espessura e especificidades próprias, ou seja, a sua materialidade contraditória é constituída imaginariamente (pela ideologia) e simbolicamente (pela língua/discurso).
Entender que gênero tem sua materialidade contraditória nos aponta para o seu caráter equívoco. A transgeneridade nos mostra isso muito bem, já que a interpelação pela cisgeneridade falha e pessoas trans* existem e resistem. Mas também é equívoco num outro sentido: gênero é passível de se tornar outro, ou seja, cisgênero. A nomeação da cisgeneridade é uma das formas que eu considero mais fulcrais de como o gênero falha. Ver pessoas cis simplesmente não “entendendo” que são cis (nem ao menos entendendo “o quê” é) nos mostra o trabalho da ideologia de fornecer as evidências sobre o gênero de homens e mulheres. Pessoas que não entendem o que é cisgeneridade não o fazem justamente porque a ideologia apaga (simula) o processo de assujeitamento destas pessoas (sujeitos) pela cisgeneridade. Neste sentido, a ideologia do (cis) gênero não oculta nada, ela satura o gênero fornecendo os sentidos sobre homens e mulheres, o que todo mundo sabe sobre eles.
Voltando para o lado polêmico de tudo isso… acho que não preciso dizer em que medida nos distanciamos do discurso médico-psi, já escrevi pelo menos três vezes sobre isso, nos textos “Descolonizando os entremeios de Travestis e Transexuais” , “O Domínio Semântico de Determinação das identidades trans*” e ” Transgeneridade, psiquiatria e ideologia“. Sobre o feminismo radical, já abordei meus antagonismos com a corrente em “O feminismo radical e o barão de Münchhausen”.
Mas em relação ao feminismo radical, vale a pena apontar em que medida me distancio do conceito de socialização proposto por essa corrente. Quando digo que me distancio do sociologismo, não quero dizer que gênero não seja uma imposição social. Mas a forma como entendemos essa imposição importa, já que eu entendo socialização como interpelação. A grande falha da teoria feminista radical sobre a socialização se escancara na medida em que ela está furada tanto para abordar a questão transgênera quanto do próprio gênero. Primeiro porque a socialização do feminismo radical só acontece com pessoas cisgêneras no sentido de que apenas mulheres e homens cisgêneros são de fato assujeitados pelo gênero. Pessoas trans* estariam livres, elas “escolhem” serem trans* por mero esporte? E ainda concebem esta socialização se dando de forma completamente sem falhas ou rachaduras. Justamente por conceber gênero desta forma o feminismo radical se condena à prática do “abolicionismo de gênero”, um realismo metafísico que (facilmente) se alia com a transfobia. Para essa teoria furada, os sujeitos trans* são sujeitos intencionais do gênero, o que, como disse acima, se distancia completamente do meu entendimento sobre a questão. Gênero, assim como a ideologia, são constitutivos dos sujeitos. Não se pode abolir a ideologia, tampouco o gênero.
Por fim, considerando que nós, pessoas trans* constituímos uma minoria enquanto um vetor material de transformação, fico com as palavras de Eni Orlandi (2014):
Saímos assim das oposições estabilizadas: quantidade/qualidade, questão sócio-econômica/questão sócio-cultural, para incluirmos a história, o político, a ideologia, o sujeito. E Muniz Sodré (idem,2005) dirá que, referindo a Deleuze e Guattari, e o devir minoritário, pensa-se a minoria não como um sujeito coletivo absolutamente idêntico a si mesmo e numericamente definido mas como um “lugar” de transformação e passagem. Lugar como localização de um corpo, espaço ocupado, lugar da ação humana. Não é localização física necessariamente, mas uma configuração de pontos ou forças, campo de fluxos que polariza as diferenças e orienta a identificação. (idem, 2005). Dirá, então, que “o conceito de minoria é o de um lugar onde se animam os fluxos de transformação de uma identidade ou de uma relação de poder” (idem, 2005). Não é, pois, uma multidão ou um grupo, mas, principalmente “um dispositivo simbólico com uma intencionalidade ético-política dentro da luta contra-hegemônica”, diz ele. Eu diria, em vez de intencionalidade, vetor material ético-político. Porque é uma força dinâmica, na direção da transformação. E não é da ordem jurídico-social instituída. (p.32)
Referência:
ORLANDI, E. Ser diferente é ser diferente: a quem interessam as Minorias?. In. Linguagem, sociedade, políticas / organizado por Eni P. Orlandi. – L755 Pouso Alegre: UNIVÁS; Campinas: RG Editores, 2014. 230p. — (Coleção Linguagem & Sociedade). Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem–PPGCL Universidade do Vale do Sapucaí–Univás: 29. Disponível em http://www.univas.edu.br/menu/POSGRADUACAO/cursos/stricto/mcl/docs/LivroLinguagemSociedadePoliticas.pdf
Bia, cada vez te admiro mais. Não tenho nem Palavras para descrever esse Texto. Jamais pare de escrever!