Como já disse em posts anteriores, a transgeneridade não pode dizer respeito a uma forma patológica do gênero. Ao contrário, para entendermos a patologização das transgeneridades temos que entender o gênero de outra forma, e a patologização enquanto efeito de uma construção histórica. Forma esta distinta do que modelo biomédico propõe. Isso significa nos afastar de qualquer concepção essencialista sobre gênero e, portanto, apontar para o fato incontornável de que a patologização da transgeneridade ser a própria patologização do gênero.
Isso não significa, obviamente, dizer que empiricamente pessoas trans* e cis ocupam o mesmo estatuto enquanto sujeitos na sociedade (ou que ocupam os mesmos espaços sociais), como se se tratasse de estabelecer abstratamente uma relação de igualdade por meio de um sujeito universal (como o direito jurídico burguês/neoliberal encena). O que proponho é uma mudança de terreno que propicie a análise crítica da cidadania cirúrgica e a condescendência que a subjaz. Para isso é necessário trabalhar através de um sujeito do gênero irremediavelmente dividido, que produz seus efeitos ao mesmo tempo em que é produzido na contradição própria do sexo.
A existência de laudos que atestem a transexualidade revela, sobretudo, um impasse fenomenológico. Sejam laudos de psicólogos, médicos, assistentes sociais… Trata-se em todo caso de um impasse irreconciliável. Irreconciliável no sentido de que não se trataria de então buscar uma forma inequívoca de se fazer diagnósticos dos “transtornos de gênero”, tampouco conceber a confecção de um laudo (lado?) mais “humano” ou meramente expandir uma categoria nosológica do gênero. Não, o que trago de reflexão põe em cheque qualquer forma de mediação de direitos humanos para pessoas transgêneras através de um dispositivo normativo (de patologização) que é o laudo. Fenomenológico no sentido de que se trata de um conflito de alteridades entre “consciências” cisgêneras e transgêneras. Ou de representações imaginárias… O laudo posiciona a (identidade, sob escrutínio, de uma) pessoa trans* - uma “consciência” ou uma representação - frente uma “consciência” cisgênera. Consciência cisgênera esta na maior parte das vezes incorporada materialmente num sujeito/pessoa cisgênera e uma instituição – médicos, psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, juízes… O que se põe em jogo, no laudo, é quem pode dizer o que sobre o diagnóstico. No entanto, não existe mera mediação entre duas vozes num laudo, tampouco representação fidedigna da identidade transexual.
A transgeneridade é significada através de um vetor cisnormativo (seja no laudo, seja em outras materialidades discursivas) que disjunge corpo e alma, espírito e carne. No caso de pessoas trans* cuja identidade seja feminina, esta disjunção implica na divisão travesti/transexual. Neste sentido, a laudo não capta uma realidade unívoca, ele é a construção de um efeito de coerência e unicidade que se dá a partir desta disjunção necessária. O laudo tenta conter a dispersão da identidade, mas o máximo que consegue é um efeito de coerência, não uma apreensão ontológica. Um efeito de sentido construído, não enquanto sentido (uno) posto de antemão. Isso porque o próprio real do sexo se significar pela divisão; e a disjunção do sujeito é na verdade implicada no laudo, mesmo que ele simule justamente o oposto.
O efeito de coerência apenas simula cinicamente o efeito de encobrimento desta disjunção. Neste sentido, todo laudo de transexualidade exige um “Outro” laudo, seja na disjunção corpo-alma (“mulher nascida em corpo de homem”) seja na disjunção travesti/transexual. Ou seja, um laudo de transexualidade exige a existência do não-laudo da travestilidade (o laudo Outro) para que de fato faça sentido. O laudo só faz sentido através do não sentido, portanto. Esta exclusão nos mostra a relevância de se explorar politicamente esta Outra travesti recusada e excluída simbolicamente, o que nos diz respeito da necessidade de se pensar em um devir travesti. De pensar, sobretudo, da necessidade de tornar nossas reivindicações e representações o mais perto possível desta travesti que é sempre uma Outra. Trata-se de trabalhar politicamente na direção da tomada política deste devir. Quem chora pela travesti, quem leva em consideração a travesti enquanto grupo populacional que justamente por ser o mais ignorado (e renegado) é nesta medida mais oprimido?
A política de condescêndia cisgênera não enxerga humanidade na travesti, já que se trata da exclusão simbólica que essa mesma política necessita para a criação do mito da transexualidade. Portanto, trata-se de pensar nas até então impensadas: as travestis. “Representar” politicamente, sobretudo, os sujeitos transgêneros que estão excluídos do simbolismo médico-psicologista-jurídico e do mito da transexualidade, assim como todos aqueles que fogem da narrativa legitimada. Os próprios irrepresentáveis. Esta seria a diferença entre a política da condescendência e uma teoria transfeminista: enquanto a primeira trabalha (e “pensa”) com conceitos e formas de representação baseados numa ontologia do sujeito do gênero, o transfeminismo deve ir até o ponto no qual isso esbarra no impossível (real).
