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Sobre o termo cisgênero, o equívoco da língua e o político na sigla LGBT

Escrevo este texto pensando o encontro que a defensoria pública realizou para falar sobre “identidades trans”, em que estavam presentes a psicóloga Bárbara Dalcanale Menêses e o assessor técnico do centro de referência LGBT, Márcio Régis Vacon como palestrantes. Ao se falar sobre transgeneridade, é urgente problematizarmos certas evidências de sentidos, na medida em que considero extremamente importante o não apagamento do político da questão transgênera. Aprendi com a análise de discurso fundada por Michel Pêcheux (AD) que a impressão que as palavras designam inequivocamente coisas e objetos no mundo se dá através de um efeito ideológico; também aprendi, contudo, que a ideologia funciona pela falha. Isso significa dizer, entre outras coisas, que o sentido, apesar de parecer evidente, pode ser sempre outro, a partir do momento em que a língua (para significar) necessita da inscrição da história, e com isso, os sentidos estão sempre já divididos pelas contradições das lutas de classes. Dizemos, portanto, que a linguagem não é transparente, já que ela não designa de forma unívoca; ela é, ao contrário, opaca.

Para a AD, a falha da língua pela ideologia se denomina equívoco. A ideologia aqui é entendida como necessária para a relação do sujeito com os sentidos, se distanciando, portanto, de concepções de ideologia como “ocultação da verdade”. É a partir de uma formação discursiva que os sentidos vão ser mobilizados através de uma posição de sujeito (um exemplo clássico para entender isso sucintamente quando, a rede Globo, por exemplo, utiliza “invasão” enquanto que um blog de esquerda, para referenciar a mesma situação, irá utilizar o termo “ocupação”; os sentidos estão divididos, e uma posição sujeito determina, neste caso, uma “escolha” diferente do léxico).

Então o que a cisgeneridade diz respeito ao equívoco da língua? O que diz respeito ao (apagamento do) político? Certamente muita coisa. Bárbara começou sua palestra “explicando” quem eram (ou o que eram?) as letrinhas da sigla LGBT. LGB são pessoas não heterossexuais, dizem respeito às orientações sexuais, e o T são pessoas trans*, diz respeito às identidades de gênero. Percebam, contudo, que essa definição, a priori, “correta”, mobiliza certas evidências, pré-construídos. Por que, ao falar sobre pessoas não-heterosexuais, sempre referenciamos pessoas cisgêneras? Quem são os (cisgêneros) gays, lésbicas e bissexuais afinal de contas? Por que o tema da identidade de gênero é sempre secundarizado (e como isso se dá historicamente, na materialização dos discursos?)?

"Por que eu deveria... me designar como cisgênero?". Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

“Por que eu deveria… me designar como cisgênero?”. Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

Os LGB são sempre os homens e mulheres (cisgêneros) que se atraem por homens e mulheres (cisgêneros); enquanto que o T apenas atrapalha essa cadeia de significações. Essa é uma das evidências de sentido sobre a sigla LGBT: a tensão/contradição entre a reunião entre orientações sexuais desviantes e identidades de gêneros desviantes não é “resolvida” (ou é para mim, enquanto transfeminista, a materialização de um discurso cissexista) de forma satisfatória pela posição de sujeito cisgênera, na medida em que apaga a possibilidade de (existência do) sujeito trans*, e também apaga a própria possibilidade do sujeito trans* de ter uma sexualidade (!). Não somos destituídxs “apenas” da família, do acesso à educação e empregos, mas também da ordem significante que simboliza a sexualidade. Não temos também o direito de termos desejos! A sexualidade de uma mulher trans* em especial é vista de forma abjeta pelo discurso médico. Somos obrigadas a realizar o impossível em busca do laudo: ora performando uma identidade heterossexual legitimada socialmente, ora performando uma identidade assexual na qual nunca é suficiente, já que sempre somos passíveis de sermos desqualificadas enquanto mulher e enquanto ser humano por qualquer sinal (ou ausência) de sexualidade/gênero.

Esses sentidos desarticulam a possibilidade de resistências transgêneras, já que a própria possibilidade de humanidade nos é interditada pela linguagem. É aí que o simbólico diz respeito ao político, aliás. Afinal de contas, quem nunca se deparou com o equívoco (percebam a relação sempre com o linguístico e os significantes) acerca da orientação sexual tanto de pessoas trans* quanto de pessoas (cisgêneras) que se atraem por pessoas trans*? A pessoa (cisgênero) que namora uma mulher trans*/homem trans* é “hétero” ou “homo”? Ou nenhum dos dois? Risos!

