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Transgeneridade, psiquiatria e ideologia

Este texto parte de algumas leituras que tenho feito da obra de Michel Pêcheux (e alguns textos de quando o autor usava o pseudônimo de Thomas Herbert) e do meu percurso no transfeminismo. Percursos de leituras, que mobilizaram gestos de interpretação aliando um dispositivo teórico (do discurso) e analítico (transfeminista). Não apenas uma interpretação teórica sobre gênero, mas que também impacta sobre minha própria percepção enquanto sujeito na prática simbólica e política. A análise do discurso fundada por Pêcheux trabalha no espaço contraditório (entremeio) do materialismo histórico, da linguística e da psicanálise.É justamente daí que um objeto próprio a essa disciplina ganha contorno: o discurso. Caminhar neste caminho do entremeio significa dizer que a história, a língua e o inconsciente não são transparentes para o sujeito. É neste espaço de suspensão da interpretação automática que existe um espaço privilegiado na qual podemos lidar com o sentido de uma outra forma; uma forma não transparente, não essencializada.

A análise de discurso permite um duplo movimento: de descrição e interpretação. A descrição é o momento quando deixamos de considerar uma relação necessária entre linguagem e mundo e damos voz para o outro discurso (não-dito) que constituiu o próprio discurso. Caminhamos num espaço do silêncio, como diria Eni Orlandi, determinado pelo interdiscurso. Num segundo momento, da interpretação, é espaço de tomada de posição do analista, uma responsabilidade ética como já disse Pêcheux e inevitável (política). Para mim, isso significa que enquanto analista de discurso, observo as discursividades através de recortes no interdiscurso que julgo pertinente, observando certas regiões do dizer que se tornam mais ou menos regulares (as formações discursivas), os sentidos que ali circulam e a relação destes sentidos com os sujeitos e suas identidades em uma dada condição de produção; como transfeminista, a partir desta análise, ao perceber a “textualização do político” por meio da materialização da ideologia em discurso e ao tomar uma posição enquanto transfeminista, desnaturalizo certas relações de poder. Trata-se, de toda forma, de “devolver a opacidade do texto ao leitor”.

O que isso tem a ver com a transgeneridade e disforia? Bom, primeiro é necessário observar que Pêcheux estava muito interessado na crítica às ciências sociais e à linguística na medida em que estas ciências estavam atravessadas pela ideologia burguesa/idealista. Ele nos mostra o papel da ideologia, já nos textos assinados como Thomas Herbert, e sua relação com as ciências. Pêcheux nos mostra lá mesmo onde tudo parecia a mais ordem natural das coisas, em um mundo semanticamente normal, é que está o recobrimento/apagamento ideológico da política, da história, do sujeito. Estas ciências, portanto, partem de evidências sobre o mundo que são, na verdade, produzidas por um recobrimento ideológico. Evidências sobre a existência de “objetos e pessoas”; “razão e emoção” e “objetivo e subjetivo”. A ideologia se desdobra, portanto, entre o empírico e o abstrato como forma do idealismo se apropriar destas ciências. Pêcheux irá entender então a importância de se pensar em uma teoria materialista do discurso, em que como ele mesmo disse, não irá resolver as contradições, mas irá lidar com elas de outra forma: materialista.

O que significaria, portanto, pensar uma teoria não subjetivista da transgeneridade? Isso significaria pensar a disforia fora dos moldes da atual psiquiatria que vêm aliando empirismo e subjetivismo na apreensão/construção de um objeto de conhecimento: a transgeneridade vista como disforia/patologia do gênero. Portanto, trata-se de entender aqui a forma material e contraditória da transgeneridade, sua relação com a ideologia e o gênero. É indispensável pensar aqui a relação da transgeneridade com a cisgeneridade. Afinal de contas, a cisgeneridade não é o domingo do sexo (parafraseando Pêcheux quando ele diz que a poesia não é o domingo do pensamento). As evidências sobre pessoas trans* serem doentes, necessitarem de avaliação e cuidados de médicos cisgêneros, dentre tantas outras manifestações, não caem do céu. Elas partem de como a forma-sujeito do gênero, constituída (assujeitada) historicamente e individualizada pelo Estado, produz sentidos sobre o sexo/gênero. Esta forma-sujeito é a cisgênera. A cisgeneridade interpela os sujeitos em seu desígnio de sexo, produzindo evidências objetivas e subjetivas sobre o sexo, dando coerências às identidades de homens e mulheres; homossexuais e heterossexuais; macho e fêmea, etc. A transgeneridade existe porque a ideologia (ou gênero/sexo) funciona pela falha. E por existir falha que é possível resistência às normatividades.

A psiquiatria trata as pessoas trans* de forma colonizadora/civilizatória. Pra mim não há dúvidas que, muito ao contrário do que acreditam fazer, médicos psiquiatras não estão lá para “curarem” a disforia. Estão lá (nos espaços institucionais das clínicas) para justamente reproduzi-la de certa forma (mesmo que pela contradição). A psiquiatria parte de um modelo de gênero que conjuga ora o empirismo ora o subjetivismo para produzir evidências sobre os “transtornos de gênero”. Em um mundo semanticamente normal, sabemos o que é ser homem ou mulher. É isto (o que todo mundo sabe sobre homens e mulheres) que estes médicos esperam para a emissão de laudos (mediação para o reconhecimento civil e médico de pessoas trans*). Espera-se, portanto que a fala destas pessoas (a identidade subjetiva) reflita de forma transparente o que estaria ancorado a uma base biológica (empiricismo). Os sujeitos que escapam desta refração transparente entre o concreto e o abstrato são ignoradas, empurradas por debaixo do tapete: são as travestis marginalizadas, prostitutas.

