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Guest Post sobre a Teoria do “Descompensamento para Iniciantes” e avançadxs também

Abrindo o mês de agosto, temos um guest post de Eduarda Alfena. Sempre debatemos como o sistema binário-cissexista nos exclui de uma vida legítima (e legitimada). Exclusão de todas as formas: as simbólicas, as reais… Exclusões sobre as nossas formas de existências. Para o cissexismo, nunca estaremos “prontxs”. Sempre haverá um empecilho para a transição, seja na infância, na adolescência, na vida adulta, na velhice… Afinal de contas, o cistema sempre irá buscar formas de silenciamento, de cooptação para a cisgeneridade obrigatória. Me lembro de uma metáfora (já não me lembro quem a fez) extremamente pertinente sobre como é abusivo os saberes-poderes médicos em torno da emissão do laudo: para estes médicos nos “laudarem” como transexuais “verdadeiros” é necessário que nós pessoas trans* desejemos cometer o suicídio com um belo sorriso no rosto. Ou também - propondo outra metáfora - os saberes-práticas médicas constroem uma “Donzela de Ferro”. A Donzela de Ferro, como aponta Naomi Wolf em “O Mito da Beleza”, era um instrumento de tortura medieval em uma espécie de caixão adornado com os membros e o rosto de uma jovem bela e sorridente, em que a vítima era aprisionada até uma morte angustiante, seja por inanição ou decorrência das lesões provocadas pelos espigões de ferro encravados na parte interna do caixão. Assim, o laudo médico-psicológico sem dúvidas tem um “que” de Donzela de Ferro: somos “recompensadas” pelo laudo na exata medida em que temos que nos adequar aos exatos centímetros do nosso próprio caixão - ou diagnóstico.

Ou seja: exigem-nos o impossível. O texto da Eduarda nos mostra muito bem como esse mecanismo operador de “impossibilidades” funciona. E isso fica ainda mais evidente quando observamos recortes de classe, raça, de natureza capacitista, etc. Eu mesma, Bia, no topo dos meus inúmeros privilégios fui gentilmente escorraçada destes (poucos) centros de atendimento para pessoas trans* através da cínica (não) comunicação cisgênera. Afinal de contas: “O que é tratamento? Isso não é tratamento!”, me interpelava uma médica. Vamos ficar aqui com as reflexões da Eduarda sobre suas vivências (e abusos!) em torno das inúmeras falhas dos serviços públicos. Falhas sim, porque sabemos como são as condições do serviço público de saúde neste país, mas também abusos de natureza transfóbica.

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Símbolo do autismo

Olá. Vejo muitas Teorias sendo discutidas por aqui, e gostaria de comentar sobre essa, que vivi na Pele. Sempre é bom observar que o Movimento Transfeminista é sempre um Local de inúmeras Discussões, o que enriquece qualquer Debate.

Certa vez, estava em Conflitos familiares e a Bia me passou um Texto falando sobre Desvirtuamento para iniciantes. Isso me fez perceber o quanto as Pessoas Cissexistas criam Argumentos muito interessantes, que (quase sempre) conseguem jogar outras Pessoas Cis cada vez mais contra Pessoas Trans*.

Eu sou Trans*, logo, acabei indo a um Centro de ‘’Atendimento’’ para Pessoas Trans*. No início, era extremamente submissa às Vontades do Médico Coordenador da Equipe e do Ambulatório. Um Dia, cansei, e comecei aos poucos a querer um pouco mais de Poder de Decisão. Isso foi mais ou menos na Época em que eu conheci o Movimento Transfeminista, principalmente através da Bia.

De certa forma, a Bia foi me dando Força para que fosse ouvida. O que mudou os Rumos das coisas lá no Ambulatório.

Para poder tentar resolver meu Processo, fiz inúmeros Pedidos para esse Médico (que chamarei agora de chefe) fizesse meu Laudo. Como sou Autista, mesmo num Grau leve, tenho grandes riscos de receber uma Curatela (Interdição Judicial, e consequente perda dos Direitos Civis). Foram Semanas de Brigas, até que minha Mãe ligou pra ele, e me disse ‘’ele PROMETEU fazer seu Laudo’’. Havia sido combinado que, mesmo antes deu operar, ele faria Laudo pedindo Processo de Ratificação do Prenome, e Alteração do Gênero nos Registros Civis.

Ele deu o Prazo (final de Maio). Como nossa Relação não anda bem, ele nomeou um Residente para me atender. Chegado o Prazo de entrega, o chefe não fez o meu Laudo, nem me deu retorno. Passadas 2 Semanas do Prazo, nada ainda. Dada 3 Semanas, nada. Me irritei com a tamanha falta de Respeito dele, e fiz uma Queixa na OUVIDORIA do Hospital. O engraçado é que dei de cara com ele depois disso. Disse-me apenas ‘’veja com o Residente. Ele quem te atende agora. Te Dará o Laudo do jeitinho que combinei com a sua Mãe’’.

Chego no Residente, isso já um Mês depois do Prazo inicial, o que eu escuto? ‘’Não fui informado de nada. O Laudo só pode ser feito, para Ratificação de Prenome. Gênero, só depois da Cirurgia. Te darei o Laudo no FINAL de JULHO’’ (2 Meses depois de eu ter pedido).

Eu saí do Serviço. Minha Paciência não resistiu. O que acontece sempre, é que eu ‘’melhoro’’, e na hora de pedir o Laudo o ‘’Chefe’’ me irrita profundamente, aí eu fico ‘’descompensada’’. Qual Médico pode dar um Laudo para Pessoas ‘’descompensadas’’? Nenhum.

Vejo que por muito Tempo fui Vítima dessa Arma. Sempre que estava mais animada, mais confiante, bum. Recebia o Tiro da Irritação que ele usa. Perdia muito a Paciência, e, estava descompensada. No caso, ele sabe fazer isso em nível ‘’Mestre Ninja’’. Vejo o quanto é fácil, irritar uma Pessoa Trans*, em situação vulnerável, e depois jogar isso contra nós mesmxs.

Mas não vejo que somente xs Médicxs desses Centros fazem isso. Por exemplo, uma Pessoa Trans* Disfórica tem Danos Emocionais por conta dessa Disforia, logo, ouvimos que estamos muito mal, e não podemos operar por conta disso. “É perigoso operar uma Pessoa deprimida”. Se ficamos ansiosxs esperando uma Resposta que nunca vem, estamos ansiosxs demais, logo, isso é perigoso. Uma Pessoa Trans* que critica uma Ordem Médica (algo como um Decreto Absolutista), estamos revoltadxs demais, logo, não estamos bem. E percebo o quanto outras Pessoas Cis dizem isso, o Tempo todo. ‘’Você só pensa nessa Cirurgia. E só fala nisso, vá viver sua vida e esqueça desse negócio de disforia’’. Nós jamais estaremos prontxs, pq sempre que estivermos, haverá alguém pra puxar o Tapete.