A transgeneridade (enquanto cisgeneridade mostrada em sua opacidade significante), portanto, é uma verdadeira arma (aliás, arrisco dizer a maior delas) contra a heteronormatividade. Quem dera os gays (cisgêneros) dessem conta disso e articulassem isso politicamente… mas infelizmente é mais fácil se apegar a certas identidades essencializadas, tomadas como transparência da linguagem. Identidades essas, que dizem respeito à orientação sexual, que pessoas trans* não têm o privilégio de reivindicarem plenamente. Falar sobre tudo isso, portanto, é também falar sobre o impossível da orientação sexual, sobre suas falhas, equívocos.

Os sentidos sobre a sexualidade das pessoas trans* estão interditados na medida em que o sujeito (de orientação sexual neste caso) universal é cisgênero. E isso se dá através das evidências mobilizadas pela posição de sujeito cisgênera. Por que pessoas trans* são sempre o puxadinho (precário) da laje da significação, são sempre o Outro, que, a partir do momento (contraditório) em que se reconhece o real deste grupo até certa medida: até a medida em que a cisgeneridade é posta como ponto incontornável (e insuportável)? São sempre aqueles que sobram, são o Outro não na sua relação de alteridade, mas na sua relação de abjeção. A simbolização da linguagem de tudo o que se refere a transgeneridade (o real) pela posição de sujeito cisgênera é marcada pelo político, pelas relações de poder. Isso significa que há uma “afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos, caracterizada pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real”, como bem define Eduardo Guimarães na sua semântica do acontecimento. E o discurso da biologia também é mobilizado por esse discurso cisgênero (designar pessoas cisgêneras como “biológicas” é um exemplo disso). E inserir o biológico na discussão é o mesmo que retirar-se do debate político.

Que existe um desconforto de pessoas cis com o termo cis não é novidade. Já falei muito disso aqui no blog. O que também é curioso é ver pessoas trans* “defendendo” a não utilização do termo cisgênero. Isso apenas nos mostra que a posição do sujeito não é empírica nem automática: pessoas trans* podem assumir esta posição de sujeito cisgênera, assim como pessoas cis podem assumir uma posição de sujeito trans* (ou transfeminista).

Vejamos certos efeitos de sentidos nos enunciados:

  • As pessoas trans* são aquelas que se identificam com o gênero oposto.
  • O homem que se veste como mulher é uma mulher transexual.
  • O que diferencia uma transexual de uma mulher é o biológico.

Nos enunciados há o efeito de pré-construído. Isso significa que algo nos enunciados “disse antes, independentemente” que atravessa o dizer e que, nestes casos, se dá sobre a forma da contradição, gerando um efeito de sentido ora paradoxal, ora transparente. Quando se define que uma “pessoa trans é aquela que se identifica com o gênero oposto” se afirma, por meio do implícito, que a pessoa trans pertence a um gênero (ela “é” alguma coisa) com o qual ela não se identifica. É aí que o equívoco se manifesta: como posso me identificar com algo que desde sempre (desde todos os dizeres, os já-ditos) eu já não seja? Este pré-construído articula dizeres anteriores que afirmam que mulheres trans* não são mulheres e homens trans* não são homens. Qual é o gênero oposto de uma mulher trans*: o feminino ou masculino? Este enunciado afirma o paradoxal: o gênero “oposto” de uma mulher trans*, a partir do seu próprio ponto de vista, é o masculino. Como poderia uma mulher se identificar com o gênero masculino? Sentidos de transparência acerca dos termos “homem” e “mulher” atuam de forma semelhante no segundo enunciado. Esses efeitos de pré-construído se dão através de um atravessamento com o discurso da biologia/medicina, no qual o desígnio de gênero ao nascer é mobilizado como evidência de que “sejamos” homens ou mulheres produzindo coerência para os termos “homens” e “mulheres”. Por isso o terceiro enunciado possui efeito de transparência. Mas aqui vai o equívoco: falar sobre transgeneridade é falar sobre o biológico? Como, então, esses enunciados podem ser tão transparentes? Como essa relação de transparência se deu historicamente? É hora de deixar para trás o “biológico” para se falar sobre (cis)generidade. Isso significa dizer, afinal, que pessoas cis não são biológicas.

