As incoerências da “ideologia de gênero”
Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Vamos pensar um pouquinho… vocês já devem estar carecas de saber como o discurso reacionário se utiliza da expressão “ideologia de gênero” para designar o que eles acreditam ser uma ideologia maligna, que precisaria ser urgentemente criticada e combatida pois ela seria extremamente perigosa para a sociedade, uma imposição supostamente terrível. Isso porque segundo eles, gênero não é uma construção social, isto é, acreditar que gênero seria construção social faz parte da ideologia de gênero, então criticar a ideologia de gênero é o mesmo que assumir que gênero é da ordem da natureza.
Mas o pânico criado pelos conservadores em relação à ideologia de gênero na verdade depõe contra o que eles mesmos defendem. Se a ideologia de gênero não passa de uma ilusão boba e idiota daqueles que acreditam inutilmente que homens podem ser mulheres e mulheres podem ser homens e poderem então “escolher livremente suas identidades de gênero” e a verdade irrefutável é que gênero está na natureza, então ninguém precisaria mover uma palha para lutar contra essa ideologia sem pé nem cabeça.
Mas isso não parece condizer com a prática desses paladinos dos bons costumes, suas atitudes, afetações e sentimentos. Se o argumento daqueles que defendem a ordem da natureza é que o sexo é simplesmente um dado fixo e incontestável da biologia, então qualquer manifestação de medo em relação a uma ideologia de gênero (que buscaria inutilmente afirmar o contrário) é o mesmo que atestar que não se está acreditando muito nos próprios argumentos. A construção dessa necessidade de se lutar uma verdadeira batalha contra a ideologia de gênero denuncia justamente isso. Se não se lutar contra a tal ideologia de gênero, o que de fato vai acontecer? A verdade objetiva deixaria de existir? Como? Se uma verdade objetiva deixaria de existir apenas em função de uma ideologia que se supõe uma ilusão, então quer dizer que… ou essa verdade não é exatamente uma objetividade da natureza ou essa ideologia não é apenas uma negação da verdade objetiva ou uma mera ilusão. Não é possível acreditar que a ideologia de gênero seja tão potencialmente poderosa e influente ao mesmo tempo em que seria fruto de uma mera atitude ilusória e pueril de recusa de uma realidade que se supõe como objetiva.
Aqueles que mais acreditam na ideologia de gênero, nos seus “perigos”, parecem ser justamente aqueles que mais lutam contra ela. Falar acerca dos inacreditáveis “perigos” da ideologia de gênero sempre foi, desde o princípio, acreditar na própria ideologia de gênero: eis a incoerência fundante do discurso fundamentalista religioso e reacionário. Se eles realmente não acreditassem na tal ideologia de gênero que eles afirmam existir, não haveria nenhum motivo para alarde, preocupação, medo…
Afinal de contas, se estes conservadores realmente seguissem a risca a crença que eles afirmam defender, isto é, de que gênero é apenas um dado biológico de nascença, eles não teriam absolutamente nada a se preocupar com aqueles que afirmariam o contrário, pois se trataria de um conjunto de crenças tão estapafúrdio que nem ao menos mereceria qualquer atenção, para início de conversa. Acreditar que ordem da natureza precisaria ser defendida é desde o princípio um contrassenso, um paradoxo performativo. A natureza simplesmente é. Se esses dados da natureza são objetivos não há necessidade de “defendê-los” pois eles simplesmente bastam a eles mesmos, eles encerram suas evidências neles mesmos, em suas objetividades. Se você tem que “defender” uma suposta ordem natural, articular um discurso apaixonado para tanto, e acreditar que pode ser o porta-voz da natureza e ser capaz de fazê-la falar contra supostos perigos que a espreitam (como se isso fosse possível!)… pode ter certeza que você está falando sobre coisas sociais, políticas e “ideológicas” desde o princípio.
