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Cisgeneridade e silêncio

Judith Butler (2003) problematiza a forma como a categoria de “mulheres” é representada ao apontar para os perigos dessa representação (operada pelo feminismo) ao produzir sujeitos em “conformidade com o eixo diferencial da dominação”, o que certamente acarreta limitações políticas. Isso fica bastante evidente quando vemos como a categoria mulheres é cindida nos vetores de raça, classe, orientação sexual, regionais e a importância do feminismo entender esses vetores intersecionalmente. O que propomos no transfeminismo é justamente isso: entender um vetor intra-gênero que se refere à transgeneridade das mulheres. Mas o que está sendo posto aqui é que esse vetor não é da ordem do já-dado ou natural. Tivemos (e temos) que lutar para essa representação e acredito que, no nosso caso, trata-se de uma luta bastante peculiar, já que justamente mulheres trans* não são entendidas, vistas e designadas (como forma de se simbolizar o real pela linguagem) como mulheres “verdadeiras”. São mulheres vistas enquanto alvos da violência misógina+transfóbica e, ao mesmo tempo, excluídas da “mulheridade”.

Proponho pensar a exclusão das mulheres trans* da mulheridade (os efeitos de sentido que corroboram a construção da “mulher verdadeira/biológica/de nascença”) se dando através da produção de sentidos de evidência acerca dos sujeitos homem e mulher como forma de interpelação ideológica pela cisgeneridade compulsória. Também defendo a importância de se pensar analiticamente o conceito de cisgeneridade para compreender a materialidade do sexo em sua maior totalidade ou complexidade.

Butler (2003) afirma também que a “categoria mulheres só alcança estabilidade e coerência no contexto de matriz heterossexual”. Bom, não se trata aqui de questionar isso propriamente, mas apontar uma lacuna que passou a ser óbvia a partir dos apontamentos transfeministas: e quanto à matriz cisgênera? É extremamente recorrente ver em textos de teóricxs queer a problematização da heterossexualidade compulsória. Mas jamais (salvo raríssimas e circunscritas exceções) vi autorxs falarem acerca da cisgeneridade compulsória. A que se deve isso?

Certamente o fato delxs serem autorxs cisgênerxs importa, acarretando na restrição da problematização do gênero a conceitos afeitos à orientação sexual. Isso também não está desvinculado do fato de que pessoas homossexuais/bissexuais/não-heterossexuais (cisgêneras) conseguirem acessar a academia e pessoa trans* em sua esmagadora maioria não. Percebam que discussões afeitas à orientação sexual não são diretamente coextensivas às discussões afeitas à identidade de gênero. Com isso não quero resumir o fato dessxs autorxs enquanto pessoas empíricas que são cisgêneras, mas considerar a presença da formação discursiva (o que é possível de ser dito) a que se inscreve o sujeito e a relação dos sentidos a partir de uma posição de sujeito (o sujeito-cisgênero neste caso); conceitos esses formulados pela corrente francesa da Análise do Discurso.

Essa relação de sentido (ou interdição de sentido) me deixa bastante perplexa. Essxs autorxs, ao falar sobre o funcionamento das normas de gênero, utilizam o conceito relacionado à orientação sexual (heterossexualidade) ao invés do conceito relacionado diretamente ao gênero (cisgeneridade). Com isso não quero dizer que não é importante analisarmos como as normas de gênero se intersecionam com questões afeitas à orientação sexual. Mas quero frisar que a impossibilidade destes diversxs autorxs de pensarem numa matriz cisgênera significa através do não-dito. Ou seja, dizer “heterossexualidade compulsória” não significa em si mesmo, também significa pelo fato de não se ter dito outra coisa (“cisgeneridade compulsória”), o que configura um movimento escorregadio “entre a trama das falas” e um traço deixado pelo silêncio. Para tornar o silêncio visível é preciso observá-lo indiretamente por métodos (discursivos) históricos, críticos, desconstrutivistas (ORLANDI, 2007).

