A sua representatividade está à serviço de quem? - Uma TRANSvisão sobre o debate dos pré-candidatos a vereador Luiza Coppieters e Thammy Miranda
Texto de Magô Tonhon
Os Jornalistas Livres, rede de jornalismo independente, iniciou em São Paulo, no Teatro Studio Heleny Guariba situado na Praça Roosevelt, um ciclo de debates com alguns pré-candidatos a vereador(a) que pretendem disputar uma vaga na Câmara Municipal da cidade. A proposta é contrapor pré-candidatos cuja agenda são distintas e a partir do debate conscientizar a população sobre a importância de se debruçar sobre os projetos, ideias e planos de cada pré-candidatura.
No dia 03 de agosto foi o dia de Luiza Coppieters, pré-candidata pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) versus Thammy Miranda, pré-candidato pelo PP (Partido Progressista). Os dois são representantes da população LGBT, mais especificamente a população T (Travestis, transexuais e transgêneros) uma vez que são, os dois, pessoas transexuais.
A ideia é por si só necessária e inovadora no sentido de que não há visibilidade de debates focados em candidaturas para cargos do Poder Legislativo, incluindo as de vereadores(as) para as Câmaras Municipais, deputados(as) estaduais para as Assembleias Legislativas e deputados(as) federais e senadores(as) para o Congresso Nacional. O Poder Legislativo é responsável por legislar, ou seja, transformar em leis as demandas da sociedade e cobrar a aplicação dessas medidas além de fiscalizar permanentemente a aplicação do recursos públicos por parte dos Governos e demais órgãos das administrações correlatas, é de extrema relevância que candidatos(as) possam então debater como pretendem empreender tais funções e que matérias de lei tem a intenção de elaborar.
O debate do dia 03 de agosto foi importante por ser os dois, pré-candidatos pertencentes à população T da sigla LGBT formada por pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Quando se fala em população T, temos em mente uma população específica cujo a questão da identidade de gênero é central. Trata-se de pessoas transexuais (homens trans, mulheres transexuais e pessoas trans não-binárias) e travestis sobre o qual recaem altos índices de assassinato motivados por ódio, a transfobia estrutural e institucional. Tal aspecto institucional pode ser visto pela constatação de que o Estado, não reconhece as identidades específicas da pré-candidata Luiza Coppieters nem do pré-candidato Thammy Miranda. Embora nos últimos dias de julho tenha ganhado notoriedade na mídia o caso da candidata a vereadora Valeria Rodrigues pelo PCdoB de São Paulo (Partido Comunista do Brasil) por ser a primeira mulher transexual a conseguir oficializar sua candidatura à Câmara Municipal de São Paulo dentro da cota de 30% de candidaturas femininas estabelecida pela legislação eleitoral, para a pré-candidata Luiza Coppieters não será assim. E o que as separa é exatamente a falta de uma legislação que trate acerca do tema: a possibilidade de mulheres transexuais e travestis lançarem candidaturas por meio das cotas femininas de cada partido. Tal ausência de letra de lei que o valha é responsável pela judicialização do tema. Ou seja, para que Valéria pudesse disputar a Câmara Municipal pelo PCdoB, foi preciso que ela entrasse na Justiça com um processo solicitando tal possibilidade.
A realidade da população T para o reconhecimento de suas identidades de gênero não-normativas em seus documentos pessoais goza de ausência legislativa semelhante. A pessoa travesti, transexual ou transgênero que quiser ter reconhecida sua identidade por meio da correção dos documentos pessoais ainda precisa submeter a matéria à análise da justiça por meio de um processo que inclui a comprovação de laudos psicológicos e psiquiátricos atestando suas identidades como legítimas além de terapia hormonal compulsória e em doses universais para todo tipo de pessoas T. Tais ações na justiça acabam por estar à mercê da sorte no que diz respeito às determinações dos diferentes juízes que compõem o Judiciário e que podem ou não conceder à pessoa T o reconhecimento de suas identidades mediante solicitações das mais aleatórias e impensáveis. Há casos de juízes que entendem a identidade de gênero como exclusivamente de acordo com a norma cisgênera (‘os homens tem pênis e as mulheres tem vagina’) indeferindo muitos pedidos de retificação de documento alegando que a pessoa T não realizou a cirurgia de redesenho genital, por exemplo. Tanto Luiza Coppieters quanto Thammy Miranda ainda não corrigiram seus documentos pessoais.
