Afinal, mulheres trans tiveram uma socialização masculina?
Texto de Maria Clara Araújo.
O que é socialização? Qual o impacto da educação na construção dos indivíduos? O que seria, de fato, ser socializado?
Nos últimos 2 dias, inúmeras pessoas trans estão escrevendo sobre as violências de cunho transfóbico a que foram expostas a partir do uso da hashtag #minhaprimeiratransfobia. Ao ler os relatos postados no facebook, um ponto em especial me chamou bastante atenção: a grande maioria das violências sofridas se deram na infância. Desde silenciamento às violências psicológicas e/ou físicas.
Enquanto estudante de Pedagogia, logo no primeiro período, já presenciei discussões sobre os papéis de gênero e como lidar com eles e/ou refletir sobre eles em relação às crianças.
Estudando o livro “Sociologia da educação” (2004) sobre a perspectiva de Durkheim, o que me chamou mais atenção sobre a discussão que ele propôs, é vermos a educação como um processo de socialização que todo individuo, independente do gênero, passa. Porque essa socialização é de extrema importância para conseguirmos adentrar no que entendemos como sociedade e, a partir de uma visão funcionalista, onde todos possuem papéis, fazer com o que o núcleo desta sociedade continue a funcionar. Afinal, para viver, nós precisamos aprender COMO isso se dará. E nesse processo de aprendermos sobre o que somos, que lugar ocupamos e o que desempenhamos, é quando iremos aprender a ser, de fato, membros do meio em que vivemos:
“A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio moral a que a criança, particularmente, se destine” ¹
Infelizmente, eu já havia lido o termo “socialização” em discussões que tentam legitimar, de uma forma pífia, que mulheres trans e travestis receberam o que elas, feministas radicais, chamam de “socialização masculina”. Um modo estático de entender os processos que pessoas designadas homens no nascimento são submetidas.
Esse modo estático de ver o processo de construção da socialização das pessoas tendo como base supostos determinismos é o que justamente a teoria queer tenta refutar: ao conseguirmos pensar maneiras de “desestabilizar e desconstruir os termos pelos quais os sujeitos e as identidades são constituídos.” ²
É de extrema importância que possamos perceber que nossas experiências são difusas, instáveis e, principalmente, diferentes. Tentar equiparar a forma como eu fui inserida na sociedade, enquanto mulher trans e/ou travesti que se assumiu aos 13 anos, com a forma que, por exemplo, meu pai foi, legitimando isso a partir de uma epistemologia, é de uma extrema desonestidade intelectual.
Quando percebemos os relatos contidos na #minhaprimeiratransfobia conseguimos, de uma forma bem visível, perceber que as violências em relação a população trans aconteceram e acontecem, justamente, porque elas estão tentando se afastar das designações de gênero e de seus papéis, que são impostas pela cis-normatividade, enquanto única forma de se viver o gênero possível.
Ou seja, se mulheres trans apanharam dos pais/na escola/da família/da sociedade, enquanto criança e/ou adolescentes, é porque o processo de uma suposta socialização masculina não estava sendo aceito. Não existia agrado e nem conformidade com aquele tipo de educação. De tentar construir essas mulheres enquanto homens socialmente.
E conseguirmos compreender essa relação é o ponto chave para também reconhecermos o que são gêneros inteligíveis nas palavras de Butler (1990): “gêneros inteligíveis são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade”. Tentando deixar mais didático, a relação entre coerência e continuidade “não são características lógicas ou analíticas da condição da pessoa, mas, ao contrário, normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas”.
Ou seja, enquanto mulher trans que não se enquadra na dicotomia mulher/vagina que foi posta como legítima a partir de quando é elegida como normativa, meu gênero não é lido como inteligível. Afinal, ele não se conforma “às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas”, como fundamenta Butler de forma bem incisiva em “Gender Trouble”.
E em que essa não inteligibilidade resulta? Exclusão.
90% das travestis e mulheres trans estão na prostituição, segundo a ANTRA. Assim, temos consciência que, ao irmos contra o status quo, não teremos nossa inserção completa e efetiva na sociedade. Afinal, “socializar-se é aprender a ser membro da sociedade, e aprender a ser membro da sociedade é aprender o seu devido lugar nela”. Diante disso podemos nos questionar: qual o lugar que a sociedade efetivamente concede às travestis? Poderíamos considerar este espaço destinado às travestis como decorrente de um processo de socialização ou de efetiva exclusão da sociedade?
Dessa forma, precisamos enxergar a potencialidade na “ideia de que o sujeito não é uma entidade preexistente, essencial” e que nossas identidades são construídas, tendo em vista que “[elas] podem ser reconstruídas sob formas que desafiem e subvertam as estruturas de poder existentes”, como aponta Salih (2013).
BIBLIOGRAFIA:
BUTLER, Judith. Gender Trouble. 1990
¹ DURKHEIM, E. Educação e Sociologia.6 Ed. Ed. Melhoramentos. São Paulo. 1985
² SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução de Guacira Lopes Louro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013
Ótimo texto! 🙂
Será que poderia fazer um sobre o significado de o que “é ser mulher” sob um ponto de vista do transfeminismo e sobre boatos de que a agenda queer tem relação com pedofilia e zoofilia? Vejo sempre essas questões por aí, queria alguém entendida para falar sobre.