Compreender como o silêncio significa me parece extremamente relevante para entendermos a cisgeneridade. Aqui uso o silêncio como forma de significar como formulou Eni Orlandi (2007), não enquanto falta ou ausência de sentido. Também não é o silêncio místico ou mágico (bastante explorado pelas religiões), mas o silêncio em sua materialidade significativa, enquanto presença e não enquanto o inefável.

A cisgeneridade funciona enquanto produtora de normas de gênero/sexo através do silêncio e também só pôde ser pensada/criada (e então dita) porque algo (o gênero/sexo) se significou e se significa no silêncio. O silêncio, segundo Orlandi (2007) não é transparente e atua na passagem entre pensamento-palavra-coisa.

Nesse sentido, quando a autora diz que “o silêncio é fundante”, podemos entender que o silêncio funda a cisgeneridade. Esse silêncio se dá ao mesmo tempo em que produz coerências e inteligibilidades às identidades dos sujeitos cisgêneros e interdições à plena identificação de gênero aos sujeitos transgêneros. Essa interdição é responsável pela produção de abjeções relacionadas à transgeneridade. Mas essa interdição também enseja formas de resistência pelxs subalternxs.

Então quando pensamos sobre formas de quebrar este silêncio (que se deu por um irromper da linguagem dentro do próprio silêncio), através da nomeação da cisgeneridade em um dito, vislumbramos implicações políticas (ou a ligação do simbólico com o político) e de deslizamentos de sentidos sobre “homens” e “mulheres”. Isso porque “o silêncio intervém como parte da relação do sujeito com o dizível, permitindo os múltiplos sentidos ao tornar possível, ao sujeito, a elaboração de sua relação com os outros sentidos” (ORLANDI, 2007, p.89).

Essa quebra de silêncio (a linguagem) funciona como uma forma de “domesticação da significação”. Mas certamente este retorno à linguagem que o termo cisgênero proporciona não se trata de um retorno ao mesmo. Produz-se uma nova identidade através da linguagem, com uma coerência, totalidade e unicidade novas. Vejo que uma passagem pelo silêncio tornou possível uma fala improvável e subalterna de se irromper no silêncio, a fala das pessoas trans* ao nomearem os normais, as pessoas cis. Vozes historicamente silenciadas assim como suas questões, suas vivências, perspectivas e opressões.

Esse novo irromper da linguagem proporciona outras formas de interpretação de algo já aparentemente dado, por exemplo, quando apontei a minha estranheza ao uso de “heterossexualidade” para se compreender o gênero, ao invés de “cisgeneridade”. Nesse processo apontamos as lacunas e os equívocos, questionando a completude do que foi dito.

Cabe aqui a distinção de duas formas de silêncio propostas por Orlandi (2007): o silêncio fundante (necessário para todo o processo de significação) e política do silêncio (o recorte de um sentido a partir de uma posição do sujeito). Assim, como disse, por um lado a opção por se falar acerca da “heterossexualidade compulsória” foi feita a partir de um recorte de acordo a uma posição do sujeito-cisgênero e do outro, a própria possibilidade desta forma de significação (se fundar) se deu através do silêncio fundador. Ambos de certa forma trabalham com o silêncio em torno da cisgeneridade para fazerem sentido. Então, como prática de resistência, através da “passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras”, torna-se possível tanto o surgimento do sentido de cisgeneridade ou do termo cisgênero quanto a ocupação de um lugar emancipatório para o sujeito-transgênero: a relação com o Outro passa a ser redefinida. Aqui está a dimensão política do silêncio, na medida em que recorta o dizer, como define a autora.