Sobre a população T recaem uma série de precariedades sociais que contribuem para uma situação de vulnerabilidade. Há um tabu envolvendo o tema das identidades de gênero não-normativas em diferentes esferas sociais. Vínculos sociais são fragilizados no âmbito familiar, escolar, religioso e do trabalho, conferindo isolamento e marginalização para estas pessoas. A questão do acesso a algumas destas instituições sociais onde se possa desfrutar de aceitação e oportunidades parece imprescindível para definir um futuro menos precário. Outras questões também parecem ser relevantes como as questões de raça/etnia e de classe social uma vez que nossa sociedade além de ser marcada pela transfobia estrutural também se configura racista e elitista. Sendo Luiza e Thammy pessoas trans, é importante ouvir que tipo de leis e estratégias pensam em elaborar para amenizar tal situação de precariedade.
O início foi marcado por uma dificuldade, sobretudo do candidato Thammy em obedecer as normas relativas ao tempo de resposta dentro da cronometragem estabelecida pelos jornalistas para que o debate pudesse acontecer de forma justa para ambas as partes. Não esperava o tempo correto para responder e quase não utilizou por completo seu tempo de resposta às questões levantadas pela pré-candidata Luiza. Quase sempre respondia de maneira demasiadamente sucinta sob o pretexto de que ‘seu jeito era fazendo e não falando’.
Thammy pareceu não se importar com as regras pré-estabelecidas e chegou a propor que o debate se transformasse num ‘bate papo’. Mais que um caráter arrojado e informal, a impressão foi a de que ele possui dificuldades para aceitar os moldes democráticos diferentemente de Luiza cujo o único problema era o de que dois minutos de resposta pareciam pouco demais para suas elaborações. E de fato, eram.
Uma das coisas mais repetidas pelo pré-candidato foi a necessidade de ‘unir’ a população LGBT para a possibilidade da composição do que chamou de ‘bancada LGBT’ nos espaços legislativos. Em contrapartida, não conseguiu explicar o fato de ter se unido à um partido cujo a origem está ligada à ditadura militar, uma vez que o Partido Progressista é oriundo do Arena - a agremiação de direita que deu suporte ao regime militar brasileiro. Também não citou o fato do PP ser um dos partidos mais citados na Operação Lava-Jato.
Havia duas diferenças mais evidentes entre os dois: a origem de suas candidaturas. A de Thammy parece ter surgido pela sua popularidade enquanto celebridade e a de Luiza por ter histórico de diálogo com as militâncias de esquerda. Ao mesmo tempo que repetia a necessidade de ‘união’, Thammy centralizava suas propostas nele mesmo e em sua palavra. Raramente utilizou o pronome nós. Autocentrado, parecia reforçar o caráter pejorativo que as mídias hegemônicas tanto se esforçam para imprimir na política institucional ao afirmar que ‘não era político’ mas que ‘seguiria apenas suas próprias convicções’ nem que para tal fosse obrigado a votar contra o próprio partido.
Atribuiu a iniciativa de sua candidatura à um convite feito pelo PP para compor um núcleo de diversidade e à alguns nomes como o do deputado federal pelo PP-SP Guilherme Mussi além do deputado estadual também eleito pelo PP Delegado Olim. Já Luiza atribuiu sua candidatura não apenas a si mesma e mediante uma iniciativa individual mas à um momento político de fortalecimento dos movimentos feministas e LGBT na disputa por direitos e deixou claro que conta com a ajuda de amigos da militância para sobreviver.
O pré-candidato pareceu não ter feito nenhum tipo de ‘dever de casa’ acerca da própria estrutura política a qual pretende fazer parte. Eram evidentes o desconhecimento da pluralidade de opiniões, posições partidárias e políticas que compõem a população LGBT além de uma tendência individualizante como se as políticas dependessem exclusivamente de uma vontade individual. Ao levantar 4 propostas efetivas para a população LGBT respondeu: “eu quero cotas às pessoas transexuais pois não é que sejam incapazes mas não estudam por não ter seus nomes sociais respeitados nas escolas”. Centrou seu discurso na importância da educação mas demonstrou que seu entendimento sobre o tema é apenas enquanto a institucionalizada na figura da escola. Sobre como pretende implementar as propostas que tem, Thammy respondeu: “Pra ser sincero, como vou fazer não faço a mínima ideia, eu só sei que vou fazer!”.