Acontece que o problema aqui é que a (trans)generidade não é nem da ordem do abstrato nem do empírico. É material, portanto, contraditório. Existem aqui múltiplas formas do sujeito lidar com a disforia de gênero. Narrativas não tradicionais sempre escapam. A psiquiatria, ao não conceber a falha do gênero como constitutiva (justamente por não levar em consideração a materialidade) das identidades, acaba por nos agredir. A psiquiatria, ao partir das evidências sobre a forma-sujeito cisgênera pode (tem o privilégio social de) apagar o político, a história e até mesmo o sujeito. Trata-se do típico discurso terapêutico, que acredita que por estar apartado do político, poderia curar (seria através da fabricação do consenso?). Mas o afastamento da contradição tem um preço muito caro para as pessoas trans*. Proponho um não retorno nesta questão: trata-se de compreender, sob o primado do outro sobre o mesmo, como a contradição irrompe em nossos corpos, como assim textualizamos estas relações de poder pelo simbólico.

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Línguas de madeira e vento trans*?

Uma língua de madeira é, como tratam alguns autores da análise do discurso como Michel Pêcheux e Françoise Gadet, uma língua autoritária, na qual os sentidos sobre as palavra são tomadas na sua relação de transparência com o mundo. Se as palavras, a partir desta concepção, referem de forma transparente a relação mundo-linguagem, depreende-se por certo que exista uma forma, em última instância, mais correta e verdadeira de “nomear as coisas”. Em se tratando de sentidos sobre (as “coisas”) “travestis” e “transexuais”, a língua médica/psi é a nossa língua de madeira: estabelece-se quais são os sentidos destes termos por meio da nosologia psiquiátrica (presentes nos manuais como CID e DSM), na qual o (trans)gênero é patologizado. A língua de madeira serve, como definem os mesmos autores, ao mesmo tempo, para “comunicarem e não comunicarem”. Neste caso, a (não) comunicação se dá sob a forma da colonização cisgênera.

O sentido, entendido aqui, não é sempre passível de deslocamento ou falha, trata-se aliás do contrário: do estabelecimento de critérios (que se propõem unívocos ou como a própria tentativa de evitar ao máximo o equívoco) diagnóstico sobre os “transtornos” ou “disforias” de gênero. Todo transtorno deve ser devidamente rotulado, sob a (ilusão da) transparência da linguagem. O corpo disfórico é tido como possuidor de uma verdade biológica escondida, a qual o psiquiatra deve dissecar através de um interrogatório (!) visando o “correto diagnóstico”. Muita tensão aqui: o diagnóstico correto é tido como uma estrita necessidade, já que algum perigo envolvendo o (cis)gênero está iminente: alguma tragédia está prestes a acontecer. Vendem o perigo e cobram a “solução”. Nossos médicos só poderiam estar para nos salvar, não é verdade? Nos salvar (ou seria curar?) do que mesmo?

O discurso do sujeito trans é tido como uma barreira para a prática médica, já que o mesmo poderia estar camuflando a pretensa verdade inscrita no biológico (da disforia). Estaria “simulando”. A razão desta simulação ainda me parece obscura, mas é certo que o sujeito a faz. O bom sujeito trans deve ser um vetor transparente para que a biologia fale a partir dele, sem ambiguidades. Assim, deve-se restituir, a partir da anormalidade trans*, um mundo “semanticamente normal” sobre o gênero e o (cis)gênero. Os “profissionais” e os “especialistas” do gênero necessitam trabalhar neste espaço em que o real do sexo é domesticado. Não se deve, por exemplo, dizer-se enquanto mulher e gostar de cavalos (!). Mas afinal de contas, qual verdade estaria sendo escamoteada?

O psiquiatra ocupa este lugar social: de dizer a verdade sobre nossas identidades, já que somos despossuídas de auto determinação; nosso lugar enquanto enunciadorxs é sempre a da suspeita, do engodo e da “falsidade ideológica”. Eis que diga o juiz! Este só irá levar em consideração nossa identidade (frente ao jurídico) na medida em que somos mediadas (faladas) por psiquiatras/psicólogos/psicanalistas/endócrinos/cirurgiões/assistentes sociais (cisgêneros). A cisgeneridade é um violento filtro social para pessoas trans, não é a toa que o nosso ingresso no “universo cis” é sempre marcado pela marginalidade e pelo percalço.

Voltando para a língua. Fiz esse texto não para pensar somente na língua de madeira dos médicos, mas também como esta língua é atravessada no próprio discurso das pessoas trans* e também para discutir sobre uma suposta língua de vento que tenho visto circular pelo facebook. Esta língua de vento se dá em resposta à língua de madeira médica/trans*, ela se propõe fluída, como uma crítica e uma saída, às ditas “caixinhas” e às políticas identitárias essencializadas sobre travestis e transexuais. É a língua do “transgênero” e dxs “transgentes”. Mas em que medida essa mesma língua de vento acaba por ser ela mesma uma língua de madeira?

Esta nova língua de vento transgênera parece ter pavor de certas formas de subjetivação que seriam “normativas”: as travestilidades e transexualidades. Paradoxalmente, ao negar o discurso médico, ela precisa negar estas formas de subjetivação. Estas identidades “normativas” precisam ser julgadas, foracluídas do discurso. Só assim chegaríamos à “revolução” (seria, quem sabe, a abolição de gênero de que tantas feministas radicais falam?). O “correto” aqui passa a ser transgênero. Cria-se um efeito de ilusão de unidade, a qual todas as pessoas trans* deveriam (frise bem esta palavra) estar incluídas sob o termo guarda-chuva. Em suma: uma língua que se propõe de vento, mas acaba por se tornar tão autoritária quanto a língua de madeira médica. Uma língua de unificação da nação transgênera à la stalinismo.