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Cisgeneridade e silêncio

Judith Butler (2003) problematiza a forma como a categoria de “mulheres” é representada ao apontar para os perigos dessa representação (operada pelo feminismo) ao produzir sujeitos em “conformidade com o eixo diferencial da dominação”, o que certamente acarreta limitações políticas. Isso fica bastante evidente quando vemos como a categoria mulheres é cindida nos vetores de raça, classe, orientação sexual, regionais e a importância do feminismo entender esses vetores intersecionalmente. O que propomos no transfeminismo é justamente isso: entender um vetor intra-gênero que se refere à transgeneridade das mulheres. Mas o que está sendo posto aqui é que esse vetor não é da ordem do já-dado ou natural. Tivemos (e temos) que lutar para essa representação e acredito que, no nosso caso, trata-se de uma luta bastante peculiar, já que justamente mulheres trans* não são entendidas, vistas e designadas (como forma de se simbolizar o real pela linguagem) como mulheres “verdadeiras”. São mulheres vistas enquanto alvos da violência misógina+transfóbica e, ao mesmo tempo, excluídas da “mulheridade”.

Proponho pensar a exclusão das mulheres trans* da mulheridade (os efeitos de sentido que corroboram a construção da “mulher verdadeira/biológica/de nascença”) se dando através da produção de sentidos de evidência acerca dos sujeitos homem e mulher como forma de interpelação ideológica pela cisgeneridade compulsória. Também defendo a importância de se pensar analiticamente o conceito de cisgeneridade para compreender a materialidade do sexo em sua maior totalidade ou complexidade.

Butler (2003) afirma também que a “categoria mulheres só alcança estabilidade e coerência no contexto de matriz heterossexual”. Bom, não se trata aqui de questionar isso propriamente, mas apontar uma lacuna que passou a ser óbvia a partir dos apontamentos transfeministas: e quanto à matriz cisgênera? É extremamente recorrente ver em textos de teóricxs queer a problematização da heterossexualidade compulsória. Mas jamais (salvo raríssimas e circunscritas exceções) vi autorxs falarem acerca da cisgeneridade compulsória. A que se deve isso?

Certamente o fato delxs serem autorxs cisgênerxs importa, acarretando na restrição da problematização do gênero a conceitos afeitos à orientação sexual. Isso também não está desvinculado do fato de que pessoas homossexuais/bissexuais/não-heterossexuais (cisgêneras) conseguirem acessar a academia e pessoa trans* em sua esmagadora maioria não. Percebam que discussões afeitas à orientação sexual não são diretamente coextensivas às discussões afeitas à identidade de gênero. Com isso não quero resumir o fato dessxs autorxs enquanto pessoas empíricas que são cisgêneras, mas considerar a presença da formação discursiva (o que é possível de ser dito) a que se inscreve o sujeito e a relação dos sentidos a partir de uma posição de sujeito (o sujeito-cisgênero neste caso); conceitos esses formulados pela corrente francesa da Análise do Discurso.

Essa relação de sentido (ou interdição de sentido) me deixa bastante perplexa. Essxs autorxs, ao falar sobre o funcionamento das normas de gênero, utilizam o conceito relacionado à orientação sexual (heterossexualidade) ao invés do conceito relacionado diretamente ao gênero (cisgeneridade). Com isso não quero dizer que não é importante analisarmos como as normas de gênero se intersecionam com questões afeitas à orientação sexual. Mas quero frisar que a impossibilidade destes diversxs autorxs de pensarem numa matriz cisgênera significa através do não-dito. Ou seja, dizer “heterossexualidade compulsória” não significa em si mesmo, também significa pelo fato de não se ter dito outra coisa (“cisgeneridade compulsória”), o que configura um movimento escorregadio “entre a trama das falas” e um traço deixado pelo silêncio. Para tornar o silêncio visível é preciso observá-lo indiretamente por métodos (discursivos) históricos, críticos, desconstrutivistas (ORLANDI, 2007).

Compreender como o silêncio significa me parece extremamente relevante para entendermos a cisgeneridade. Aqui uso o silêncio como forma de significar como formulou Eni Orlandi (2007), não enquanto falta ou ausência de sentido. Também não é o silêncio místico ou mágico (bastante explorado pelas religiões), mas o silêncio em sua materialidade significativa, enquanto presença e não enquanto o inefável.

A cisgeneridade funciona enquanto produtora de normas de gênero/sexo através do silêncio e também só pôde ser pensada/criada (e então dita) porque algo (o gênero/sexo) se significou e se significa no silêncio. O silêncio, segundo Orlandi (2007) não é transparente e atua na passagem entre pensamento-palavra-coisa.