Referências

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade; tradução, Renato Aguillar. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. - 6ª ed. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

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Por um conceito de sexo transfeminista

Em tempos de carnaval, em que pessoas cisgêneras (em especial, homens) se veem livres para tratar mulheres trans* e travestis com chacotas enquanto enganadoras, acho bastante relevante falar como o aparentemente inocente conceito de sexo implica nestas formas cruéis e opressoras de se compreender as pessoas trans*. Diversos autores – como Judith Butler - vêm questionando e problematizando com bastante minúcia o conceito de sexo e o estatuto de sua materialidade. Essas discussões colaboram para uma perspectiva essencial para compreendermos práticas e teorias transfeministas, pois trazem o caráter político/ cultural do sexo, e não apenas, como tradicionalmente foi entendido, acerca do conceito de gênero. Aqui, neste primeiro momento, não me interesso em aprofundar estes debates sobre as controversas acerca da materialidade do sexo, mas sim, enquanto pessoa trans* transfeminista que está iniciando seus estudos nestes autores e nestes temas, apontar minhas impressões sobre algo que ainda me parece incipiente nestes debates: a representação do sujeito coletivo e político de pessoas trans*.

Acredito que esta falta se dê justamente pelo apagamento/silenciamento das questões tipicamente transfeminista pela brutal violência com a qual são submetidas as pessoas transgêneras, que as impedem de acessar direitos básicos, quem dirá espaços como a academia para discutir estas questões políticas (que trazem implicações nos campos do feminismo, teoria queer, antropologia, etc.). Acho que nem ao menos preciso lembrar sobre como a voz das pessoas trans* é correntemente colonizada por pesquisadores, pois isso já foi denunciado aqui neste blog, dentre outros, e em discussões nos grupos e páginas sobre o tema no facebook.

Eu acredito que o transfeminismo seja capaz de suprir esta falta, enquanto meio efetivo para que as vozes das pessoas trans* sejam efetivamente ouvidas e expostas. E é a partir desta voz, antes não ouvida, que vamos passar a compreender o sujeito político de pessoas trans*. Quero problematizar alguns conceitos sobre sexo que tem suas implicações no meu cotidiano e nas demais pessoas trans* e neste momento não vou me aprofundar nas teorias feministas ou queer, mas desejo que seja feito o convite (mais do que urgente) em se pensar de vez sobre transfeminismo e suas implicações na teoria/prática.

Como disse, existe um debate acadêmico/político acerca do conceito de sexo que visa questionar o estatuto abstrato, biologizante e a-histórico do sexo. Esse debate está imerso em diversas “polêmicas”, pois o que se discute aqui se refere ao caráter contraditório do sexo que se manifesta muitas vezes nas tensões entre áreas de conhecimento ditas “humanas” e “biológicas”. Resumindo as querelas, sexo deixa de ser um dado objetivo e passa a ser cada vez mais compreendido – em diversas nuances - como um dado prescritivo que só pode ser entendido nas relações de poder em que se encontra. Estes apontamentos são essenciais para entendermos o transfeminismo, mas não são suficientes a meu ver.

Tenho a impressão que ainda falta discutimos sobre o sujeito político que é diretamente oprimido, que neste recorte, são as pessoas trans*/mulheres trans*. Se não falarmos sobre quem são as pessoas trans* quando discutimos sobre as relações de poder que envolvem o sexo, parte essencial do debate sobre sexo é violentamente silenciado, pois não se leva em consideração integralmente sexo enquanto sua materialidade contraditória.

Pois acredito, enquanto transfeminista, que pessoas trans* são aquelas que sofrem (materialmente) a faceta transfóbica das normas de gênero/sexo. O feminismo conseguiu/tem conseguido problematizar a faceta misógina das normas de sexo/gênero e proponho que façamos o mesmo para a faceta transfóbica, e para isso, é essencial entendermos qual é o seu sujeito político. Se não dermos “nomes aos bois”, a meu ver, estaremos nos furtando de entender as diversas formas de como sexo enquanto norma se materializa. Isso significa dizer que são as pessoas trans* que sofrem com transfobia, e transfobia decorrendo diretamente das normas cisgêneras que o conceito de sexo pressupõe. A discussão sobre o sujeito político do feminismo também foi feita, a partir da dessencialização da categoria mulher proporcionado por perspectivas intersecionais que levaram em consideração questões como classe, raça e agora, também (assim espero), um recorte intra-gênero que considerará a questão transgênera. E vale a pena também ressaltar que este recorte transgênero se relaciona diretamente com a utilização do termo cisgênero enquanto conceito analítico que questiona as diversas formas de naturalização da supremacia cisgênera.