O que este discurso parece não conceber é que o próprio gênero funciona através das falhas. E estas falhas se dão sobre a forma da contradição. Ao negar a falha constitutiva do gênero este discurso transgênero se torna surdo para as formas de resistência de travestis e transexuais. Desta forma não se percebe os movimentos de deslocamentos (que se dão pela reprodução) de sentidos. A tensão constitutiva entre paráfrase e polissemia: se tangencia o novo pela repetição.

Por mais que de fato exista um inegável atravessamento do discurso médico normativo no discurso do blog “mundo t-girl”, materializado neste glossário sobre a “Diferenciação básica entre Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans & Andróginos, Cross Dress, Drag Queen, Drag King, Lady-Boys, She-Males” não podemos nos ensurdercer para os deslocamentos que significam enunciar a partir de um espaço muito diferente do médico: a das próprias travestis, neste caso.

Os (sic) “travestis” dos médicos não são as mesmas travestis do blog/grupo “mundo t-girl”. O (sic) “travestismo bivalente ou de duplo papel” do discurso médico não possui o mesmo sentido das “travestis super femininas”. As travestis são significadas (por elas) de outra forma. Aqui elas questionam justamente o mundo semanticamente normal dos médicos psiquiatras: o fato de eu ter “peito e pau” não é uma incongruência. Sou “super feminina” e isso não significa que eu repudie meu órgão genital, por exemplo. Mesmo as “mulheres do terceiro milênio” não são as mesmas “transexuais male-to-female” do discurso médico. As mulheres (transexuais) também (se) designam de forma diferente. Aqui as formas de determinação não deixam mentir: se tratam de deslocamentos de sentidos, sob a forma da contradição.

A meu ver, é muito mais vantajoso observar estas rupturas de sentido que são reais, dar voz aos sentidos que irromperam do não-sentido que circulam já, do que conceber sentidos a priori e calcificados sobre estas sujeitas travestis e transexuais. Nossa interpretação é política, e a forma como nós interpretamos estas formas de (re)existência significam, trata-se de uma responsabilidade ética. E eu acredito que se trate de uma responsabilidade ética para o transfeminismo a não colonização das subjetividades, sobre as formas de estar no mundo e (nos) significar.

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O Domínio Semântico de Determinação das identidades trans*

Muitas pessoas perguntam acerca das identidades trans*: qual é a diferença entre travestis e transexuais? O que significa o * do trans? Levando em consideração que estas perguntas se referem à significação, acho bastante pertinente atentarmos sobre alguns conceitos da Semântica da Enunciação para analisarmos não apenas os sentidos de travestis e transexuais, mas também sobre qual é o estatuto (e implicações) destes sentidos. Esse texto se trata de uma continuidade com o texto “Descolonizando os entremeios de Travestis e Transexuais”, no qual eu abordei como os sentidos de travestis e transexuais são instrumentalizados pelos discursos médico e jurídico para reproduzir transfobia e então, pensar em possíveis formas de resistência a essas normatizações; agora pretendo me aprofundar um pouco mais em questões linguísticas propriamente, como a enunciação, designação, referência e sentido, conceitos que foram só tangenciados no texto anterior.

Durante esse texto, muito embora o termo trans* abranja diversas identidades, estarei focando especialmente os termos travesti e transexual. Cabe ressaltar também que, por tratar deste recorte, irei privilegiar o espectro feminino das identidades trans*, ou seja, pessoas trans* que foram designadas com o sexo masculino ao nascer. Digo isso pelo fato do recorte travesti/transexual só operar com estas pessoas, visto que homens trans* e outras pessoas trans* que performam um espectro masculino de identidades ou não binário (podendo incluir também o espectro de feminilidade, como bem me apontou Carina Rez Lobos) não serem designados enquanto travestis, mas apenas como transexuais pelo discurso médico/jurídico. Este fato pode indicar a possibilidade de um controle menos rígido operado pelos discursos médicos e jurídicos sobre essas pessoas trans*, na medida em que as diferenças entre travestis e transexuais são instrumentalizadas pelos discursos médicos e jurídicos para produção de abjeções e especificamente transmisoginia; mas como isso ainda não foi analisado profundamente, digo que se trata ainda de uma hipótese. Mesmo operando este recorte, acredito que esta análise possa ser útil para se pensar as transmasculinidades e não binaridades, na medida em que homens trans* e outras pessoas trans* designadas com o sexo feminino ao nascer que se identificam com um espectro masculino/não-binário sofrem inúmeras deslegitimações de suas identidades que são comuns às pessoas trans* de um espectro feminino.

Digo de antemão que as perspectivas enunciativas, que levam em consideração que o sentido não se dá a priori, mas sim no e pelo ato de enunciação, me são bastante empoderadoras para se pensar em práticas de resistências transfeministas (como espero mostrar aqui). Contudo, vale ressaltar que nenhuma observação que faço aqui pretende ser definitiva, na medida em que, como podem ter visto neste blog, estamos e estaremos sempre atualizando nossas posições e que, muito embora estas perspectivas linguísticas levem em consideração o que é externo à linguagem, as questões identitárias são complexas, de forma que elas podem envolver outros desdobramentos políticos e subjetivos que eu a princípio não poderia supor em uma breve aplicação teórica que se propõe linguística.