Quando questionados sobre como está sendo as articulações das pré-candidaturas com a população T no sentido de levantar demandas dos movimentos sociais, Thammy mais uma vez levou para a esfera individual dizendo que ‘milhares’ de reuniões foram marcadas especificamente com os homens trans e ‘nenhum compareceu’. Disse estar com dificuldade de dialogar com esta população. Luiza focou mais na atividade enquanto militante transexual que já desempenha e pareceu estar mais próxima das questões relativas a esta população. A diferença ali parecia estar pautada pelos privilégios que dispunham os dois pré-candidatos. Thammy, empresário do mercado imobiliário, parece não ter ido além de sua zona de conforto e não demonstrou intimidade em demandas específicas para além de suas ‘evidências’. Em um momento, disse que ‘estava sobrando empregos’ em um determinado Centro de Cidadania LGBT de São Paulo.
Luiza defendeu o transporte gratuito e o enfrentamento dos cartéis e contratos ‘eternos’ com empresas de ônibus enquanto Thammy propôs a economia da iluminação pública por meio da implantação de lâmpadas de led em troca de investimento no transporte coletivo por tarifas ‘mais acessíveis’ à população. Sobre a questão do machismo e da misoginia Thammy se complicou quando disse que ‘as mães de antigamente criaram filhos machistas‘ causando grande reação do público presente. Já Luiza ateve-se ao caráter estrutural e de desigualdade que o gênero pode designar na sociedade focando no papel crucial que o impedimento do debate de gênero pode ter na manutenção destas estruturas.
Ao falar da população em situação de rua na cidade de São Paulo, Thammy demonstrou encarar a questão como se fosse de foro pessoal e íntimo, indicando que as pessoas que “moram” na rua lá estão por não querer ir para suas casas reforçando a suposta ‘preferência’ que estas pessoas tem em ficar na rua por não gostarem dos abrigos oferecidos pela prefeitura. Luiza disse estar ‘perplexa’.
Um outro ponto forte do debate foi quando perguntaram para Thammy e Luiza quem achavam ser ‘o maior inimigo político da população LGBT atualmente’. Luiza buscou despersonalizar a questão e em sua resposta desmonta o mito da existência de uma pessoa ou uma instituição enquanto inimiga e se ateve às estruturas que a partir do sistema econômico excludente constitui pessoas às margens. “Precisamos desafiar os poderes econômicos! Temos que desmascarar o discurso ideológico que apaga as contradições da sociedade, que culpabiliza as pessoas mais vulneráveis e transforma as pessoas que sofrem violência nas únicas responsáveis pelas violências que sofrem” disse.
Ainda que se pretenda uma opção possível de representação política para a população T, Thammy parece não ir além de sua própria identidade trans para justificar sua legitimidade. Critica o que chama de ‘politicagem’ não soube debater suas ideias com propriedade, focou no ‘sou de fazer não sou de falar’, além de ter demonstrado dificuldade de dialogar com a sociedade civil organizada e as militâncias trans/travesti.
Por outro lado vimos uma Luiza Coppieters combativa, com argumentos plausíveis e aberta ao diálogo, parecendo compreender a pluralidade de uma população T que está longe de ser universal e unânime. Os tempos de resposta foram pouco para ela.
No debate, Luiza respondeu uma questão feita por Thammy levantando outras. Thammy então indagou: “Você vai me responder com outras perguntas?” e Luiza, filósofa eternizou: “Qual o problema? Eu sou socrática!”
Ao responder quem seria hoje o ‘maior inimigo político da população LGBT’, Thammy Miranda preferiu responder: “Os maiores inimigos da população LGBT somos nós mesmos”, arrancando reações mil por parte do público. A seguir por sua lógica individual e delirante que a partir de seus achismos e por meio de sua própria ótica e lugar de privilégio enxerga a sociedade à sua volta, Thammy Miranda pré-candidato pelo PP parece ter razão quando diz que o maior inimigo político da população LGBT pode ser ele mesmo.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade de sua autora e não expressam necessariamente a opinião do [SSEX BBOX].
★ Magô Tonhon é mulher transexual, bissexual, arquiteta e urbanista mestranda em Cultura, Educação e Saúde pela Universidade de São Paulo (USP); pesquisa gênero e sexualidade e é criadora do canal Voz Trans* no Youtube, por meio do qual discute questões relacionadas à população LGBT. É produtora do projeto [SSEX BBOX], trabalhou na 1a Conferência Internacional [SSEX BBOX] & Mix Brasil, e desenvolve ações pontuais para o projeto.