Então afinal, o que é sexo enquanto produtor de transfobia? É bastante fácil observar isso no cotidiano. Não se trata de discussões acadêmicas e difíceis de entender. Quando lemos nas matérias de jornais a forma como tratam as pessoas trans* com nomes, pronomes e flexão de gênero com o qual não se identificam, isso é uma manifestação de sexo enquanto supremacia cisgênera. Quando vemos a insistência contraditória de se levar em consideração o (suposto) respeito à identidade das pessoas trans* porém, ao esbarrar no discurso biológico que ditaria que a verdade por trás do “gênero” de uma mulher trans* estaria “escondido” o “sexo” masculino e com homens trans*, o “feminino”, o que de fato estas construções de sentido implicam? Vemos com relativa frequência esse discurso que respeita as identidades trans* até a página dois, até quando falamos em “biologia”, na qual uma suposta verdade objetiva entraria em jogo e imperaria. É sobre dizer e descrever objetivamente alguma coisa no mundo ou, ao contrário, construir um argumento, de que pessoas trans* são, apesar de suas identidades psíquicas, as “falsas”, aquelas cuja, em última instância, não são capazes de sustentar seus gêneros através de seus corpos?

A pergunta aqui foi retórica: a instrumentalização ideológica de conceitos da biologia serve para a perpetuação de pessoas trans* enquanto falsas e abjetas e a destituição de direitos civis. Quando um juiz nega o reconhecimento à retificação dos documentos às pessoas transgêneras, é usado o discurso biológico, de que tais pessoas não seriam verdadeiramente homens ou mulheres. Quando pessoas trans* são exotificadas, objetificadas, transformadas em seres de potencial “engano” e destituídas de consentimento sobre seus próprios corpos também. Quando pessoas cis se sentem no direito de tornar a transgeneridade de alguém objeto de escrutínio público, quando elas se sentem no direito a saberem se uma pessoa é trans*, caso contrário a pessoa trans* é vista enquanto praticante de alguma forma de delito, também. Quando pessoas cis acham que se trata de apenas uma “piada” chamar uma travesti de mulher falsa, tratando-a como motivo de chacota, também. Trata-se da perpetuação de uma opressão e para isso a utilização de conceitos de sexo enquanto pretenso dado biológico, objetivo, abstrato e a-histórico. Pessoas são trans*, portanto, são oprimidas pelo sexo, não apenas pelo “gênero” (entendido em sua faceta social da dicotomia natural-social).

O que eu quero é que tragamos o transfeminismo para a academia, para as discussões teóricas e políticas das questões de gênero e isso irá significar levar em consideração, em última instância, sexo como materialidade contraditória do discurso que poderá ser apreendido e entendido enquanto produtor não apenas em seu vetor de opressão misógina (às mulheres cisgêneras), mas também em seu vetor transmisógino (às mulheres/pessoas transgêneras); sexo não entendido como um produtor de normas em abstrato, mas que se manifesta e se materializa nas vidas destas pessoas. Levar, portanto, a existência dessas pessoas para estas discussões, em especial, as mais subalternizadas e desvelar como essas formas de opressão ocorrem em suas formas concretas.

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Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans* (Parte II de II)

Por viviane v.

