A “transracialidade” é uma falácia: entenda a partir dos PLs de Fernanda Garcia e da emenda de Dylan Dantas
Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
O vereador Dylan Dantas (PSC) de Sorocaba buscou criar uma emenda a respeito de uma definição de “transnegros” para obstaculizar PLs que tratavam de cotas raciais desta cidade. Tratam-se de PLs de autoria da vereadora Fernanda Garcia (PSOL) que determinam a presença de artistas, atores e atrizes negros nas publicidades do Poder Executivo e o estabelecimento de cotas étnico-raciais para o ingresso no serviço público municipal.
Dantas em mensagem em rede social diz que quis mostrar a “fragilidade dos PLs” ao incluir “transnegros (pessoas de qualquer etnia que se consideram negras)”. O que Dantas quis fazer aqui, além de obstaculizar ações afirmativas para a população negra, é tentar antagonizar, de forma agora implícita ou sutil, as questões da população transgênera com a da população negra.
O vereador se sustenta em discurso que constrói, mesmo sutilmente, uma simetria entre o ato de burlar as políticas de cotas raciais (“uma pessoa branca que se sente negra é transnegra e deveria ser reconhecida como negra”) e autodeterminação de gênero (“uma mulher transexual é um homem que se sente mulher e deve ser reconhecida como mulher”).
O raciocínio parece simples: se temos que respeitar a autodeterminação de gênero de pessoas trans devemos respeitar a autodeterminação de raça de “pessoas transraciais”; ora, se pessoas brancas passam a ser reconhecidas como negras da mesma forma com que “homens são reconhecidos como mulheres” os PLs de cotas são frágeis pois qualquer pessoa branca poderia ser incluída na cota para pessoas negras, o que nos suscita a concluir que não deveríamos defender nem a autodeterminação de gênero nem as políticas de ações afirmativas para a população negra. É assim tão simples? É evidente que não.
Por diversas razões, essa simetria é falsa, além de transfóbica e racista. Primeiro, mulheres transexuais e travestis não são “homens que se sentem mulher” da mesma forma com que pessoas “transraciais” seriam “brancas que se sentem negras”. A autodeterminação identitária de pessoas transexuais, travestis e transgêneras não se fundamenta sobre algo que alguém supostamente “é” em oposição a algo que então ela “sente”. A autodeterminação identitária do gênero de pessoas trans é um princípio pelo qual estabelecemos o que de fato essa pessoa seja: uma mulher transexual “é” uma mulher porque “é” ou “sente-se” como mulher transexual.
Em segundo lugar, qualquer proposta de estabelecimento de uma simetria entre o movimento transgênero e o alegado “movimento transracial” revela-se falacioso, pois baseia-se unicamente na comparação formal entre autodeterminação de gênero e raça. Ao contrário, uma análise um pouco mais atenta a respeito da materialidade histórica dos movimentos transgênero e negro é capaz de denunciar a falácia da construção puramente retórica (e formal) da “transracialidade”.
É preciso reconhecer que nem ao menos existe “movimento transracial” de fato, pois trata-se apenas da invenção discursiva de posicionamentos reacionários que buscam obstaculizar políticas públicas para a população negra. A “transracialidade” não passa, neste sentido, de uma arma retórica dos posicionamentos que visam desarticular e enfraquecer a luta de pessoas trans e negras. Como bem pontuou Fernanda Garcia, a definição de “transnegro” proposta pelo deputado é uma invenção destinada para fraudar o combate ao racismo.
Se a analogia entre autodeterminação de gênero e “transracialidade” realmente fosse verdadeira teríamos que encontrar bases materiais (as lutas efetivas contra as discriminações e vulnerabilidades que os movimentos de luta historicamente traçam) que sustentassem a analogia para além do mero raciocínio formal ou abstrato.
No entanto, a analogia limita-se ao mero campo da abstração: não há realmente nenhum “movimento transracial” pois não existem pessoas transraciais organizadas em torno de uma luta comum por reconhecimento; não existe luta de pessoas “transraciais” pois não existem discriminações e vulnerabilidades que este suposto grupo de pessoas teria que lutar contra, para início de conversa.
Pessoas “transraciais” não enfrentam vulnerabilidades sociais que decorreriam de sua suposta identidade “transracial” da mesma forma como acontece com pessoas trans e negras: não existe “transracialidadefobia”, pois não existem estruturas de poder que marginalizam essas pessoas com base no seu status de “transracial”, ao contrário do que efetivamente ocorre no caso de pessoas trans e negras.
Isso nos revela que a analogia entre transgeneridade e “transracialidade” é puramente um exercício de raciocínio abstrato (mal-intencionado, baseado em má-fé) que visa produzir efeitos de sentido para desqualificar o movimento trans e negro.
As políticas afirmativas para a população negra não são frágeis porque lutamos pela autodeterminação de gênero de pessoas trans. É um equívoco acreditar que essas políticas se tornariam frágeis a partir do momento em que defendemos a autodeterminação de gênero. As políticas de cotas não são frágeis porque respeitamos a autodeterminação de gênero e raça – pois existem mecanismos institucionais que são efetivamente capazes de abordar as fraudes. As políticas de cotas não são frágeis, elas são antes de tudo necessárias.
É preciso ressaltar a importância da intersecionalidade aqui, pois pessoas trans negras existem. É preciso pontuar também essas questões para barrarmos as práticas reacionárias que buscam desarticular e até mesmo antagonizar a luta do movimento trans e negro. “Transnegros”, caro deputado Dylan, não pode significar outra coisa senão pessoas trans negras.
Imagem: vereadora Fernanda Garcia.