Olá, Maria Clara! Eu ainda não me firmei em nenhuma vertente feminista (e até acho que isso estimula uma certa segregação); por enquanto estou apenas estudando e me questionando sobre os diversos argumentos de ambos os lados.
Enfim, eu tenho uma pergunta que eu gostaria que você me esclarecesse. Na verdade, é algo que eu pensei e gostaria que você comentasse sobre (ao me responder). Bom, eu penso que as trans sofrem sim opressão, mas pelo fato de serem trans (e isso envolver um processo pouco aceito pela sociedade) e não pelo fato de serem mulheres. O que você pensa sobre? Poderia me clarear?
Obrigada!
Oi Thaynara. A Maria Clara falou que eu poderia te responder, já que ela prefere responder perguntas pessoalmente.
Então, se você concorda que pessoas trans sofrem opressão por serem trans, isto se dá na medida em que a sociedade nega o estatuto de verdade às nossas identidades de mulheres, homens ou que fuja deste binário. Ou seja, ser trans está diretamente implicado no fato de eu ser mulher (ou homem, no caso dos homens trans) ou algo que fuja do binário. Pessoas trans não são “menos” homens ou mulheres por serem trans. É justamente a transfobia que sustenta a ideia de que mulheres trans não são mulheres de verdade, assim como no caso dos homens trans. Então a transfobia funciona necessariamente pelo fato de mulheres trans serem mulheres – e terem suas identidades deslegitimadas socialmente. A base da transfobia se dá porque coloca a identidade assumida de pessoas trans como doente, louca ou falsa.
Olá, Bea! Muito obrigada pela resposta! Seu comentário me gerou uma nova indagação: eu vi no movimento radical (não estou afirmando que sou rad, afinal como eu disse acima, acho que essas divisões até segregam o movimento) que o conceito de mulher é todo ser XX que foi socializado para cumprir papeis denominados femininos na sociedade. Excluem as trans do feminismo justamente por considerarem não terem sofrido essa socialização. Qual sua opinião sobre? E qual seu conceito do que seria “ser mulher”? Novamente, muito agradecida pela atenção e consideração ao responder. Beijos
Minha opinião é que esta exclusão se dá através de um discurso transfóbico. Tentar excluir pessoas trans da categoria de homens e mulheres só se dá, como eu já te disse, através de um discurso transfóbico. Eu posso objetar, acerca deste argumento de “socialização feminina” que a socialização difere profundamente entre os indivíduos - sejam cis e trans - e de que existe uma sistematicidade na forma como esta socialização exerce inúmeras sanções sobre pessoas trans. E esta sistematicidade se de de forma estrutural: é necessário que pessoas trans sejam excluídas dos regimes de produção de verdade sobre o sexo para que a verdade sobre o sexo se estabeleça. Pessoas trans podem não ter sofrido a mesma socialização de pessoas cis e justamente por isso existe o transfeminismo: para falarmos acerca de nossas especificidades. Existem muitas questões que afetam mais diretamente pessoas trans em nossa sociedade do que pessoas cis, no que tange acesso a saúde, educação e aceitação familiar. E nossas especificidades são diversas: assim como não existe mulher universal, não existe mulher trans universal. Estabelecer que qualquer forma socialização é homogênea é cair em reducionismos. Você pode ver minha opinião mais detalhada sobre nos meus textos, em especial: http://transfeminismo.com/afinando-a-nocao-de-socializacao-e-refutando-algumas-distorcoes/ e http://transfeminismo.com/retrospectiva-de-textos-publicados-parte-2/
Há alguns dias entrei em discussão com uma feminista que não aceitava mulheres trans no movimento, e pela primeira vez eu tive contato com esse argumento da socialização masculina. Com a bagagem cultural escassa de mulher cis que eu tenho eu consegui argumentar com ela mas percebi que me faltava um argumento mais embasado, por isso quando compartilharam esse texto na minha timeline eu achei que fosse o que eu precisava.
O problema é que eu não entendi nada, e aqui vai minha crítica (construtiva por favor). Eu estou no meio acadêmico, no meio do ano eu terei superior completo, não sou muito estudiosa nem nada mas o que eu quero dizer com isso é que infelizmente eu tenho já tenho um nível de conhecimento acadêmico maior que grande parte das pessoas que precisam da informação que vocês querem passar. Se uma pessoa como eu teve que ler diversas vezes, procurar o significado de várias palavras e ainda assim sair sem ter entendido a ideia geral do texto, eu acho que pessoas que não tiveram tanto acesso à educação quanto eu não iriam entender também.
Eu acho que o conteúdo que vocês têm a passar é extremamente importante e seria maravilhoso que pessoas com conhecimento acadêmico como o meu ou inferior tivessem acesso à eles. Então longe de estar reclamando nem nada disso, eu acho o trabalho de vocês essencial pra formação de uma sociedade mais justa e igualitária, eu só deixo aqui minha sugestão como leitora do texto e espero que seja útil. Obrigada :3