O que proponho, portanto, é trabalhar incessantemente e politicamente o próprio impossível enquanto o real (da identidade) do gênero. A política do impossível não deve se entendida como mero deslumbramento do inefável, inatingível ou como puro efeito imaginário, visto que o simbólico precisa irromper e se ligar ao político. A questão é que o simbólico tem que ser encarado enquanto tal, como jogo móvel de significantes que sustenta estrategicamente determinada forma de representação política. Móvel o suficiente para que não se fixe em alguma substância e que, ao mesmo tempo, supra as necessidades políticas contingentes, as quais sempre insistem em retornar. Negociações incessantes do real. O que significa dizer que a prática política nunca se encontra acabada.
Ainda sobre a política da alteridade
Uma pessoa trans* não é reconhecida pelo sujeito cisgênero enquanto um sujeito de igual consciência. Ao contrário, o reconhecimento da pessoa trans* se dá enquanto Outra, pois esta se encontra dividida entre o corpo – um sexo biológico – e uma alma – sua identidade. É nesta disjunção fantasmática entre corpo e alma que a incongruência da transgêneridade é significada pelo sujeito cisgênero ou pela política da cisgeneridade. Neste mesmo processo, a coerência da cisgêneridade é (re)estabelecida, através da denegação da iminência do sexo significar de outra forma (polissêmica), que, por sua vez, retorna insistentemente sob a forma (do medo) do delírio. A patologização da transgeneridade é, portanto, a resposta à insegurança que o sujeito cisgênero tem em relação à materialidade do sexo, dado seu caráter polissêmico e paradoxal.
O laudo de transexualidade cala aquele sujeito que julga representar. Não se trata de apreender uma realidade recôndita da identidade e da biologia do sujeito e do sexo. O laudo não deve ser entendido como uma forma acabada e ideal de obtenção de direitos. Se se trata antes de um fato que, dada as condições atuais, ainda nos é exigido um laudo para a garantia de direitos, isto não nos exime da crítica política a esse dispositivo normativo de exclusão. Não existe possibilidade de “representação” da identidade de alguém via um diagnóstico médico que não incorra em alguma forma de violência.
O laudo é a materialização exemplar da política da condescendência que a cisgeneridade é capaz de estabelecer com a transgeneridade. O máximo que a política da condescendência nos garante é a cidadania cirúrgica. Isso é o que nos dizem quando afirmam que uma pessoa “transexual verdadeira” precisa fazer determinado procedimento ou (principalmente) as cirurgias genitais. Uma pessoa trans* não é vista aqui enquanto um ser humano dotado de todas as demais características que formam um sujeito racional e/ou universal (o Homem) pelo simples motivo de que ora se trata de uma pura consciência desprovida de corpo (transexual) ora de corpo enquanto carne sem consciência (travesti). Em nenhum dos casos existe a possibilidade da tomada da consciência dos nossos corpos enquanto sujeitos. É precisamente aí que o cissexismo atua: é nesta disjunção que a cisgeneridade obrigatória é capaz de alienar os nossos próprios corpos e identidades. É aí também que entra uma discursividade paternalista, que pressupõe que pessoas transgêneras não podem consentir sobre suas próprias escolhas: elas precisariam sempre serem faladas por profissionais psi que desvelariam sua verdade. Profissionais, estes, que por sua vez, garantem a própria unicidade de suas identidades cisgêneras: não é fato banal de que empiricamente serem estas as pessoas que ocupam estes espaços institucionais.
Temos que nos livrar de uma vez por todas dos resquícios desta perspectiva de piedade e paternalismo que ronda os discursos sobre a transgeneridade. Descolonizar a transgeneridade. Tendo em vista inclusive o perigo de reproduzirmos estes sentidos em nossa militância; e, sobretudo, do próprio fato da política de condescendência ser o desdobramento necessário desta alienação (que se dá através da simulação do encobrimento da identidade através da ilusão de coerência e unicidade).
Uma falsa cidadania, para início de conversa. Mudar de terreno significaria obter nosso reconhecimento enquanto sujeitos de direitos e, portanto, enquanto sujeitos que têm alguma identidade de gênero tão legítima quanto uma pessoa cisgênera. Não se trata de uma identidade patológica. O que nós enquanto transfeministas devemos fazer é propor formas de intervenção políticas que vão além das práticas de condescendência. A política que temos que propor é da alteridade e da diferença. Enquanto condescendência, a cisgeneridade não é capaz de nos reconhecer enquanto sujeitos legítimos do gênero justamente pela impossibilidade da própria constituição do sujeito transgênero. Para tanto, a meu ver, não se trata de resolver as disjunções corpo/identidade e travesti/transexual, mas sim trabalhar a categoria da contradição.