Então, uma primeira observação que eu acho relevante é, ao invés do próprio significado destas palavras, falar sobre o que se espera de uma pergunta sobre o que significa ou o que são as identidades trans* e apontar certas concepções de linguagem. As pessoas por vezes criam uma ligação muito forte entre o nome dado a determinada coisa e a própria coisa, de forma que muitas vezes as pessoas esperam que quando nomeamos ou designamos travestis e transexuais estaríamos apenas rotulando certas pessoas que existiriam previamente no mundo, estabelecendo uma relação de referência com o mundo. O que nos mostra, contudo, autores como Eduardo Guimarães (2007), é que a própria linguagem cria um modo específico de apreensão do real, ou seja, cria os seus próprios referentes através de um processo de designação, que é o modo pelo qual o real é significado na linguagem, ao invés de meramente apontá-los no mundo.

Algo interessante de se notar também é para a própria pergunta “Qual a diferença entre travestis e transexuais?”. Percebam que, ao invés desta, poderiam ser feitas outras duas perguntas separadas, em busca do sentido de cada palavra separadamente. Mas acredito não ser mera coincidência ser mais comum vermos a pergunta acima do que simplesmente “O que é travesti? / “O que é transexual” justamente porque “travesti” e “transexual” se definem mutuamente. Ou seja, o sentido de uma depende da outra, pois o sentido das palavras se dá sempre em relação a outras palavras, e não enquanto classificação de objetos (Guimarães, 2007).

Levar em consideração esta posição não-referencialista irá nos impedir também de definir os sentidos de travestis e transexuais como um dicionário faz. Também não será possível admitir que os significados dessas categorias podem ser apreendidos (como frequentemente se faz) em pequenos glossários acerca de determinados temas. Ao contrário, o dicionário e o glossário são antes de tudo, textos, textos esses que apresentam algumas relações de sentidos sobre esses termos construídos na enunciação, mas que não são universais. Não existe, portanto, um sentido meramente abstrato e virtual que um dicionário ou glossário poderia apreender de forma “neutra”.

Aliás, é importante ressaltar o poder de um certo fetiche que muitas pessoas conferem ao dicionário. Assim como é muito comum vermos uma instrumentalização do discurso biológico para deslegitimar as identidades trans* (“uma mulher trans* na verdade é homem pela biologia”) o mesmo opera com as acepções encontradas no dicionário. Já me cansei de ver gente dizendo que travestis são “homens que se vestem de mulher” porque leram isso no dicionário. Então cabe aqui a advertência: o que está expresso no dicionário muitas vezes pode não representar a forma como certos grupos minoritários veem a si mesmos, neste caso, travestis; e também que esta acepção no dicionário não é “neutra”, ela está sim marcada ideologicamente.

Guimarães (2007) propõe o conceito de Domínio Semântico de Determinação (DSD) que visa explicar o funcionamento da significação em um texto. Segundo ele, a “determinação é fundamental para o sentido das expressões linguísticas”. Então, supondo os enunciados:

  1. Reportagem mostra rotina de travestis e prostitutas na noite de Teresina.
  2. Reportagem mostra rotina de travestis e prostitutas na noite de Teresina. Os clientes de umas e os das outras raramente se encontravam.
  3. As mulheres prostitutas e os travestis entrevistados relataram que o fato de serem profissionais do sexo configura-se como uma profissão legítima.
  4. As prostitutas entrevistadas, tanto mulheres cisgêneras quanto travestis, disseram sofrer discriminação.
  5. Mulheres que se prostituem, sejam travestis ou cisgêneras, estão propensas a sofrerem discriminação

Eles nos mostram como as relações entre as palavras no texto constituem o sentido delas. Embora em (1) já se encontre uma oposição entre travestis e prostitutas, é em (2) e (3) que se reforça a relação de oposição entre, respectivamente, travestis e prostitutas e entre mulheres e travestis. Em (3) mulheres determina prostituta, mas não travestis, e isso fica ainda mais marcado pelo uso do flexão de gênero gramatical no masculino para travestis. Porém, em (4), prostituta designa de forma diferente dos enunciados anteriores, pois determina não apenas mulher, mas também travesti. Em (5), por sua vez, a designação de mulheres é diferente de todas as demais, pois determina tanto travestis como cisgêneras.

O chiste da tirinha abaixo, publicada pela página do facebook “Travesti Reflexiva”, provém diretamente das relações de sentido estabelecidas entre homem e travesti construídas na enunciação encenada por um diálogo entre quadrinhos. Se homem determinaria (ou predicaria) travesti, estabelecendo uma relação de sinonímia, a outra via de sentido, travesti determinando (ou predicando) homem, passa a soar absurda. A tira lida com certas incoerências do discurso cissexista por rememorar na primeira tira um enunciado que é socialmente dizível e amplamente difundido de que “travestis são homens” que é então problematizado ao apontar, interrogando acerca da designação que o próprio interlocutor faz de si, a evidência de existirem outras relações de sentidos que circulam socialmente entre os dois termos além da mera sinonímia.

travestireflexiva

Desta forma, a partir destes exemplos e das contribuições teóricas desta área da linguística, é que deixamos de considerar o sentido como já dado no mundo (assumindo, portanto, uma concepção não-referencialista da linguagem) e apontar para a instabilidade constitutiva do sentido, já que temos que sempre levar em consideração o sentido como relações entre palavras em um determinado texto, que por sua vez é entendido como um conjunto de enunciados articulados entre si. A língua, nesta perspectiva, é pensada não como uma estrutura fechada, mas como um sistema de regularidades determinado historicamente que é exposto ao real e aos falantes nos espaços de enunciação (Guimarães, 2007).