Há Pessoas que realmente querem me ajudar. Acho que esse ‘’Descompensamento’’ precisa ser urgentemente discutido. Não dá para outras Pessoas Trans* continuarem sendo atropeladas por ele. O que resolve Disforia é combate-la. Tenho Disforia com meu Corpo? Me Hormonize. Tenho Disforia Genital? Me opere. Não adianta ficar jogando pra dentro do Tapete.

Espero ter ajudo um pouco. Agradeço a Bia pelo Espaço que ela me deu.

Muito obrigada

Eduarda Johanna Alfena.

Acréscimo da autora:

Para vocês verem como esse Médico é Mestre Ninja na Arte de descompensar, durante as duas ou três Semanas que fiquei sem Resposta dele, tive Pesadelos quase todas as Noites, gripei, ainda perdi um Kilo.

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Transgeneridade, psiquiatria e ideologia

Este texto parte de algumas leituras que tenho feito da obra de Michel Pêcheux (e alguns textos de quando o autor usava o pseudônimo de Thomas Herbert) e do meu percurso no transfeminismo. Percursos de leituras, que mobilizaram gestos de interpretação aliando um dispositivo teórico (do discurso) e analítico (transfeminista). Não apenas uma interpretação teórica sobre gênero, mas que também impacta sobre minha própria percepção enquanto sujeito na prática simbólica e política. A análise do discurso fundada por Pêcheux trabalha no espaço contraditório (entremeio) do materialismo histórico, da linguística e da psicanálise.É justamente daí que um objeto próprio a essa disciplina ganha contorno: o discurso. Caminhar neste caminho do entremeio significa dizer que a história, a língua e o inconsciente não são transparentes para o sujeito. É neste espaço de suspensão da interpretação automática que existe um espaço privilegiado na qual podemos lidar com o sentido de uma outra forma; uma forma não transparente, não essencializada.

A análise de discurso permite um duplo movimento: de descrição e interpretação. A descrição é o momento quando deixamos de considerar uma relação necessária entre linguagem e mundo e damos voz para o outro discurso (não-dito) que constituiu o próprio discurso. Caminhamos num espaço do silêncio, como diria Eni Orlandi, determinado pelo interdiscurso. Num segundo momento, da interpretação, é espaço de tomada de posição do analista, uma responsabilidade ética como já disse Pêcheux e inevitável (política). Para mim, isso significa que enquanto analista de discurso, observo as discursividades através de recortes no interdiscurso que julgo pertinente, observando certas regiões do dizer que se tornam mais ou menos regulares (as formações discursivas), os sentidos que ali circulam e a relação destes sentidos com os sujeitos e suas identidades em uma dada condição de produção; como transfeminista, a partir desta análise, ao perceber a “textualização do político” por meio da materialização da ideologia em discurso e ao tomar uma posição enquanto transfeminista, desnaturalizo certas relações de poder. Trata-se, de toda forma, de “devolver a opacidade do texto ao leitor”.

O que isso tem a ver com a transgeneridade e disforia? Bom, primeiro é necessário observar que Pêcheux estava muito interessado na crítica às ciências sociais e à linguística na medida em que estas ciências estavam atravessadas pela ideologia burguesa/idealista. Ele nos mostra o papel da ideologia, já nos textos assinados como Thomas Herbert, e sua relação com as ciências. Pêcheux nos mostra lá mesmo onde tudo parecia a mais ordem natural das coisas, em um mundo semanticamente normal, é que está o recobrimento/apagamento ideológico da política, da história, do sujeito. Estas ciências, portanto, partem de evidências sobre o mundo que são, na verdade, produzidas por um recobrimento ideológico. Evidências sobre a existência de “objetos e pessoas”; “razão e emoção” e “objetivo e subjetivo”. A ideologia se desdobra, portanto, entre o empírico e o abstrato como forma do idealismo se apropriar destas ciências. Pêcheux irá entender então a importância de se pensar em uma teoria materialista do discurso, em que como ele mesmo disse, não irá resolver as contradições, mas irá lidar com elas de outra forma: materialista.

O que significaria, portanto, pensar uma teoria não subjetivista da transgeneridade? Isso significaria pensar a disforia fora dos moldes da atual psiquiatria que vêm aliando empirismo e subjetivismo na apreensão/construção de um objeto de conhecimento: a transgeneridade vista como disforia/patologia do gênero. Portanto, trata-se de entender aqui a forma material e contraditória da transgeneridade, sua relação com a ideologia e o gênero. É indispensável pensar aqui a relação da transgeneridade com a cisgeneridade. Afinal de contas, a cisgeneridade não é o domingo do sexo (parafraseando Pêcheux quando ele diz que a poesia não é o domingo do pensamento). As evidências sobre pessoas trans* serem doentes, necessitarem de avaliação e cuidados de médicos cisgêneros, dentre tantas outras manifestações, não caem do céu. Elas partem de como a forma-sujeito do gênero, constituída (assujeitada) historicamente e individualizada pelo Estado, produz sentidos sobre o sexo/gênero. Esta forma-sujeito é a cisgênera. A cisgeneridade interpela os sujeitos em seu desígnio de sexo, produzindo evidências objetivas e subjetivas sobre o sexo, dando coerências às identidades de homens e mulheres; homossexuais e heterossexuais; macho e fêmea, etc. A transgeneridade existe porque a ideologia (ou gênero/sexo) funciona pela falha. E por existir falha que é possível resistência às normatividades.

A psiquiatria trata as pessoas trans* de forma colonizadora/civilizatória. Pra mim não há dúvidas que, muito ao contrário do que acreditam fazer, médicos psiquiatras não estão lá para “curarem” a disforia. Estão lá (nos espaços institucionais das clínicas) para justamente reproduzi-la de certa forma (mesmo que pela contradição). A psiquiatria parte de um modelo de gênero que conjuga ora o empirismo ora o subjetivismo para produzir evidências sobre os “transtornos de gênero”. Em um mundo semanticamente normal, sabemos o que é ser homem ou mulher. É isto (o que todo mundo sabe sobre homens e mulheres) que estes médicos esperam para a emissão de laudos (mediação para o reconhecimento civil e médico de pessoas trans*). Espera-se, portanto que a fala destas pessoas (a identidade subjetiva) reflita de forma transparente o que estaria ancorado a uma base biológica (empiricismo). Os sujeitos que escapam desta refração transparente entre o concreto e o abstrato são ignoradas, empurradas por debaixo do tapete: são as travestis marginalizadas, prostitutas.