Isso significa entender o desdobramento necessário (porque é contraditório) do sujeito (desde já dividido) do gênero entre cis e trans*. Uma divisão que implica numa relação necessária entre cisgeneridade e transgeneridade. Com isso devolver não a patologia, mas sim a opacidade a todos os corpos. Não se trata de abolir da teoria o conceito de sujeito. Trata-se, ao contrário, de mudar o próprio estatuto do sujeito: aqui ele é dividido, irremediavelmente dividido pex Outrx. Todo sujeito do gênero, neste sentido, tem a potencialidade de se tornar outro: dos outros sexos. A polissemia é trabalhada enquanto ferramenta de libertação, não mais vista enquanto delírio ou alucinação de certos sujeitos tidos patológicos.
Prezadas, como estão?
Eu sou iniciante na temática, ainda que com bastante interesse.
Eu acredito que serei advogado em uma causa sobre redesignação sexual, por assim dizer, de duas trans*.
Seja como for, a despeito disso, por este texto, fiquei com a seguinte dúvida: vocês acreditam que o nome social deveria ser adotado nos documentos sem contudo ser também redesignado o “sexo”?
Espero ter me feito entender.
Parabéns pelos textos! São excelentes!!!!!!!!!
Oi Andrey, obrigada pelo comentário! Sobre sua pergunta acerca da mudança de documentos… existe o ideal e o real/tangível no que se refere ao acesso aos nossos direitos frente ao jurídico. O ideal é que nossas identidades fossem respeitadas integralmente: neste sentido, o ideal seria que, antes de tudo, existisse uma lei de identidade de gênero como vigora hoje na Argentina. Essa lei de identidade de gênero se basearia na auto identificação de gênero das pessoas, assim, se alguém quer mudar o nome e sexo no documento, não é necessário nenhuma prova médica/pericial, tampouco qualquer intervenção física/cirúrgica. Contudo, aqui no Brasil a realidade não é essa… pelo contrário, temos extrema dificuldade de termos nossas identidades legitimadas, já que muitas vezes os juízes negam os processos . Diante disso, muitas vezes utilizamos de estratégias para conseguirmos mudar tão somente o nome, deixando a categoria sexo inalterada. Isso pq é mais “fácil” mudar o nome do que o sexo nos documentos. Essa é uma decisão pessoal, mas acredito que a grande maioria das pessoas trans* iria achar “menos pior” ter ao menos o seu nome retificado do que nada, já que o que realmente pega na hora da identificação (quando é necessário apresentar documentos) é muito mais o nome do que o sexo.
por enquanto… em um futuro próximo, o novo rg trará além do nome, também o sexo em letras maiúsculas, MAS ou FEM. será muito desconfortável para transexuais, mesmo aqueles que conseguiram a mudança de nome, mas não da categoria sexo.
Boa noite Bia
Não li toda as matérias do seu blog, mas me cadastrei. Sou formada em Direito e o meu projeto da monografia foi ‘O 3º SEXO”, assunto que muito me interessou divido as dificuldades encontradas pelos “Trans”. Não dei continuidade ao assunto (embora tenha guardado toda a pesquisa) devido insegurança abordada por alguns psicólogos e também a grande dificuldade de material. Porém tudo que abordei em pré-projeto está acontecendo hoje. Agora com muito mais segurança passarei novamente a transcrever. Comprei o livro “Menino de Ouro”, assim terei mais infusão na matéria. Portanto em outra ocasião lerei seus temas.
Abraço
Oi Bia. Me tocou muito quando você disse: ”…que pressupõe que pessoas transgêneras não podem consentir sobre suas próprias escolhas: elas precisariam sempre serem faladas por profissionais psi que desvelariam sua verdade”. Acho que seria legal colocar um link do meu Guest-post, lembra? Pois, é exatamente isso que eu vivi: Fui obrigada a ter um Laudo, para acessar minha cidadania, e xs Psis ainda ditaram que elxs só fariam o laudo, para meu NOME, não gênero. Ora, se eu quiser limpar a bunda com o laudo, é decisão minha. Como podem ELXS ditarem para o quê eu o usarei!? Elxs se aproveitam da vulnerabilidade para impor seus devaneios draconianos, pois sabem que a extrema maioria das pessoas precisa se humilhar para satisfaze-los.