Ao ler as análises de Bruno C. Barbosa (2013) sobre como são feitos os usos das categorias travesti e transexual e a partir das minhas leituras de reportagens e artigos que envolviam travestis e transexuais na mídia e em alguns artigos científicos, percebo que existe a construção de um imaginário de “superficialidade/abjeção criminal” associada à identidade travesti e um imaginário de “profundidade/abjeção patológica” associada à identidade transexual (de forma parecida com o recorte de Barbosa em seu artigo entre artificialidade e naturalidade). Podemos dizer que os sentidos provenientes deste imaginário são reforçados/criados pelos discursos médicos e jurídicos, que como já disse, se ancoram por legitimação institucional capazes de uma maior circulação o que garante sua hegemonia.

As listas que se seguem não configuram propriamente um DSD, na medida em que não analisei um texto ou conjunto de textos, mas já parti da identificação de uma memória discursiva sobre o sentido destes termos, de forma que o que chamei, por exemplo, de “ambígua em relação ao binário de gênero” incluir diversas determinações concretas possíveis, como “não ser/não se sentir homem nem mulher”. Esses imaginários vão influenciar, portanto, a forma como travesti e transexual são reescrituradas na enunciação. Isso se dá através dos determinantes de travesti como:

  • “ambígua em relação ao binário de gênero”
  • “não passível de ser diagnosticada como portadora de distúrbio de gênero”
  • “não fez/não quer fazer a cirurgia de redesignação sexual”
  • “sexualmente ativa”
  • “transexual falsa/ mulher falsa”
  • “traços masculinos”
  • “marginal”
  • “criminosa”
  • “prostituta”
  • “subversiva”

e de transexual como:

  • “não ambígua em relação ao binário de gênero”
  • “passível de ser diagnosticada como portadora de distúrbio de gênero”
  • “fez/quer fazer a cirurgia de redesignação sexual”
  • “não sexualmente ativa”
  • “transexual verdadeira/ mulher verdadeira”
  • “feminilidade unívoca”
  • “disfórica”
  • “transtornada”
  • “suicida”
  • “normativa”

Vale uma observação sobre como as determinações encontradas em uma categoria implicam o sentido das outras determinações da outra categoria de uma forma mais ou menos implícita, criando uma rede intrincada e complexa de sentidos que visa produzir uma coerência entre eles que acaba por reforçar as supostas diferenças essenciais entre travestis e transexuais. Estas diferenças são tomadas como evidências de sentidos que acabam por reforçar a aparência das palavras como substâncias (objetos no mundo) que por sua vez corroborará a hipótese de gênero (ou seus transtornos) enquanto uma categoria nosológica e a transexualidade/travestilidade como patologias diagnosticáveis[1]. Afinal de contas, se o sentido destas categorias estiver apenas “colado” em algum corpo fora da linguagem, o corpo tido abjeto das pessoas trans*, estabelecendo uma relação de referência, bastaria garantir o crivo e separar o joio do trigo, de modo à pretensamente observar se a relação entre a enunciação/identidade da pessoa realmente conferir com uma suposta realidade: as pessoas trans* falsas de um lado e as verdadeiras de outro.

Voltando às determinações, é de se esperar que uma pessoa marginalizada (determinação de travesti) tenha muito mais dificuldade de poder concretamente “ser diagnosticada como portadora de um distúrbio de gênero”, justamente pelo fato recorrente das travestis não conseguirem ao menos acessar cuidados básicos de saúde [2], interditando, de certa forma, que travesti seja determinada por termos afeitos à saúde mental, já que estes termos são condicionados a um crivo psicológico (que pressupõe, portanto, o acesso a cuidados de saúde). Aliás, há alguns casos de “exceção” a esse caso (que acabam por só reforçá-lo na verdade), quando a determinação “suicida” muitas vezes só é utilizada para determinar travesti em ocasiões muito específicas (mas apenas para reforçar os imaginários de que falei), em especial para justificar a necessidade de terapias psicológicas/psiquiátricas obrigatórias, articulando o mito da visão suicidógena (Bento, 2012) e a validade do diagnóstico médico.

Da mesma forma, existe uma interdição de determinantes de transexual que dizem respeito à profissão, pois se por acaso transexual for determinada como prostituta, existirá uma associação entre sua profissão e uma consequente deslegitimação de sua identidade, na medida em que se associa fortemente a prostituição com diversos outros determinantes de travestis, como “sexualmente ativas” e “marginais/ criminosas”. Neste sentido, certos fatos externos à linguagem refletem como as relações de determinação linguística são construídas na enunciação. Contudo, isso não quer dizer que exista, como disse anteriormente, uma relação direta e inequívoca entre mundo e linguagem, mas como define Guimarães (2007), a partilha do real não se projeta sobre a linguagem diretamente e o caráter relacional do sentido ficou bastante evidente, na medida em que travesti significa na relação de seus determinantes com o que justamente não significam os determinantes de transexual e vice-versa. Outro fator externo à linguagem que certamente influencia as designações e reescriturações de travesti e transexual feitas pela enunciação são recortes de raça, classe e orientação sexual que poderei abordar numa futura análise.