[link para a Parte I]

dead prez – ‘Propaganda’ http://tny.gs/13JUG3m
dead prez – ‘Walk like a warrior’ http://tny.gs/13JSSrc
dead prez – ‘Hell yeah’ http://tny.gs/13JXXzD
Caetano Veloso – ‘Alegria, alegria’ http://tny.gs/13JY26A
Perota Chingo – ‘Soy el verbo’ http://tny.gs/13JX7TK

“Deve-se lutar pela porra do poder”

“Gotta struggle for the motherfucking power”

Após o almoço, sentamos para um café e um providencial reasoning. Chegamos ao GT alguns minutos após o início, o que me faz perder a apresentação que mais me interessava. A segunda apresentação se inicia, e é sobre “um transgênero”, pessoa descrita como alguém nascida do “sexo feminino” (sic) e identificada com o gênero masculino. Conforme Kate (uso pseudônimo, novamente) descreve a vida de seu ‘objeto’, insistentemente utiliza ‘ela’ para se referir a ele (objeto). Relevo como quem se acostuma a relevar instâncias cissexistas para não ser chamada de ‘impaciente’ e problemática [1], e também por imaginar que Kate se refere a seu ‘objeto’ como ‘ela’ por estar tratando de algum momento ‘gênero conforme’ de sua vida, como a infância. Quando Kate insiste demais em utilizar ‘ela’, levanto minha mão e pergunto se se trataria de ‘ele’ ou ‘ela’. Continuar lendo

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Algo cheira mal nos trópicos, ou: Ciscos em sapatos trans* (Parte I de II)

Por viviane v.

Trilha sonora:
dead prez – ‘Propaganda’ http://tny.gs/13JUG3m
dead prez – ‘Walk like a warrior’ http://tny.gs/13JSSrc
dead prez – ‘Hell yeah’ http://tny.gs/13JXXzD
Caetano Veloso – ‘Alegria, alegria’ http://tny.gs/13JY26A
Perota Chingo – ‘Soy el verbo’ http://tny.gs/13JX7TK

Ideias intersecionais:
José Ribamar Bessa Freire – ‘Morte e vida Amarilda’ http://bit.ly/13JTY6h
Idelber Avelar – ‘Crítica:Trabalho é tão ideológico quanto a ideologia que quer combater’ http://on.fb.me/13JU262

Primeiramente, gostaria de enfatizar o caráter de opinião pessoal deste texto, o que significa que ele, embora inspirado em perspectivas transfeministas, não necessariamente expressa a opinião das pessoas que compõem este coletivo Transfeminismo.

Participei, nos últimos dias, do I Seminário Internacional Desfazendo Gênero: Subjetividade, Cidadania e Transfeminismo, em Natal (RN), organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade Social, Gênero e Direitos Humanos Tirésias, da UFRN, coordenado pela Profa. Dra. Berenice Bento. É uma iniciativa extremamente importante e corajosa, a de lutar academicamente por um evento que se proponha a pensar questões de gênero a partir “do protagonismo de pessoas trans*” e de lentes transfeministas. Infelizmente, talvez não tenhamos pessoas trans* em suficiente número na academia para atender ao chamado, mas é plenamente louvável que se potencializem as reflexões e posicionamentos políticos sobre questões historicamente marginalizadas nos movimentos gggg e tratadas a partir de perspectivas colonizatórias+inferiorizantes+patologizantes em parte significativa do meio acadêmico – medicina, psiquiatria, direito e quetais incluídos com muito ‘carinho’ nisso. Fico muito feliz, neste sentido, por todos os momentos em que pessoas trans* puderam construir, junto a outras pessoas acadêmicas, perspectivas e documentos críticos relativos às questões trans*. Continuar lendo

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Sobre questões trans dentro do feminismo e o fortalecimento da análise de gênero a partir do movimento

A blogueira Jos Truitt do Feministing comenta sobre a situação das questões trans* no feminismo mainstream, defendendo uma abordagem intersecional e transfeminista para se pensar gênero e feminismo. Os links estão em inglês. A fonte original encontra-se no fim do texto.

Por Jos | Originalmente Publicado em: 11 de junho de 2013.