Acontece que o problema aqui é que a (trans)generidade não é nem da ordem do abstrato nem do empírico. É material, portanto, contraditório. Existem aqui múltiplas formas do sujeito lidar com a disforia de gênero. Narrativas não tradicionais sempre escapam. A psiquiatria, ao não conceber a falha do gênero como constitutiva (justamente por não levar em consideração a materialidade) das identidades, acaba por nos agredir. A psiquiatria, ao partir das evidências sobre a forma-sujeito cisgênera pode (tem o privilégio social de) apagar o político, a história e até mesmo o sujeito. Trata-se do típico discurso terapêutico, que acredita que por estar apartado do político, poderia curar (seria através da fabricação do consenso?). Mas o afastamento da contradição tem um preço muito caro para as pessoas trans*. Proponho um não retorno nesta questão: trata-se de compreender, sob o primado do outro sobre o mesmo, como a contradição irrompe em nossos corpos, como assim textualizamos estas relações de poder pelo simbólico.

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Sobre o termo cisgênero, o equívoco da língua e o político na sigla LGBT

Escrevo este texto pensando o encontro que a defensoria pública realizou para falar sobre “identidades trans”, em que estavam presentes a psicóloga Bárbara Dalcanale Menêses e o assessor técnico do centro de referência LGBT, Márcio Régis Vacon como palestrantes. Ao se falar sobre transgeneridade, é urgente problematizarmos certas evidências de sentidos, na medida em que considero extremamente importante o não apagamento do político da questão transgênera. Aprendi com a análise de discurso fundada por Michel Pêcheux (AD) que a impressão que as palavras designam inequivocamente coisas e objetos no mundo se dá através de um efeito ideológico; também aprendi, contudo, que a ideologia funciona pela falha. Isso significa dizer, entre outras coisas, que o sentido, apesar de parecer evidente, pode ser sempre outro, a partir do momento em que a língua (para significar) necessita da inscrição da história, e com isso, os sentidos estão sempre já divididos pelas contradições das lutas de classes. Dizemos, portanto, que a linguagem não é transparente, já que ela não designa de forma unívoca; ela é, ao contrário, opaca.

Para a AD, a falha da língua pela ideologia se denomina equívoco. A ideologia aqui é entendida como necessária para a relação do sujeito com os sentidos, se distanciando, portanto, de concepções de ideologia como “ocultação da verdade”. É a partir de uma formação discursiva que os sentidos vão ser mobilizados através de uma posição de sujeito (um exemplo clássico para entender isso sucintamente quando, a rede Globo, por exemplo, utiliza “invasão” enquanto que um blog de esquerda, para referenciar a mesma situação, irá utilizar o termo “ocupação”; os sentidos estão divididos, e uma posição sujeito determina, neste caso, uma “escolha” diferente do léxico).

Então o que a cisgeneridade diz respeito ao equívoco da língua? O que diz respeito ao (apagamento do) político? Certamente muita coisa. Bárbara começou sua palestra “explicando” quem eram (ou o que eram?) as letrinhas da sigla LGBT. LGB são pessoas não heterossexuais, dizem respeito às orientações sexuais, e o T são pessoas trans*, diz respeito às identidades de gênero. Percebam, contudo, que essa definição, a priori, “correta”, mobiliza certas evidências, pré-construídos. Por que, ao falar sobre pessoas não-heterosexuais, sempre referenciamos pessoas cisgêneras? Quem são os (cisgêneros) gays, lésbicas e bissexuais afinal de contas? Por que o tema da identidade de gênero é sempre secundarizado (e como isso se dá historicamente, na materialização dos discursos?)?

"Por que eu deveria... me designar como cisgênero?". Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

“Por que eu deveria… me designar como cisgênero?”. Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

Os LGB são sempre os homens e mulheres (cisgêneros) que se atraem por homens e mulheres (cisgêneros); enquanto que o T apenas atrapalha essa cadeia de significações. Essa é uma das evidências de sentido sobre a sigla LGBT: a tensão/contradição entre a reunião entre orientações sexuais desviantes e identidades de gêneros desviantes não é “resolvida” (ou é para mim, enquanto transfeminista, a materialização de um discurso cissexista) de forma satisfatória pela posição de sujeito cisgênera, na medida em que apaga a possibilidade de (existência do) sujeito trans*, e também apaga a própria possibilidade do sujeito trans* de ter uma sexualidade (!). Não somos destituídxs “apenas” da família, do acesso à educação e empregos, mas também da ordem significante que simboliza a sexualidade. Não temos também o direito de termos desejos! A sexualidade de uma mulher trans* em especial é vista de forma abjeta pelo discurso médico. Somos obrigadas a realizar o impossível em busca do laudo: ora performando uma identidade heterossexual legitimada socialmente, ora performando uma identidade assexual na qual nunca é suficiente, já que sempre somos passíveis de sermos desqualificadas enquanto mulher e enquanto ser humano por qualquer sinal (ou ausência) de sexualidade/gênero.

Esses sentidos desarticulam a possibilidade de resistências transgêneras, já que a própria possibilidade de humanidade nos é interditada pela linguagem. É aí que o simbólico diz respeito ao político, aliás. Afinal de contas, quem nunca se deparou com o equívoco (percebam a relação sempre com o linguístico e os significantes) acerca da orientação sexual tanto de pessoas trans* quanto de pessoas (cisgêneras) que se atraem por pessoas trans*? A pessoa (cisgênero) que namora uma mulher trans*/homem trans* é “hétero” ou “homo”? Ou nenhum dos dois? Risos!

A transgeneridade (enquanto cisgeneridade mostrada em sua opacidade significante), portanto, é uma verdadeira arma (aliás, arrisco dizer a maior delas) contra a heteronormatividade. Quem dera os gays (cisgêneros) dessem conta disso e articulassem isso politicamente… mas infelizmente é mais fácil se apegar a certas identidades essencializadas, tomadas como transparência da linguagem. Identidades essas, que dizem respeito à orientação sexual, que pessoas trans* não têm o privilégio de reivindicarem plenamente. Falar sobre tudo isso, portanto, é também falar sobre o impossível da orientação sexual, sobre suas falhas, equívocos.

Os sentidos sobre a sexualidade das pessoas trans* estão interditados na medida em que o sujeito (de orientação sexual neste caso) universal é cisgênero. E isso se dá através das evidências mobilizadas pela posição de sujeito cisgênera. Por que pessoas trans* são sempre o puxadinho (precário) da laje da significação, são sempre o Outro, que, a partir do momento (contraditório) em que se reconhece o real deste grupo até certa medida: até a medida em que a cisgeneridade é posta como ponto incontornável (e insuportável)? São sempre aqueles que sobram, são o Outro não na sua relação de alteridade, mas na sua relação de abjeção. A simbolização da linguagem de tudo o que se refere a transgeneridade (o real) pela posição de sujeito cisgênera é marcada pelo político, pelas relações de poder. Isso significa que há uma “afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos, caracterizada pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real”, como bem define Eduardo Guimarães na sua semântica do acontecimento. E o discurso da biologia também é mobilizado por esse discurso cisgênero (designar pessoas cisgêneras como “biológicas” é um exemplo disso). E inserir o biológico na discussão é o mesmo que retirar-se do debate político.

