A Travestilidade como resistência à lógica diagnóstica
A discussão sobre falocentrismo/falogocentrismo por vezes desemboca na questão: como seria possível escapar à lógica fálica? Admitindo que somos aculturadas/os na e pela lógica fálica – há falo em tudo, somos doutrinadas/os a pensar falogocentricamente, nossas subjetividades e realidades emergem a partir desta lei fálica – e com isso, como podemos resistir? Como a lógica não fálica pode existir na medida em que a própria lógica ou toda lógica seria fálica? O que é o não fálico? Há a estrutura de poder que é fálica, há o pai, a lei, a razão, a ciência, a biologia, o todo e a transparência da linguagem.
Não proponho responder essas perguntas em abstrato e de forma universal (olha aí outra armadilha falogocêntrica). O que me vem agora em mente é pensar sobre travestilidade e a lógica diagnóstica. Aqui a discussão sobre pensar lógicas ou subjetividades não fálicas ganha uma nuance específica. Resistências travestis, devir da travestilidade, quebrando a máquina fálica de produção de diagnósticos de disforias de gênero.
Laudo diagnóstico é sinônimo de falo. Seu significante mestre: “CID 10 F 64.0 – Transexualismo”. A figura edípica do pai é ocupada pelos psiquiatras, médicos, assistentes sociais, endocrinologistas, psicólogos, juízes, advogados e toda uma miríade de burocratas do gênero. A travestilidade é o resto deste sistema significante patológico-judicial. É através deste resto que há resistência. A travestilidade nos aponta para o sem sentido e o não todo do gênero. O que laudo não suporta na sua escrita, mas que está subsumida no real.
Aqui vale uma ressalva. Penso sim a partir de um constatação de uma diferença da travestilidade em relação à transexualidade. Mas cabe pontuar bem quais diferenças (e que natureza de diferença) eu procuro acionar quando estou me referindo a estes termos. Não se trata, em absoluto, de pensar a diferença nos mesmos moldes do discurso patológico/diagnóstico tais como “travesti é aquela que não busca cirurgia, transexual é aquela que busca” ou “transexual tem um gênero unívoco e travesti tem um gênero ambíguo”, etc. Nada disso. Estas formas de pensamento, por mais que procurem um traço distintivo, apagam justamente a diferença que supostamente querem evidenciar. É a mesma lógica fálica, e a lógica fálica não dá conta da diferença pela diferença. A diferença aqui é subsumida ao Mesmo, ao idêntico.
A diferença que aponta (ou que eu quero apontar)a travestilidade é de outra ordem. Uma diferença que aponta para certa experiência universal do gênero (em sua particularidade específica). A lógica diagnóstica ou cissexista pensa a travestilidade como particular afastado do universal (todo) do gênero. O todo interditanto um resto, produzindo abjeção.
A transexualidade foi colonizada por estes dispositivos diagnósticos que constroem essa coerência do gênero desviante. Neste sentido, a transexualidade foi historicamente construída através da lei do todo do gênero (fálica), de sua coerência cisgênera. Domesticação dos gênero inconformes, produção de normas e anormalidades. Proponho certo caminho inverso ao apontar uma universalidade da experiência do gênero que é travesti (enquanto devir).
A lógica falogocêntrica circunscreve a diferença da travesti em sua posição de Outra em relação ao universal do gênero (a própria cisgeneridade) de forma com que ela ocupe uma posição de interdito completo. Uma lógica travesti vai escapar deste movimento e subverter esta hierarquia e contestar esta interdição. Questionar a centralidade do próprio gênero no sujeito, interrogando seus pressupostos, suas lógicas, seus binarismos, seus utilitarismos que se impõe aos corpos dóceis, numa relação com o biopoder.
A diferença que aponto entre travestilidade e transexualidade não é essencial ou fixa. Aliás, proponho justamente liberar a travesti do pensamento com a finalidade de descolonizar a própria transexualidade. A transexualidade precisa ser pensada fora do diagnóstico e, para isso, a travestilidade se apresenta como uma ferramenta precisa. Travestilidade tem muito a ver com transexualidade neste sentido, ela é uma ferramenta de luta, uma máquina de guerra.
Não é possível fazer um conceito de travesti, não é possível fazer uma entrada no dicionário e circunscrever os sentidos sobre travesti como uma nosologia. Por isso não é possível fazer um laudo com diagnóstico de travestilidade. A travestilidade resiste ao laudo, não é passível de ser escrita. Travesti é o próprio devir do gênero; liberando a travesti do pensamento liberamos o gênero da patologia, do sistema fálico e cissexista. Pane no cistema.
É bastante evidente que quando conseguimos colocar a travesti nos trâmites de acesso à saúde integral, nos atendimentos específicos à saúde transgênera como hormonioterapia e cirurgias, quando conseguimos colocar a travesti na lei de nome social, na lei de identidade de gênero, na lei de uso do banheiro, na lei de acesso à educação, nas cotas, nas escolas, nos empregos, na lei de respeito à identidade de gênero, nas leis de direitos humanos, seja lei onde for e que for; em suma, quando conseguimos inserir a travesti na lei isso sem dúvidas significa um ganho para todas as pessoas transgêneras. Independentemente do que estas pessoas trans “forem” num sentido mais identitário. Inserir a travesti na Lei é revolucionário pois a lei, sendo fálica, é subvertida pela lógica não fálica da travestilidade.
Numa perspectiva transfeminista, não basta inserir “transexual” no discurso. É preciso pensar a travesti no pensamento e na luta política. Descolonizar a transexualidade – despatologizar, desburocratizar, “humanizar”, estabelecer alteridade - é liberar a travesti no e pelo pensamento.