Tradução: Hailey Kaas

Eu parei de blogar por um tempo enquanto estava na pós-graduação e isso abriu oportunidade para dar um ponto de vista sobre a blogosfera feminista. Eu comecei a trabalhar no Feministing em 2009 com o objetivo de centrar questões trans dentro do feminismo. Eu penso que a opressão que colegas trans sofrem, especialmente a extrema marginalização e violência direcionada a mulheres trans nessa cultura misógina, é exatamente uma das coisas pelas quais o feminismo existe para mudar. Eu entendo o feminismo como uma resposta à opressão de gênero em um contexto patriarcal onde o feminino é desvalorizado. Eu vejo o pior de nossa hierarquia de gênero recaindo sob as pessoas que falham em cumprir regras rígidas do binário de gênero compulsório, de uma forma percebida como feminina. Isso se revela quando, por exemplo, há violência específica direcionada a homens queer e mulheres trans. Dessa forma, vejo a exclusão tanto de mulheres trans quanto de nossas questões do feminismo (ou a contínua reprodução de transmisoginia dentro movimento feminista) como um problema que necessita ser posto em pauta.

Contudo, centrar as questões de pessoas trans e não-conformes de gênero exige uma mudança de pensamento para as pessoas cujo feminismo está baseado em normas cisgêneras. A norma em nossa cultura é supor que uma pessoa irá se identificar com o gênero designado ao nascer com base nx médicx olhando para sua genitália. O que significa que supomos que existe uma conexão entre gênero e genitália, que leva a uma suposta conexão entre gênero e os papeis sexuais, e também às capacidades reprodutivas de uma pessoa. Como demonstrei no que diz respeito à retórica da “Guerra às Mulheres”, sobre os ataques aos direitos reprodutivos, a maioria das organizações para direitos reprodutivos coloca a suposição de que mulher = pessoa com vagina que pode gerar filhxs. Isso é verdade para muitas mulheres, mas não é a experiência de todas as mulheres. E colocar todas as mulheres como fundamentalmente máquinas de fazer filhxs é exatamente o que o movimento anti-escolha deseja. Um feminismo que se baseia na conexão entre gênero e genitais não só exclui pessoas cujos corpos não se encaixam - é também uma análise fundamentalmente falha que perpetua uma ideia essencialista a qual o feminismo parcialmente existe para combater. Um feminismo que centraliza uma abordagem trans feminista sobre gênero, que reconhece que mulher ≠ vagina, oferece uma análise de gênero mais precisa no geral que beneficia todxs.

Um número crescente de mulheres trans, incluindo eu mesma, têm trabalhado na blogosfera feminista e de justiça social agora já faz algum tempo. Ouvi várias escritoras feministas famosas dizerem que realmente gostam do meu trabalho. O que é legal, mas sinceramente estou aqui para realizar uma mudança dentro do feminismo, logo isso não significa nada para mim se meus textos não estiverem encorajando uma mudança em suas análises. Isso é a continuação de um problema familiar: Quando mulheres negras introduziram a ideia de intersecionalidade, elas reforçaram o ponto de que suas experiências não eram as experiências das mulheres brancas somadas de raça. Para o feminismo levar suas questões a sério, necessitou centrar as experiências das mulheres negras. O extraordinário dessa abordagem é que continua beneficiando mulheres brancas, mas não exclui as experiências que ocorrem na interseção de raça e gênero. No entanto, feministas brancas continuam a tratar as questões das mulheres negras como algo a ser adicionado ao feminismo, o “especialmente mulheres negras” que faz com que seus argumentos sejam mais fortes. Mas o argumento continua começando majoritariamente com as experiências das mulheres brancas (e comumente com privilégio de classe - o mesmo ocorre quando se fala sobre as questões das mulheres trans; e fui completamente cúmplice nisso).