Que existe um desconforto de pessoas cis com o termo cis não é novidade. Já falei muito disso aqui no blog. O que também é curioso é ver pessoas trans* “defendendo” a não utilização do termo cisgênero. Isso apenas nos mostra que a posição do sujeito não é empírica nem automática: pessoas trans* podem assumir esta posição de sujeito cisgênera, assim como pessoas cis podem assumir uma posição de sujeito trans* (ou transfeminista).

Vejamos certos efeitos de sentidos nos enunciados:

  • As pessoas trans* são aquelas que se identificam com o gênero oposto.
  • O homem que se veste como mulher é uma mulher transexual.
  • O que diferencia uma transexual de uma mulher é o biológico.

Nos enunciados há o efeito de pré-construído. Isso significa que algo nos enunciados “disse antes, independentemente” que atravessa o dizer e que, nestes casos, se dá sobre a forma da contradição, gerando um efeito de sentido ora paradoxal, ora transparente. Quando se define que uma “pessoa trans é aquela que se identifica com o gênero oposto” se afirma, por meio do implícito, que a pessoa trans pertence a um gênero (ela “é” alguma coisa) com o qual ela não se identifica. É aí que o equívoco se manifesta: como posso me identificar com algo que desde sempre (desde todos os dizeres, os já-ditos) eu já não seja? Este pré-construído articula dizeres anteriores que afirmam que mulheres trans* não são mulheres e homens trans* não são homens. Qual é o gênero oposto de uma mulher trans*: o feminino ou masculino? Este enunciado afirma o paradoxal: o gênero “oposto” de uma mulher trans*, a partir do seu próprio ponto de vista, é o masculino. Como poderia uma mulher se identificar com o gênero masculino? Sentidos de transparência acerca dos termos “homem” e “mulher” atuam de forma semelhante no segundo enunciado. Esses efeitos de pré-construído se dão através de um atravessamento com o discurso da biologia/medicina, no qual o desígnio de gênero ao nascer é mobilizado como evidência de que “sejamos” homens ou mulheres produzindo coerência para os termos “homens” e “mulheres”. Por isso o terceiro enunciado possui efeito de transparência. Mas aqui vai o equívoco: falar sobre transgeneridade é falar sobre o biológico? Como, então, esses enunciados podem ser tão transparentes? Como essa relação de transparência se deu historicamente? É hora de deixar para trás o “biológico” para se falar sobre (cis)generidade. Isso significa dizer, afinal, que pessoas cis não são biológicas.

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Nota de repúdio à entrevista de Rafael Kalaf Cossi e um convite a se pensar a psicanálise

Nota de repúdio: cansadxs de colonização

Não é novidade alguma a que vamos falar aqui. Cabe ressaltar também que não se trata de nenhum “ataque” ao indivíduo de Rafael Kalaf (mesmo que tenha sido o mote deste texto), mas sim a todo um discurso recorrente no campo dos saberes “psi” sobre transgeneridade que não julgamos apenas inadequado, mas também muito prejudicial. Na entrevista, disponível em http://lacaneando.com.br/rafael-kalaf-cossi/encontramos diversos estereótipos negativos e colonizatórios acerca da transgeneridade que tanto debatemos no transfeminismo. Na segunda parte do texto, logo abaixo, proponho um convite a se pensar deslocamentos na psicanálise, através da forclusão (ou foraclusão) da cisgeneridade. Vamos elencar primeiro aqui trechos da entrevista que considero bastante problemáticos, que serão comentados:

  • “autor do livro Corpo em Obra – Contribuições para a clínica psicanalítica do Transexualismo”.

Transexualismo. Já começa por aí. Não falamos “Transexualismo”, mas sim transgeneridade. A escolha por um termo é uma escolha que desvela uma posição política. Se fosse você, Rafael, mudaria o nome do seu livro. Muito provavelmente mudaria o conteúdo do livro também.

  • “Esse quadro clínico me despertou grande curiosidade e fiquei muito instigado a pesquisar esta questão. Fui amadurecendo a ideia, ao longo de dois anos, até definir o que eu iria estudar, e o tema acabou se tornando uma pesquisa de mestrado. Tema este, até então, bem pouco abordado pela psicanálise.”

Transgeneridade não é nenhum “quadro clínico” que pessoas cis possam sentir “curiosidade” e serem “instigados” a pesquisar. Nós somos pessoas, sujeitos. Não somos cobaias, não somos massas amorfas à espera de sermos “pesquisadxs” e “entendidxs”. Temos voz antes de tudo e repudiamos esta forma de se entender nossos corpos, anseios, identidades, etc. Não somos “tema” de sua pesquisa de mestrado, Rafael. Fique sabendo, no entanto, que o seu discurso cissexista é tema dos meus estudos. Pois é, cisgeneridade ainda é um campo também completamente inexplorado. Me “instiga” bastante.

  • “O que me surpreendeu ao visitar o local foi, justamente, a cautela no trato da questão. Eles não defendem a bandeira de que as pessoas podem fazer o que quiser com o seu corpo. Não há uma apologia às intervenções cirúrgicas, até mesmo porque, o fato de se submeter a uma cirurgia não é garantia para a solução do problema, pois permanecem outras questões e o sofrimento continua. Logicamente, em alguns casos, a intervenção cirúrgica melhorou muito a vida da pessoa. Não que ela tenha se transformado em uma mulher, no caso do Transexual masculino, mas porque tendo um corpo mais coerente com o gênero, ela fica mais apaziguada. Mas há de ser observado que, em alguns casos, a intervenção cirúrgica pode até piorar. É uma terapêutica não para todo mundo. É necessário também um trabalho de apoio psicológico. É curioso observar que já existe até um termo para Transexuais que se arrependem da cirurgia: ‘transregrett’. Existem dois livros publicados a respeito. São depoimentos de Transexuais que fizeram este procedimento e se arrependeram. Em um dos casos, a cirurgia só piorou o quadro clínico, deixando o sujeito ainda mais depressivo. Em outro depoimento, a pessoa viveu 17 anos como mulher, inclusive, com reconhecimento social, bem sucedida financeiramente e na carreira profissional, mas ao longo dos anos acabou ficando muito incomodada com a nova vida, inclusive, tendo problemas hormonais. E, após 17 anos, pediu para fazer a cirurgia de reversão para voltar a ser homem, voltar ao sexo de nascimento. O que comprova que a cirurgia não acarreta o fim dos males do sujeito.”

Te surpreendeu positivamente ou negativamente? Transexual masculino? Sério mesmo que você tá usando essa nomenclatura? Mulheres trans* não são “transexuais masculinos”, assim como homens trans* não são “transexuais femininos”. O que justificaria tal predicação? Certamente apenas uma visão cissexista acerca de nossos corpos e identidades. Não somos “quadro clínico” também.