A transgressão de gênero das travestis é determinada pelo aspecto de “vestir” (remetendo a uma superficialidade) enquanto as transexuais pelo de “sentir” (remetendo a uma profundidade). A retificação deste recorte de sentidos (orientados pelos imaginários superficialidade/abjeção criminal e profundidade/abjeção patológica) tenderá a reproduzir as formas de dominação através de cissexismos diversos, em especial a marginalização das travestis que serão determinadas com traços que “superficializam” tanto seus gêneros quanto suas próprias humanidades, já que suas identidades femininas se deslegitimariam por meio destas formas de se designar “superficiais”. Do outro lado, há as determinações que “aprofundam” os sentidos de transexuais na medida em que, ao “explicar” subalternamente suas existências e operando por meio de essencialismos (estratégicos ou não), houvesse a necessidade de apelar a praticamente uma construção metafísica, como vistos frequentemente em “almas femininas aprisionadas em corpos masculinos” e “diagnosticadas”. Transexuais são assujeitadas a formularem (ou serem formuladas) por meio dessas expressões a fim de legitimarem suas existências e conseguirem sobreviver em uma sociedade nitidamente transfóbica por meio da vendida “cura” (através dos dispositivos do diagnóstico e do laudo) por médicos psiquiatras, por isso são abjeções patológicas. Já travestis são a face vazia do Outro, na qual não foi possível a construção de uma inteligibilidade pelo discurso médico, tratando-se de uma dupla abjeção por não apenas infringir a lei da cisgeneridade compulsória, mas a própria lei do gênero enquanto binário; essa dupla infração não é perdoada pelo cistema, por isso são abjeções criminais. Não à toa associarem o lugar social de transexuais com as clínicas e das travestis com a prisão e as pistas de prostituição, o que remete bem aos estereótipos de “doida” e “puta” apontados por Barbosa (2013).

No entanto, quero mostrar, assim como ele fez acerca das potencialidades de deslocamento dos sentidos de travestis e transexuais , que a enunciação torna possível uma forma de empoderamento e resistência antinormativa, pois é a partir dela que pode existir a auto identificação (que tanto prezamos no transfeminismo) sobre nossas identidades. Ao invés de designar as diferenças entre travestis e transexuais como postulam médicxs e juízxs é possível designar as semelhanças (ou diferenças, de fato, já que vão sempre tender a existir, mas que sejam agora relevantes politicamente) e a partir disso, ensejar formas de solidariedade entre pessoas trans* que visem à crítica institucional da transfobia [3]. Como exatamente fazer isso? Não é uma resposta fácil, nem dada. Espero que consigamos construir isso coletivamente.

Apontar a opacidade da língua, portanto, é apontar que existem disputas. Se tomarmos os sentidos já dados como mera virtualidade acerca de travestis e transexuais estaremos dando de mão beijada a supremacia de apenas uma forma de apreensão deste real, que não é à toa que se trata da apreensão feita pelos discursos médicos e jurídicos que visam apenas produzir controles cisnormativos, marginalidades e abjeções sobre nossas identidades. Apontar o funcionamento da língua se mostrou para mim como uma forma de resistência à própria patologização das identidades trans*, pois, levando em consideração que as categorias travesti e transexual não configuram substâncias/seres, mas sim palavras, a apreensão deste real por dispositivos de saber da biologia/medicina se torna não apenas um erro epistemológico, mas a própria reprodução das relações de poder que envolvem a transfobia e transmisoginia.

1. O diagnóstico de transexualismo(sic) é o único “viável”, na medida em que a travestilidade, mesmo sendo patologizada e classificada enquanto “travestismo”(sic), não possui efeitos práticos a não ser como constituinte do próprio sentido do diagnóstico de transexualismo(sic) por mera relação de diferença e negação, enquanto Outro.

2. Inclusive, pelo fato de que travestis justamente por não conseguirem acessar cuidados básicos de saúde, são constantemente noticiados seus problemas de saúde em decorrência da aplicação de silicone industrial e da falta de acompanhamento endocrinológico.

3. Sem, contudo, apagar as especificidades, atentando para recortes intersecionais. O que proponho é designar as diferenças que sejam relevantes para se pensar, a partir destas representações, ações políticas que promovam os direitos das pessoas trans* e demais grupos oprimidos.

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Bruno Cesar. “Doidas e putas”: usos das categorias travesti e transexual. Sexualidad, Salud y Sociedad-Revista Latinoamericana, n. 14, p. 352-379, 2013.

BENTO, Berenice; PELÚCIO, Larissa. DESPATOLOGIZAÇÃO DO GÊNERO: A POLITIZAÇÃO DAS IDENTIDADES ABJETAS. Estudos Feministas, v. 20, n. 2, p. 569-581, 2012.

GUIMARÃES, Eduardo. Domínio semântico de determinação. A palavra: forma e sentido. Campinas: Pontes, p. 77-96, 2007.

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Descolonizando os entremeios de Travestis e Transexuais

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras e True Love.

Por Bia Pagliarini Bagagli

Sinto a necessidade de abordar uma velha questão, que mesmo sendo velha, tenho certeza que continuará a ser posta na ordem do dia através de perguntas e controvérsias acerca das diferenças (opacas, já vou adiantando) entre “travestis” e “transexuais”. Acho interessante falarmos sobre isso pensando o dia da visibilidade trans*, já que muitas vezes (senão todas), são a partir destas duas categorias que pessoas trans* são designadas e, portanto, trazidas para a ordem da representação e do cognoscível (e também para uma ordem do político, como espero mostrar). Quando se pergunta acerca do “estatuto” de uma pessoa trans* - se ela é “travesti” ou “transexual” – não está ocorrendo apenas uma mera pergunta se ela “é travesti ou transexual”. Este tipo de pergunta está atrelada a uma memória discursiva sobre os sentidos de “travesti” e “transexual”, que é rememorada no momento da enunciação, tencionando constantemente os sentidos sobre essas duas palavras na enunciação.