Vejo a continuação desse padrão em um momento no qual mulheres trans estão tentando levantar suas questões dentro do feminismo. Reconhecer nossa humanidade e nossa opressão exige mudar a conexão entre gênero e genitais. Um feminismo que não realiza tal mudança continuará a perpetuar nossa exclusão. Eu fiquei especialmente surpresa no outono passado com a cobertura do livro Vagina da Naomi Wolf. A crítica feminista pareceu ser de que Wolf reduziu mulheres a suas vaginas, ou mesmo a própria experiência específica de sua vagina. Assim, com base nessa leitura feminista, o fato de que o livro é cisnormativo é a primeira crítica mais óbvia. No entanto, essa crítica estava em falta na maioria das discussões feministas na imprensa sobre o livro. O argumento de Wolf foi constantemente chamado a atenção por essencializar vaginas e mulheres de uma forma heterossexista e racista. Fiquei sabendo que questões trans foram cortadas por motivos de espaço de uma mesa-redonda absurdamente grande sobre o livro entre um grupo de famosas feministas na mídia. Algo que é honestamente ridículo. Como Jaclyn Friedman demonstrou em um dos poucos artigos que de fato mencionou a questão, o assunto requer pouco espaço para destaque:

“Mulheres que não tem vaginas, e pessoas com vaginas que não são mulheres? [Wolf] Nunca ouviu falar delas.”

Bem simples, certo? O fato de que a crítica mais óbvia não foi uma prioridade para muitas feministas que escreveram sobre o livro, diz muito sobre o lugar das questões trans dentro de seu feminismo. Não é algo de fato importante. É algo que se faz um adendo quando estamos falando especificamente sobre pessoas trans. Mas não é central em relação a como pensam gênero.

As vozes das pessoas trans dentro do feminismo definitivamente vêm tendo um impacto. O tumblr é um excelente exemplo - muito da base feminista está refletindo bastante seriamente sobre como nosso entendimento do mundo está enraizado em normas cisgêneras, e estão criando espaço dentro do gênero para outras formas de se ter corpos. Mas a maioria das feministas famosas, as pessoas que estão escrevendo nas grandes publicações, participando de programas de TV e adquirindo oportunidades para publicação de livros, não mudaram suas análises baseadas em experiências cis. Sinceramente, o movimento poderia deixar muitas dessas pessoas famosas a ver navios.

Então, constantemente eu leio uma versão de feminismo que me deixa de fora. Isso acontece regularmente nesse mesmo blog, algo que estamos começando a trabalhar diretamente para mudar. As suposições cisnormativas também são uma parcela padrão de conversas pessoais as quais eu participei entre feministas com visibilidade pública (eu fico frequentemente impressionada com o que as pessoas não percebem que estão dizendo na minha frente). Isso se destaca na linguagem que define mulheres como produtoras de filhxs. Mas é também um conjunto de suposições em um nível enraizado que determina quais problemas são considerados importantes problemas feministas e como tais problemas serão pautados. Violência sexual e de gênero, opressão reprodutiva, acesso à saúde, empregos, imagem corporal… Questões que são frequentemente delimitadas de forma a ignorar as experiências particulares de pessoas trans e não-conformes de gênero, especialmente as pessoas dentro do espectro feminino. Isso não é um problema apenas retórico - o feminismo atuou no estabelecimento de abrigos para vítimas de violência doméstica que excluem mulheres trans, por exemplo.

Pessoas trans e não-conformes de gênero enfrentam uma discriminação absurda que deveria ser um foco feminista, mas ainda é uma questão marginal, na melhor das hipóteses. Isso precisa mudar. Está mudando. Não é suficiente para feministas aproveitarem os textos das pessoas que experienciam a marginalização que as mesmas não sofrem. Para encarar tais questões seriamente, é necessário pensar em como são diferentes de sua experiência, como mudam a base sob a qual trabalham, e as suposições que você tem que pode terminar por perpetuar exclusão. Esse é o trabalho que todxs temos de fazer como parte de um movimento feminista intersecional onde todxs temos diferentes experiências de privilégio e opressão.

Texto original

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