“Solução do problema”. Que problema exatamente? Transgeneridade em si não é o problema. Pessoas trans* sofrem, sim. Mas focar no nosso sofrimento subjetivo é o mesmo que apagar questões políticas que subjazem este “problema”. É apagar a existência da transfobia, do cistema que engendra abjeções. Assim como focar no “arrependimento”. A “solução” pra isso não deve se restringir no âmbito privado, ou seja, não podemos conceber que o fim da transfobia se dará através de sessões de terapia, como foi postulado (indiretamente) acima. Não precisamos (mesmo!) de pessoas cis dando palpites em como nós entendemos nossos corpos e nossas necessidades. Afinal, não vejo nenhuma pessoa cis tendo que passar pelo crivo psicológico/psiquiátrico a fim de conseguir qualquer tipo de cirurgia ou acesso à saúde.

Agora, sobre o mito do arrependimento. “Transregret”? Essa é até nova pra mim. Não precisamos, novamente, destes entendimentos esdrúxulos sobre nossas vivências. É muito curioso como pessoas cis se focam no arrependimento das pessoas trans* com procedimentos cirúrgicos. Por que existe a necessidade quase doentia nesse aspecto? Por que não falar sobre qualquer outro tipo de arrependimento, incluindo o arrependimento de pessoas cis quando realizam cirurgias? Esta perspectiva, novamente, nos retira da posição de protagonistas, nos retira voz. Dizem por nós que “arrependemos” de algo. É sempre a voz cisgênera a mediadora de representação de certo real. E quando dizem, por nós, que “arrependemos”, é engatada toda uma argumentação sobre “cuidados”, “precauções” acerca desta população. Eu reitero: não precisamos destas formas de cuidado. Elas nem ao menos são o que se propõem. Não precisamos de pessoas cis cuidando paternalisticamente de nossas vidas: isso foi e é muito prejudicial. Não reconhecemos autonomia neste processo, apenas colonização.

  • “Outro fator preocupante em relação aos procedimentos hormonocirúrgicos é que eles se tornem tão corriqueiros como as cirurgias plásticas, as intervenções estéticas, as tatuagens, pois existe a ilusão de que precisamos sustentar a nossa identidade a partir da imagem. E o capitalismo contribui muito para isso. Além do mais, existe a ideia de que o sujeito tem que ter total direito pelo seu corpo.”

Bom… vamos lá. Olha, acho muito fácil botar uma pretensa problematização de sustentar a identidade a partir da “imagem”, falar em “capitalismo, e manter a cisgeneridade intocada né? Não são só pessoas trans* que são “normativas”. Não são só elas que querem ter uma “imagem normativa”, mas também pessoas cis. Aliás, acaba sendo uma análise feita aqui muito limitada (pra não dizer transfóbica) quando apontamos apenas um lado da moeda e esquecemos todas as relações de poder que separam pessoas trans* das cis. Quem, ali, “quer ter direito total pelo corpo”? Pessoas cis já não tem esse direito? Não vamos problematizar isso também? Então vamos tomar muito cuidado nesse sentido, ok amiguinhxs cisgêneros?

  • “É muito comum recebermos em consultório, meninos que só brincam com meninas, que tem preferência por brinquedos de meninas, se comportam como tal, tem trejeitos femininos. Mas esses fatores não são indicativos de que ali exista uma criança que possa vir a se tornar um Transexual. O que podemos perceber é que existe uma incoerência entre sexo e gênero, mas ainda é prematuro fazer qualquer tipo de afirmação, de aposta.”

Transexualidade, transgeneridade ou travestilidade não devem ser entendidas como descompassos entre “sexo e gênero”. Primeiro que a definição destes termos não é algo dado a priori. Butler (dentre outrxs autorxs), por exemplo, problematizou muito os sentidos dessa dicotomia, e não vai entender sexo distinto de gênero. É bastante problemática a divisão entre natural e social que esta dicotomia opera, e isso fica claro quando vemos que as pessoas trans* são sempre aquelas cujos corpos não “sustentam” seu gênero. A incoerência não se dá neste nível, mas sim no nível entre sexo/gênero designado e sexo/gênero identificado.

  • “No travestismo, o travesti fetichista usa o seu órgão sexual com fins de prazer, isso não é um problema para ele. O órgão sexual é libidinizado, é uma zona erógena. Muitos travestis fetichistas usam o órgão sexual em proveito próprio e com fins mercadológicos. Existe aí, também, um misto de masculinidade e feminilidade. Já na transexualidade não há um misto de masculinidade e feminilidade, o sujeito sempre se diz identificado com o gênero oposto ao seu corpo e há uma tendência de que o órgão sexual não seja libidinizado.”

Aqui os erros conceituais são gritantes. Primeiro, a noção de “travesti fetichista” é terrível, pois pouco se sustenta além de mero cissexismo. O “uso” de determinado órgão sexual não diz respeito a nenhuma forma, a priori, de identificação de gênero. Assim como a transexualidade não diz respeito à determinada forma de sentir disforia em relação a partes do corpo. Tanto travestis quanto transexuais podem se identificar com formas “mistas” (ou não tão mistas) de feminilidade e masculinidade. Não existe sentido a priori sobre travestis e transexuais, como já disse aqui no blog: as pessoas são livres enquanto formas de se auto identificarem. Tentar assumir um sentido abstrato e generalizante sobre esses termos é uma típica forma de transfobia.

O convite: a forclusão do nome cisgênero

Agora, me arrisco a entender, pela psicanálise, como a cisgeneridade é produtora de “psicoses”. Aqui proponho pensar a psicanálise através das contribuições transfeministas e passar a compreender como a cisgeneridade enquanto conceito analítico pode ser útil nesta e em futuras análises; um esboço de problematização da questão a fim de se pensar uma forma não normativa e empoderadora da psicanálise. Não se trata aqui de devolver a patologização para pessoas cis, mas deslocar o olhar sobre o problema. Pessoas trans* não são o problema, a transfobia sim.

Nesse sentido, a cisgeneridade compulsória é o bastião de todas as formas de cissexismo, e isso certamente reflete na subjetividade do sujeito (do inconsciente). A cisgeneridade é forcluída (rejeitada) em toda forma de manifestação de ódio transfóbico e toda vez que se articula um discurso cissexista/transfóbico pelo sujeito cisgênero. Isso fica bastante evidente toda vez que uma pessoa cis se incomoda com o termo cisgênero ou o acha pouco importante (ou até mesmo “perigoso”). Nesse processo se retifica a naturalidade da cisgeneridade através dos efeitos de sentidos de evidência sobre o “homem” e a “mulher”.

Quando vejo gente cis atacando a identidade de pessoas trans* ao apontarem comparações que se propõem esdrúxulas, como quando dizem que uma pessoa pode “achar” (ou identificar-se) que é homem ou mulher assim como podem “achar” serem qualquer coisa (como papei noel e o coelhinho cor de rosa, ou qualquer outra coisa que soe esdrúxula) é a própria cisgeneridade que se encontra ameaçada, e portanto, é “defendida” arduamente pelo sujeito cisgênero. É aí que vemos a manifestação de uma subjetividade patológica, o sintoma da cisgeneridade enquanto norma, a volta do recalcamento sobre a própria cisgeneridade (já que a própria nomeação da cisgeneridade é suficiente para contestar a forma de identificação do sujeito). Isso porque, devo dizer, estas comparações esdrúxulas se sustentam, só fazem sentido, por meio das evidências sobre os sentidos de “homem” e “mulher” que são orientadas pela norma cisgênera.