Autores como Bruno César Barbosa e Jorge Leite Júnior¹, mostram como essas categorias médicas referentes à transgeneridade mudaram com o passar do tempo. O que parece ocorrer é uma variável flutuação dos termos “travesti” e “travestismo” (sic); “transexual” e “transexualismo” (sic); “transtorno de identidade de gênero” e “disforia de gênero” (dentre outras variações). Ora são termos mais ou menos intercambiáveis, ora não; ora significam mais ou menos a mesma coisa e ora não². Fica bastante evidente que se trata, antes de uma questão meramente médica ou psíquica, afeita aos campos da psiquiatria e psicologia, uma questão linguística, por estarem expostas questões da significação de palavras – e seus equívocos – permeados e indissociáveis de seus contextos históricos. Percebem-se aí como certas palavras tem uma “importância” pela qual o discurso médico insiste, através de inúmeros pequenos e contínuos deslocamentos, uma apreensão definitiva, legitimada e verdadeira do real.

Os esforços presentes nas diversas categorizações e subdivisões das identidades transgêneras, tanto inicialmente feitas por Harry Benjamin nos anos 50 e 60 quanto pelos atuais manuais diagnósticos como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e CID (Classificação Internacional de Doenças), operam com o intuito de produzir um norte capaz de conter, pelas palavras e nosologias, a diversidade tida como patológica do gênero. Essas categorizações, com um suposto intuito inicial de descrever objetivamente um “fenômeno”, acabam por prescrever e idealizar, dentro da própria categoria abjeta da transgeneridade, corpos e identidades mais ou menos inteligíveis, utilizando para isso as categorias “travesti” e “transexual” e outros conceitos analíticos como “falso” ou “pseudo”, “diagnósticos diferencias” e “intensidades” (referentes aos tidos “desvios” de gênero).

Afinal de contas, o que está em jogo é o preciso “diagnóstico” capaz não apenas de desvelar uma suposta verdade essencial e anterior sobre corpos, identidades e práticas, mas também capaz de imputar um poder colonizador de natureza biomédica: o “tratamento” tido como correto. Médicos e profissionais psi, ao conceber os sujeitos trans* como completamente incapazes de decidir sobre si mesmos, são tidos como corpos passivos que o conhecimento médico deve preencher. Para isso, o poder médico concebe práticas que julgam proteger os sujeitos trans* de si mesmos. É então, por exemplo, que o mito³ da correlação mágica e completamente linear entre cirurgias de redesignação sexual e suicídios é trazido à tona para alertar sobre os “perigos” de uma maior autonomia para as pessoas trans*. As pessoas trans* são destituídas de autonomia sobre seus corpos, narrativas e identidades através destas formas perversas de controle cispatriarcal. E estas formas de dominação irão articular a dicotomia “travesti-transexual” em seu favor.

Para isso, vão operar discursos que procuram estabelecer uma coerência inequívoca entre as palavras, produzindo então uma verdade essencializada sobre esses dois termos. Essa construção de coerência, que visa esconder, por um processo de naturalização apoiada pelas ciências médicas e psi, o caráter contraditório dos termos, vai conseguir operar um controle biopolítico dos corpos e identidades trans*, na medida em que estes termos são acionados e articulados pelos saberes e poderes da medicina e do jurídico enquanto “mediadores” de direitos civis. Para citar dois exemplos clássicos: as resoluções sobre o “diagnóstico” (que permitirá uma pessoa trans* acessar cuidados básicos de saúde) e dos processos judiciários de retificação de documentos (que são condicionados por laudos psi/médicos/sociais pautados, em sua maioria, na patologização da transexualidade). Este controle está guiado por um processo de legitimação4 da identidade transexual em detrimento da travesti. Isso ocorre através de uma burocratização do acesso a atendimento médico e jurídico, pela estrita necessidade da apresentação do laudo de transexualidade. Percebam que quando falamos sobre o tal “laudo”, enquanto um dispositivo normativo requerido para o acesso à cidadania, não é qualquer laudo, na medida em que um hipotético laudo atestando travestilidade jamais teria o mesmo valor que aquele atestando a transexualidade. Nem ao menos concebemos a ideia de um laudo de travestilidade, pois é a transexualidade a categoria almejada e regulada. Isso se torna especialmente cruel, na medida em que reconhecemos a existência de pessoas travestis que requerem certas demandas que são as mesmas das pessoas transexuais, e que são ameaçadas por este dispositivo de terror que é o laudo médico/psi/social. Em última instância, a exigência do laudo de transexualidade como mediador de direitos humanos é uma forma de excluir pessoas trans*, em especial, travestis, negrxs, deficientes e pobres.

Podemos, a partir do momento que compreendemos as relações de poder que articulam essa dicotomia identitária, fomentar novas formas de se pensar e entender as identidades travesti e transexual: extrapolando o “bom-senso” médico-psiquiátrico e jurídico; reafirmando a humanidade das pessoas trans*, em especial das travestis; exigindo a desburocratização do acesso a direitos civis para a população trans* e o respeito à auto identificação; apontando para a própria relação de poder (que procura em si mesma se mostrar inexistente para garantir sua dominação) que está sendo articulada pelos discursos médicos e jurídicos e denunciar os cinismos políticos no que se referem políticas públicas acerca da transgeneridade; problematizar, questionar e borrar os limites entre as duas categorias, ao apontar para os efeitos de pré-construído (o efeito que produz uma transparência e a necessidade de um já-dito para fazer sentido) delas, elaborar, enfim, formas emancipatórias, descolonizadas, empoderadoras e não prescritivas de “ser” travesti ou transexual e negar os entendimentos cisgêneros e patriarcais sobre nossas identidades trans*/femininas.

