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Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans* (Parte II de II) ensaio 1a 02 Full view

Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans* (Parte II de II)

Por viviane v.

[link para a Parte I]

dead prez – ‘Propaganda’ http://tny.gs/13JUG3m
dead prez – ‘Walk like a warrior’ http://tny.gs/13JSSrc
dead prez – ‘Hell yeah’ http://tny.gs/13JXXzD
Caetano Veloso – ‘Alegria, alegria’ http://tny.gs/13JY26A
Perota Chingo – ‘Soy el verbo’ http://tny.gs/13JX7TK

“Deve-se lutar pela porra do poder”

“Gotta struggle for the motherfucking power”

Após o almoço, sentamos para um café e um providencial reasoning. Chegamos ao GT alguns minutos após o início, o que me faz perder a apresentação que mais me interessava. A segunda apresentação se inicia, e é sobre “um transgênero”, pessoa descrita como alguém nascida do “sexo feminino” (sic) e identificada com o gênero masculino. Conforme Kate (uso pseudônimo, novamente) descreve a vida de seu ‘objeto’, insistentemente utiliza ‘ela’ para se referir a ele (objeto). Relevo como quem se acostuma a relevar instâncias cissexistas para não ser chamada de ‘impaciente’ e problemática [1], e também por imaginar que Kate se refere a seu ‘objeto’ como ‘ela’ por estar tratando de algum momento ‘gênero conforme’ de sua vida, como a infância. Quando Kate insiste demais em utilizar ‘ela’, levanto minha mão e pergunto se se trataria de ‘ele’ ou ‘ela’. Kate me responde+repete que ela nasceu do ‘sexo feminino’, e eu especulo se Kate teria feito, simplesmente, o mais óbvio: perguntado a seu ‘objeto’ que gêneros, se algum+ns, ele prefere que se utilizem para ele. Algumas pessoas que participam do GT acreditam que é melhor esperar a apresentação de Kate se encerrar para que este debate seja feito posteriormente, apesar de Kate haver adiantado que teria de se retirar após sua apresentação. Kate segue dizendo ‘ela’ e — já nem presto atenção — talvez tenha dito coisas como ‘ela se relaciona com outras mulheres’ e ‘sexo feminino’.

Ao final das demais apresentações, e após algumas discussões interessantes, penso em Audre Lorde e em sua proposição de que “nosso silêncio não vai nos proteger”. Levanto a mão e problematizo o discurso de que discussões tenham seu lugar e tons cartesianamente definidos (mesmo quando incômodos significativos possam estar ocorrendo), a universidade como espaço eurocêntrico e forjado nos projetos coloniais, e a apresentação de Kate como emblemática da colonização das identidades trans* no meio acadêmico, onde “aquilo que se constitui como teoria válida é ainda frequentemente limitado às páginas em branco e preto de periódicos […] completamente dominados por pessoas cis que ou mal ouviram falar de nós ou teorizam contra nós de maneiras incompetentes” (CROSS, 2010, tradução minha – ver artigo apresentado no Seminário). Resolvo pensar que o ‘objeto’ de Kate talvez esteja desempregado ou subempregado enquanto poderia estar teorizando autoetnograficamente sobre sua própria vida – talvez no lugar de Kate.

“É uma luta diária, nós todas precisamos dar o truque
Essa é a forma de sobrevivermos”

“It’s a daily struggle, we all gotta hustle
This is the way we survive”

Nós, pessoas trans*, não precisamos de vocês para nos dizerem que ‘contribuímos para nossa própria patologização’: nós vemos isso (com profunda tristeza, aliás, e esperaríamos um pouco mais de consideração sua em relação a este sentimento), e vamos tentando des+re+construir nossas existências vilipendiadas por pessoas que, ‘como vocês’ (este olhar é intersecional e sabe que neste ‘vocês’ há supremacias branca, hetero, europeia, católico-cristã, etc), nasceram com seus genitais definidos como ‘saudáveis’ e se veem alinhadas ao gênero que dominantemente se designa a eles. Posso supor, através da escuta de algumas queridas conversas, que pessoas negras+racializadas tampouco precisem escutar que o racismo se manifesta de formas tão dolorosas entre suas próprias pessoas irmãs, sendo bastante possível que já tenham experiências pessoais fartas de internalização e reprodução de discursos racistas.

Quem precisa, afinal, tecer a linha discursiva que apague a associação histórica com a supremacia branca e cisgênera em si para se promover como a pessoa salvadora branca ou cisgênera que fale pelos grupos intersecionalmente marginais? Quem precisa, afinal, fazer a leitura mais trendy das teorias contemporâneas para rechear seus lattes de conteúdo exotificante apresentado como etnografia? Quem tem o privilégio, afinal, de demandar paciência das pessoas não brancas e não cisgêneras porque ‘o melhor possível está sendo feito’, e de desejar trabalhar somente com ‘pessoas legais’ (leio ‘acríticas’ e ‘silenciosas’ em caixa alta) em seus projetos?

Quem precisa, finalmente, reconhecer seus privilégios e desenvolver a empatia com aquelas existências que já estão fartas de vivenciar seus problemas e que têm dificuldades de encontrar ferramentas para que elas próprias possam se empoderar e re+pensar suas formas de resistência?

Algo cheira mal nos trópicos, e há ciscos nos caminhos rumo às justiças sociais inegociáveis e urgentes. Precisamos des+re+construir estes trópicos e caminhos juntas, decidindo-nos constantemente a avaliar criticamente se estamos cagando fedido ou adubando flores.

A seguir, meu cu.

. . .

Nota.

[1]- Ao levantar questionamentos críticos em determinado projeto acadêmico relacionado a questões trans*, foi-me dito por Alice (pseudônimo) que eu estaria tentando me ‘afirmar como mulher’ através destes questionamentos. Pareceu-me estranha tal afirmação, já que o comportamento normativo para uma mulher é o silêncio e a delicadeza, e não o uso incisivo de uma voz trans* que, como anotado, é dominantemente vista como ‘masculina’.

* * *

“Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou…
Por que não, por que não…”

Foto: Patrícia Martins

“En todo lo que tu acostumbras soy contradicción
creo que eso es lo que a ti te llama
[…]
Lo que tienes me hace falta
y lo que tengo te hace ser más completa”

* * *

“Nós nos vemos umas às outras com grande amor e um grandioso entendimento. E tentamos expandir tudo isto à população negra em geral, e, também, a pessoas – pessoas oprimidas por todo o planeta. E penso que nós diferimos de alguns outros grupos simplesmente porque nós entendemos o cistema melhor que a maioria dos grupos entende o cistema. E a partir desta constatação, nós temos a intenção de formar uma forte base política baseada na comunidade com a única força que nós temos, e esta é a força de uma energia potencialmente destrutiva se nós não obtemos liberdade.”

“Uh, we view each other with a great love and a great understanding. And that we try to expand this to the general Black population, and also, people- oppressed people all over the world. And, I think that we differ from some other groups simply because we understand the system better than most groups understand the system. And with this realization, we attempt to form a strong political base based in the community with the only strength that we have, and that’s the strength of a potentially destructive force if we don’t get freedom.” (Huey P. Newton)

Written by viviane v

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