Quem acompanha as discussões transfeministas irá entender como a palavra “cisgênero” é especialmente dramática (posso até dizer traumática) para a forma como muitas pessoas cis se identificam enquanto sujeitos. Isso porque justamente o significante (cisgênero), ao esbarrar com os limites de certas formas de representação e tensionar certas relações de sentidos, põe em jogo a cisgeneridade enquanto opacidade. Nesse processo o sujeito aparece com um sintoma bastante característico, e uma das formas de retorno ao recalcamento é quando vemos as determinações “homem biológico”, “mulher biológica” (ou outras formas parecidas, como “homem/mulher de verdade”), formas estas de identificações que podemos entender como delirantes.

Aqui a cisgeneridade compulsória pode ser entendida como a causa destas formas de identificação e psicanaliticamente, como forclusão. Vemos também como ideologia e inconsciente estão materialmente ligados aqui, na medida em que estes sintomas “psicóticos” da cisgeridade estão ligados com as diversas formas de manifestação da transfobia. Aqui a identidade de gênero não é dada pelo “complexo de Édipo”, mas sim na forma como o sujeito lida com a forclusão cisgênera. Isso porque qualquer forma de se falar em “masculino”, “feminino” (e nas clássicas formas da “explicação” do complexo de Édipo em que se muito usa os termos “menino” e “menina” através dos sentidos se dando de forma apriorística) se pressupõe a cisgeneridade, ela está lá (mesmo que na ausência) produzindo estes sentidos como evidências.

Como já dissemos aqui, não há mais volta quanto ao uso do termo cisgênero. E fica bastante evidente como esse termo pode ser útil para não apenas entendermos a própria cisgeneridade, mas também como forma de resistência por nós, ao nomearmos o “normal”. Isso significa rejeitar qualquer forma cissexista de se entender a transgeneridade, incluindo algumas perspectivas da psicanálise (que infelizmente me parecem, até agora, as perspectivas hegemônicas neste campo).

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O Domínio Semântico de Determinação das identidades trans*

Muitas pessoas perguntam acerca das identidades trans*: qual é a diferença entre travestis e transexuais? O que significa o * do trans? Levando em consideração que estas perguntas se referem à significação, acho bastante pertinente atentarmos sobre alguns conceitos da Semântica da Enunciação para analisarmos não apenas os sentidos de travestis e transexuais, mas também sobre qual é o estatuto (e implicações) destes sentidos. Esse texto se trata de uma continuidade com o texto “Descolonizando os entremeios de Travestis e Transexuais”, no qual eu abordei como os sentidos de travestis e transexuais são instrumentalizados pelos discursos médico e jurídico para reproduzir transfobia e então, pensar em possíveis formas de resistência a essas normatizações; agora pretendo me aprofundar um pouco mais em questões linguísticas propriamente, como a enunciação, designação, referência e sentido, conceitos que foram só tangenciados no texto anterior.

Durante esse texto, muito embora o termo trans* abranja diversas identidades, estarei focando especialmente os termos travesti e transexual. Cabe ressaltar também que, por tratar deste recorte, irei privilegiar o espectro feminino das identidades trans*, ou seja, pessoas trans* que foram designadas com o sexo masculino ao nascer. Digo isso pelo fato do recorte travesti/transexual só operar com estas pessoas, visto que homens trans* e outras pessoas trans* que performam um espectro masculino de identidades ou não binário (podendo incluir também o espectro de feminilidade, como bem me apontou Carina Rez Lobos) não serem designados enquanto travestis, mas apenas como transexuais pelo discurso médico/jurídico. Este fato pode indicar a possibilidade de um controle menos rígido operado pelos discursos médicos e jurídicos sobre essas pessoas trans*, na medida em que as diferenças entre travestis e transexuais são instrumentalizadas pelos discursos médicos e jurídicos para produção de abjeções e especificamente transmisoginia; mas como isso ainda não foi analisado profundamente, digo que se trata ainda de uma hipótese. Mesmo operando este recorte, acredito que esta análise possa ser útil para se pensar as transmasculinidades e não binaridades, na medida em que homens trans* e outras pessoas trans* designadas com o sexo feminino ao nascer que se identificam com um espectro masculino/não-binário sofrem inúmeras deslegitimações de suas identidades que são comuns às pessoas trans* de um espectro feminino.

Digo de antemão que as perspectivas enunciativas, que levam em consideração que o sentido não se dá a priori, mas sim no e pelo ato de enunciação, me são bastante empoderadoras para se pensar em práticas de resistências transfeministas (como espero mostrar aqui). Contudo, vale ressaltar que nenhuma observação que faço aqui pretende ser definitiva, na medida em que, como podem ter visto neste blog, estamos e estaremos sempre atualizando nossas posições e que, muito embora estas perspectivas linguísticas levem em consideração o que é externo à linguagem, as questões identitárias são complexas, de forma que elas podem envolver outros desdobramentos políticos e subjetivos que eu a princípio não poderia supor em uma breve aplicação teórica que se propõe linguística.

Então, uma primeira observação que eu acho relevante é, ao invés do próprio significado destas palavras, falar sobre o que se espera de uma pergunta sobre o que significa ou o que são as identidades trans* e apontar certas concepções de linguagem. As pessoas por vezes criam uma ligação muito forte entre o nome dado a determinada coisa e a própria coisa, de forma que muitas vezes as pessoas esperam que quando nomeamos ou designamos travestis e transexuais estaríamos apenas rotulando certas pessoas que existiriam previamente no mundo, estabelecendo uma relação de referência com o mundo. O que nos mostra, contudo, autores como Eduardo Guimarães (2007), é que a própria linguagem cria um modo específico de apreensão do real, ou seja, cria os seus próprios referentes através de um processo de designação, que é o modo pelo qual o real é significado na linguagem, ao invés de meramente apontá-los no mundo.

Algo interessante de se notar também é para a própria pergunta “Qual a diferença entre travestis e transexuais?”. Percebam que, ao invés desta, poderiam ser feitas outras duas perguntas separadas, em busca do sentido de cada palavra separadamente. Mas acredito não ser mera coincidência ser mais comum vermos a pergunta acima do que simplesmente “O que é travesti? / “O que é transexual” justamente porque “travesti” e “transexual” se definem mutuamente. Ou seja, o sentido de uma depende da outra, pois o sentido das palavras se dá sempre em relação a outras palavras, e não enquanto classificação de objetos (Guimarães, 2007).