Não seria suficiente apenas deixar a natureza ser ela mesma e os dados da natureza falariam por si só, de forma simplesmente incontestável? Se os dados da natureza teriam que ser simplesmente incontestáveis, onde está o perigo da ideologia de gênero? Como essa ideologia poderia ser assim tão perigosa se supostamente o que ela defende vai contra dados da natureza e os dados da natureza teriam que ser meramente imbatíveis, verdades irrefutáveis? Ou então esses supostos dados objetivos da natureza que falariam por si só não são exatamente tão dados assim, tampouco capazes de sustentar qualquer evidência no discurso. De onde poderia vir tanto poder desta ideologia? Seria das forças das vidas daqueles que são tidos como “aberrações”?
É justamente os alegados “perigos” da ideologia de gênero que desvelam as incoerências do discurso reacionário e fundamentalista. Se eles realmente assumissem integralmente o discurso da natureza em relação ao sexo e suas pretensas verdades irrefutáveis, não veriam e nem poderiam ver nenhum perigo em tal ideologia. Se realmente acreditassem que sexo é da ordem da biologia nem ao menos teriam motivos para se afetar com o discurso daqueles que falam em “gênero”. Por isso é preciso se perguntar… por que tais reacionários se afetam profundamente com a mera possibilidade de pessoas transgêneras existirem e demandarem o reconhecimento de suas identidades?
Como ver tanto perigo no discurso daqueles que acreditam que potes de maionese podem se identificar como shampoo, não é mesmo? Como ver tanta força nos discursos daqueles que acreditam que uma nota de 2 reais poderia valer por uma de 100? Onde poderia residir tamanho perigo e força de transformação social naquilo que deveria ser tão somente um contrassenso absolutamente inofensível?
É por isso que os próprios reacionários desmentem a si próprios. Eles não parecem acreditar suficientemente no que reivindicam acreditar. Algo incontornável da ordem da “realidade” insiste em dizer que gênero não pode ser simplesmente da ordem da natureza … afinal de contas, transfeministas existem, pessoas LGBTs simplesmente existem… pessoas simplesmente reivindicam outras formas de vidas que não sejam essas moldadas na assimilação plena e sem falhas destas normas de gênero e sexualidade que eles defendem a unhas e dentes ser o único modelo de humanidade possível. Se gênero é apenas um dado prévio e imutável da natureza, como efetivamente explicar as “aberrações”? E o principal: porque tais “aberrações” são de fato uma ameaça? De onde de fato vem tamanha força? Assumir que tal “ideologia de gênero” teria tamanha força a ponto de tamanhos esforços serem necessários para o seu combate ao mesmo tempo em que se busca mobilizar o argumento da objetividade da biologia no que tange o assunto sexo é uma verdadeira incoerência.
Outra construção de linguagem muito curiosa associada à fórmula “ideologia de gênero” envolve o campo semântico dos pares “imposição” vs “escolha”. Dizem os críticos da “ideologia de gênero” que esta ideologia expressaria a ideia de que você poderia escolher sua identidade de gênero, ou seja, ideologia de gênero, sem tirar nem por, é defender que pessoas possam escolher serem homens ou mulheres independentemente das suas genitálias. Até aí tudo relativamente compreensível… mas eis que o discurso conservador produz formulações de sentido fantásticas: a ideologia de gênero estaria sendo “imposta violentamente sobre nossas crianças”.
Não sei se vocês conseguiram se atentar para o fato de que uma ideologia descrita como a “ideia de que as pessoas possam escolher livremente” possa ser “violentamente imposta”. É o mesmo que dizer que ideologia de gênero é a imposição violenta de que pessoas deveriam ser livres para escolherem ser o que querem.
O que me espanta mesmo é que nada dessas incoerências “lógicas” parece importar tanto quanto o ódio daqueles que recusam em reconhecer que pessoas LGBTs existem e merecem simplesmente viverem suas vidas.
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