Isso significa que não estamos discutindo sobre se travestis fazem a cirurgia de redesignação sexual ou não ou outra coisa parecida (como frequentemente ocorrem em discussões homéricas e desnecessárias), mas sim entender que não existe forma correta e definitiva de ser travesti e transexual. Quero, portanto, acirrar e problematizar esses termos a ponto de extrapolar uma nova perspectiva que pode soar absurda que se refere em última instância para a impossibilidade de uma definição unívoca para tais palavras e que, portanto, “existem” e ao mesmo tempo “não existem” as “diferenças” entre travestis e transexuais.

Vamos entender como se constrói a subalternidade5 da identidade travesti em relação à transexual e não naturalizar esta relação. Trata-se de colocar estas palavras de volta ao lugar em que pertencem ao compreendê-las na história e, portanto, enquanto materialidades contraditórias do discurso. Desta forma, se tornam passíveis de serem contestadas as articulações ideológicas destas palavras que corroboram cissexismo. Por fim, cabe desvelar o absurdo e perversidade que é controlar e oprimir pessoas trans* por meio de suas próprias categorias identitárias (que são também, em última instância, palavras). O empoderamento se dará também através das palavras e acredito que as palavras “travesti” e “transexual” trazem à cena um palco privilegiado e necessário para práticas de resistências transfeministas.

Notas

1. Ver Nossos corpos também mudam: sexo, gênero e a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico, de Jorge Leite Júnior e Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e transexual, de Bruno Cesar Barbosa.

2. Relevante igualmente apontar para, ao mesmo tempo em que um discurso médico de língua inglesa influenciou o discurso médico brasileiro (e consequentemente, influenciando terminologias), produzindo, portanto, algumas correlações de sentidos entre termos traduzidos, é de suma importância notar as incompatibilidades de sentidos produzidas entre as línguas, devido a não possibilidade de intercambialidade transparente entre um termo de uma língua e outro. Posto isto, deve-se levar em consideração não apenas equívocos entre línguas, mas também dentro de uma mesma língua e as relações de sentidos que daí decorre.

3. Sobre esse mito (dentre outros) ser articulado para a permanência do diagnóstico de transexualidade, ver LUTA GLOBALIZADA PELO FIM DO DIAGNÓSTICO DE GÊNERO?, de Berenice Bento.

4. Legitimação precária, uma vez que a categoria transexual está condicionada a uma noção patológica e nosológica, destituindo, portanto, qualquer agenciamento e auto identificação por parte da pessoa trans*. Essa legitimação estará condicionada a um dispositivo normativo, na qual pessoas que apresentem características indesejadas ou ininteligíveis quanto ao gênero (ou outros vetores), vão ser facilmente identificadas como travestis e então marginalizadas.

5. Subalternidade esta que só pode ser entendida através de uma perspectiva intersecional, na qual vetores de classe, raça e (performances de) gênero, dentre outras, são consideradas. No que se refere à construção da subalternidade associada à travestilidade, recomendo a leitura dos autores supracitados.

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O Estatuto do Nascituro e o controle de todos os nossos corpos

Aparentemente, hoje o Estatuto do Nascituro voltará à pauta do congresso. O Estatuto do Nascituro é um PL absurdamente machista que visa controlar o corpo das mulheres cis, determinando que a vida começa na contracepção e garantindo direitos ao feto/embrião. O projeto é claramente uma tentativa de restringir ainda mais o aborto, nos dois únicos casos onde ele é permitido no Brasil: estupro e risco de vida para x gestante.

Para além de discutir como isso afeta homens trans* que poderiam necessitar de um aborto, o ponto desse texto é discutir o controle do Estado sobre nossos corpos. Nós, trans*, sabemos como é ter nossos corpos controlados e regulados pelo Estado – literalmente. Muitxs de nós não utilizamos hormônios sem autorização médica. Muitxs de nós não fazemos nenhuma alteração corporal sem um laudo psiquiátrico nos autorizando. Nossas vidas estão sob total controle médico e jurídico que arbitrariamente decide sobre nossos corpos e identidades. Através da patologização trans*, se arrogam no direito de controlar nossas vidas. Somos eternamente xs “disfóricxs de gênero”.

Da mesma forma, o Estatuto do Nascituro planeja perversamente retirar os já pouquíssimos direitos que mulheres cis têm de abortar nos casos já citado. Planejam controlar a contracepção e com isso controlar e legislar sobre os corpos das mulheres cis. O Estatuto é uma tentativa de instaurar a força uma teocracia em nossa sociedade. A perversidade do Estatuto do Nascituro e seus efeitos são tão abrangentes, que abrirá uma brecha para tornar mulheres cis automaticamente criminosas em potencial quando gestantes; impedirá pesquisas com células troncos e afins; estipulará através de uma visão teocrática quando se inicia a vida; ignorará (ainda mais) as mulheres cis vítimas de abortos inseguros – em especial as mulheres pobres.

Um Estado que legisla sobre determinados corpos é, como bem sabemos, um estado violento, repressivo, opressor. Lutamos já há algum tempo contra o controle do Estado em relação aos corpos trans* e não podemos permitir tais investidas para a ampliação desse controle para nenhuma outra mulher.

Para mais informações:

http://estatutonascituronao.fw2.com.br/

http://contraoestatutodonascituro.wordpress.com/

 

 

 

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