Levar em consideração esta posição não-referencialista irá nos impedir também de definir os sentidos de travestis e transexuais como um dicionário faz. Também não será possível admitir que os significados dessas categorias podem ser apreendidos (como frequentemente se faz) em pequenos glossários acerca de determinados temas. Ao contrário, o dicionário e o glossário são antes de tudo, textos, textos esses que apresentam algumas relações de sentidos sobre esses termos construídos na enunciação, mas que não são universais. Não existe, portanto, um sentido meramente abstrato e virtual que um dicionário ou glossário poderia apreender de forma “neutra”.

Aliás, é importante ressaltar o poder de um certo fetiche que muitas pessoas conferem ao dicionário. Assim como é muito comum vermos uma instrumentalização do discurso biológico para deslegitimar as identidades trans* (“uma mulher trans* na verdade é homem pela biologia”) o mesmo opera com as acepções encontradas no dicionário. Já me cansei de ver gente dizendo que travestis são “homens que se vestem de mulher” porque leram isso no dicionário. Então cabe aqui a advertência: o que está expresso no dicionário muitas vezes pode não representar a forma como certos grupos minoritários veem a si mesmos, neste caso, travestis; e também que esta acepção no dicionário não é “neutra”, ela está sim marcada ideologicamente.

Guimarães (2007) propõe o conceito de Domínio Semântico de Determinação (DSD) que visa explicar o funcionamento da significação em um texto. Segundo ele, a “determinação é fundamental para o sentido das expressões linguísticas”. Então, supondo os enunciados:

  1. Reportagem mostra rotina de travestis e prostitutas na noite de Teresina.
  2. Reportagem mostra rotina de travestis e prostitutas na noite de Teresina. Os clientes de umas e os das outras raramente se encontravam.
  3. As mulheres prostitutas e os travestis entrevistados relataram que o fato de serem profissionais do sexo configura-se como uma profissão legítima.
  4. As prostitutas entrevistadas, tanto mulheres cisgêneras quanto travestis, disseram sofrer discriminação.
  5. Mulheres que se prostituem, sejam travestis ou cisgêneras, estão propensas a sofrerem discriminação

Eles nos mostram como as relações entre as palavras no texto constituem o sentido delas. Embora em (1) já se encontre uma oposição entre travestis e prostitutas, é em (2) e (3) que se reforça a relação de oposição entre, respectivamente, travestis e prostitutas e entre mulheres e travestis. Em (3) mulheres determina prostituta, mas não travestis, e isso fica ainda mais marcado pelo uso do flexão de gênero gramatical no masculino para travestis. Porém, em (4), prostituta designa de forma diferente dos enunciados anteriores, pois determina não apenas mulher, mas também travesti. Em (5), por sua vez, a designação de mulheres é diferente de todas as demais, pois determina tanto travestis como cisgêneras.

O chiste da tirinha abaixo, publicada pela página do facebook “Travesti Reflexiva”, provém diretamente das relações de sentido estabelecidas entre homem e travesti construídas na enunciação encenada por um diálogo entre quadrinhos. Se homem determinaria (ou predicaria) travesti, estabelecendo uma relação de sinonímia, a outra via de sentido, travesti determinando (ou predicando) homem, passa a soar absurda. A tira lida com certas incoerências do discurso cissexista por rememorar na primeira tira um enunciado que é socialmente dizível e amplamente difundido de que “travestis são homens” que é então problematizado ao apontar, interrogando acerca da designação que o próprio interlocutor faz de si, a evidência de existirem outras relações de sentidos que circulam socialmente entre os dois termos além da mera sinonímia.

travestireflexiva

Desta forma, a partir destes exemplos e das contribuições teóricas desta área da linguística, é que deixamos de considerar o sentido como já dado no mundo (assumindo, portanto, uma concepção não-referencialista da linguagem) e apontar para a instabilidade constitutiva do sentido, já que temos que sempre levar em consideração o sentido como relações entre palavras em um determinado texto, que por sua vez é entendido como um conjunto de enunciados articulados entre si. A língua, nesta perspectiva, é pensada não como uma estrutura fechada, mas como um sistema de regularidades determinado historicamente que é exposto ao real e aos falantes nos espaços de enunciação (Guimarães, 2007).

Ao ler as análises de Bruno C. Barbosa (2013) sobre como são feitos os usos das categorias travesti e transexual e a partir das minhas leituras de reportagens e artigos que envolviam travestis e transexuais na mídia e em alguns artigos científicos, percebo que existe a construção de um imaginário de “superficialidade/abjeção criminal” associada à identidade travesti e um imaginário de “profundidade/abjeção patológica” associada à identidade transexual (de forma parecida com o recorte de Barbosa em seu artigo entre artificialidade e naturalidade). Podemos dizer que os sentidos provenientes deste imaginário são reforçados/criados pelos discursos médicos e jurídicos, que como já disse, se ancoram por legitimação institucional capazes de uma maior circulação o que garante sua hegemonia.

As listas que se seguem não configuram propriamente um DSD, na medida em que não analisei um texto ou conjunto de textos, mas já parti da identificação de uma memória discursiva sobre o sentido destes termos, de forma que o que chamei, por exemplo, de “ambígua em relação ao binário de gênero” incluir diversas determinações concretas possíveis, como “não ser/não se sentir homem nem mulher”. Esses imaginários vão influenciar, portanto, a forma como travesti e transexual são reescrituradas na enunciação. Isso se dá através dos determinantes de travesti como:

  • “ambígua em relação ao binário de gênero”
  • “não passível de ser diagnosticada como portadora de distúrbio de gênero”
  • “não fez/não quer fazer a cirurgia de redesignação sexual”
  • “sexualmente ativa”
  • “transexual falsa/ mulher falsa”
  • “traços masculinos”
  • “marginal”
  • “criminosa”
  • “prostituta”
  • “subversiva”

e de transexual como:

  • “não ambígua em relação ao binário de gênero”
  • “passível de ser diagnosticada como portadora de distúrbio de gênero”
  • “fez/quer fazer a cirurgia de redesignação sexual”
  • “não sexualmente ativa”
  • “transexual verdadeira/ mulher verdadeira”
  • “feminilidade unívoca”
  • “disfórica”
  • “transtornada”
  • “suicida”
  • “normativa”

Vale uma observação sobre como as determinações encontradas em uma categoria implicam o sentido das outras determinações da outra categoria de uma forma mais ou menos implícita, criando uma rede intrincada e complexa de sentidos que visa produzir uma coerência entre eles que acaba por reforçar as supostas diferenças essenciais entre travestis e transexuais. Estas diferenças são tomadas como evidências de sentidos que acabam por reforçar a aparência das palavras como substâncias (objetos no mundo) que por sua vez corroborará a hipótese de gênero (ou seus transtornos) enquanto uma categoria nosológica e a transexualidade/travestilidade como patologias diagnosticáveis[1]. Afinal de contas, se o sentido destas categorias estiver apenas “colado” em algum corpo fora da linguagem, o corpo tido abjeto das pessoas trans*, estabelecendo uma relação de referência, bastaria garantir o crivo e separar o joio do trigo, de modo à pretensamente observar se a relação entre a enunciação/identidade da pessoa realmente conferir com uma suposta realidade: as pessoas trans* falsas de um lado e as verdadeiras de outro.

Voltando às determinações, é de se esperar que uma pessoa marginalizada (determinação de travesti) tenha muito mais dificuldade de poder concretamente “ser diagnosticada como portadora de um distúrbio de gênero”, justamente pelo fato recorrente das travestis não conseguirem ao menos acessar cuidados básicos de saúde [2], interditando, de certa forma, que travesti seja determinada por termos afeitos à saúde mental, já que estes termos são condicionados a um crivo psicológico (que pressupõe, portanto, o acesso a cuidados de saúde). Aliás, há alguns casos de “exceção” a esse caso (que acabam por só reforçá-lo na verdade), quando a determinação “suicida” muitas vezes só é utilizada para determinar travesti em ocasiões muito específicas (mas apenas para reforçar os imaginários de que falei), em especial para justificar a necessidade de terapias psicológicas/psiquiátricas obrigatórias, articulando o mito da visão suicidógena (Bento, 2012) e a validade do diagnóstico médico.

Da mesma forma, existe uma interdição de determinantes de transexual que dizem respeito à profissão, pois se por acaso transexual for determinada como prostituta, existirá uma associação entre sua profissão e uma consequente deslegitimação de sua identidade, na medida em que se associa fortemente a prostituição com diversos outros determinantes de travestis, como “sexualmente ativas” e “marginais/ criminosas”. Neste sentido, certos fatos externos à linguagem refletem como as relações de determinação linguística são construídas na enunciação. Contudo, isso não quer dizer que exista, como disse anteriormente, uma relação direta e inequívoca entre mundo e linguagem, mas como define Guimarães (2007), a partilha do real não se projeta sobre a linguagem diretamente e o caráter relacional do sentido ficou bastante evidente, na medida em que travesti significa na relação de seus determinantes com o que justamente não significam os determinantes de transexual e vice-versa. Outro fator externo à linguagem que certamente influencia as designações e reescriturações de travesti e transexual feitas pela enunciação são recortes de raça, classe e orientação sexual que poderei abordar numa futura análise.

A transgressão de gênero das travestis é determinada pelo aspecto de “vestir” (remetendo a uma superficialidade) enquanto as transexuais pelo de “sentir” (remetendo a uma profundidade). A retificação deste recorte de sentidos (orientados pelos imaginários superficialidade/abjeção criminal e profundidade/abjeção patológica) tenderá a reproduzir as formas de dominação através de cissexismos diversos, em especial a marginalização das travestis que serão determinadas com traços que “superficializam” tanto seus gêneros quanto suas próprias humanidades, já que suas identidades femininas se deslegitimariam por meio destas formas de se designar “superficiais”. Do outro lado, há as determinações que “aprofundam” os sentidos de transexuais na medida em que, ao “explicar” subalternamente suas existências e operando por meio de essencialismos (estratégicos ou não), houvesse a necessidade de apelar a praticamente uma construção metafísica, como vistos frequentemente em “almas femininas aprisionadas em corpos masculinos” e “diagnosticadas”. Transexuais são assujeitadas a formularem (ou serem formuladas) por meio dessas expressões a fim de legitimarem suas existências e conseguirem sobreviver em uma sociedade nitidamente transfóbica por meio da vendida “cura” (através dos dispositivos do diagnóstico e do laudo) por médicos psiquiatras, por isso são abjeções patológicas. Já travestis são a face vazia do Outro, na qual não foi possível a construção de uma inteligibilidade pelo discurso médico, tratando-se de uma dupla abjeção por não apenas infringir a lei da cisgeneridade compulsória, mas a própria lei do gênero enquanto binário; essa dupla infração não é perdoada pelo cistema, por isso são abjeções criminais. Não à toa associarem o lugar social de transexuais com as clínicas e das travestis com a prisão e as pistas de prostituição, o que remete bem aos estereótipos de “doida” e “puta” apontados por Barbosa (2013).

No entanto, quero mostrar, assim como ele fez acerca das potencialidades de deslocamento dos sentidos de travestis e transexuais , que a enunciação torna possível uma forma de empoderamento e resistência antinormativa, pois é a partir dela que pode existir a auto identificação (que tanto prezamos no transfeminismo) sobre nossas identidades. Ao invés de designar as diferenças entre travestis e transexuais como postulam médicxs e juízxs é possível designar as semelhanças (ou diferenças, de fato, já que vão sempre tender a existir, mas que sejam agora relevantes politicamente) e a partir disso, ensejar formas de solidariedade entre pessoas trans* que visem à crítica institucional da transfobia [3]. Como exatamente fazer isso? Não é uma resposta fácil, nem dada. Espero que consigamos construir isso coletivamente.

Apontar a opacidade da língua, portanto, é apontar que existem disputas. Se tomarmos os sentidos já dados como mera virtualidade acerca de travestis e transexuais estaremos dando de mão beijada a supremacia de apenas uma forma de apreensão deste real, que não é à toa que se trata da apreensão feita pelos discursos médicos e jurídicos que visam apenas produzir controles cisnormativos, marginalidades e abjeções sobre nossas identidades. Apontar o funcionamento da língua se mostrou para mim como uma forma de resistência à própria patologização das identidades trans*, pois, levando em consideração que as categorias travesti e transexual não configuram substâncias/seres, mas sim palavras, a apreensão deste real por dispositivos de saber da biologia/medicina se torna não apenas um erro epistemológico, mas a própria reprodução das relações de poder que envolvem a transfobia e transmisoginia.

1. O diagnóstico de transexualismo(sic) é o único “viável”, na medida em que a travestilidade, mesmo sendo patologizada e classificada enquanto “travestismo”(sic), não possui efeitos práticos a não ser como constituinte do próprio sentido do diagnóstico de transexualismo(sic) por mera relação de diferença e negação, enquanto Outro.

2. Inclusive, pelo fato de que travestis justamente por não conseguirem acessar cuidados básicos de saúde, são constantemente noticiados seus problemas de saúde em decorrência da aplicação de silicone industrial e da falta de acompanhamento endocrinológico.

3. Sem, contudo, apagar as especificidades, atentando para recortes intersecionais. O que proponho é designar as diferenças que sejam relevantes para se pensar, a partir destas representações, ações políticas que promovam os direitos das pessoas trans* e demais grupos oprimidos.

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Bruno Cesar. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad-Revista Latinoamericana, n. 14, p. 352-379, 2013.

BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. DESPATOLOGIZAÇÃO DO GÊNERO: A POLITIZAÇÃO DAS IDENTIDADES ABJETAS. Estudos Feministas, v. 20, n. 2, p. 569-581, 2012.

GUIMARÃES, Eduardo. Domínio semântico de determinação. A palavra: forma e sentido. Campinas: Pontes, p. 77-96, 2007.

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