Nesse sentido, quando a autora diz que “o silêncio é fundante”, podemos entender que o silêncio funda a cisgeneridade. Esse silêncio se dá ao mesmo tempo em que produz coerências e inteligibilidades às identidades dos sujeitos cisgêneros e interdições à plena identificação de gênero aos sujeitos transgêneros. Essa interdição é responsável pela produção de abjeções relacionadas à transgeneridade. Mas essa interdição também enseja formas de resistência pelxs subalternxs.

Então quando pensamos sobre formas de quebrar este silêncio (que se deu por um irromper da linguagem dentro do próprio silêncio), através da nomeação da cisgeneridade em um dito, vislumbramos implicações políticas (ou a ligação do simbólico com o político) e de deslizamentos de sentidos sobre “homens” e “mulheres”. Isso porque “o silêncio intervém como parte da relação do sujeito com o dizível, permitindo os múltiplos sentidos ao tornar possível, ao sujeito, a elaboração de sua relação com os outros sentidos” (ORLANDI, 2007, p.89).

Essa quebra de silêncio (a linguagem) funciona como uma forma de “domesticação da significação”. Mas certamente este retorno à linguagem que o termo cisgênero proporciona não se trata de um retorno ao mesmo. Produz-se uma nova identidade através da linguagem, com uma coerência, totalidade e unicidade novas. Vejo que uma passagem pelo silêncio tornou possível uma fala improvável e subalterna de se irromper no silêncio, a fala das pessoas trans* ao nomearem os normais, as pessoas cis. Vozes historicamente silenciadas assim como suas questões, suas vivências, perspectivas e opressões.

Esse novo irromper da linguagem proporciona outras formas de interpretação de algo já aparentemente dado, por exemplo, quando apontei a minha estranheza ao uso de “heterossexualidade” para se compreender o gênero, ao invés de “cisgeneridade”. Nesse processo apontamos as lacunas e os equívocos, questionando a completude do que foi dito.

Cabe aqui a distinção de duas formas de silêncio propostas por Orlandi (2007): o silêncio fundante (necessário para todo o processo de significação) e política do silêncio (o recorte de um sentido a partir de uma posição do sujeito). Assim, como disse, por um lado a opção por se falar acerca da “heterossexualidade compulsória” foi feita a partir de um recorte de acordo a uma posição do sujeito-cisgênero e do outro, a própria possibilidade desta forma de significação (se fundar) se deu através do silêncio fundador. Ambos de certa forma trabalham com o silêncio em torno da cisgeneridade para fazerem sentido. Então, como prática de resistência, através da “passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras”, torna-se possível tanto o surgimento do sentido de cisgeneridade ou do termo cisgênero quanto a ocupação de um lugar emancipatório para o sujeito-transgênero: a relação com o Outro passa a ser redefinida. Aqui está a dimensão política do silêncio, na medida em que recorta o dizer, como define a autora.

Referências

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade; tradução, Renato Aguillar. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. - 6ª ed. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

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O que é cisgênero?

Falar sobre cisgeneridade ou que significa o termo cisgênero é falar sobre diversas lacunas que envolvem o conceito de gênero/sexo. É falar sobre abjeções, normatividades, discursos de resistência, equívocos, alteridades, lugares de falas e também sobre questões linguísticas que a dicotomia cis/trans* envolve ou propõe. Neste texto, pretendo abordar o termo cisgênero principalmente em sua faceta analítica/política (muito embora sua faceta subjetiva muitas vezes se mesclar com ela).

Acho que posso começar a falar sobre o que é cisgênero apontando um fato curioso: de longe, nas estatísticas deste blog, os termos de busca mais utilizados se relacionam com a partícula cis. “O que é cis?”; “O que significa cisgênero?”; “O que é cissexismo?”; etc. estão mais ao topo do que termos envolvendo a partícula trans, como “transgênero”; “transexual”; “transfobia”; etc. O que isso significa?

Digo que é um fato curioso por, a princípio, um blog destinado a tratar das questões das pessoas transgêneras, de nome TRANSfeminismo, ser mais conhecido e procurado por termos que envolvem a cisgeneridade. Seguindo uma lógica mais imediata, esperaríamos que quem procurasse um blog destinado ao transfeminismo, procurasse acerca das temáticas transgêneras em si mesmas. Mas não é exatamente isso o que acontece, já que nunca é possível pensar a transgeneridade em si mesma; sempre, ao tocar em qualquer coisa que remeta a um “trans*” estaremos remetendo a alguma coisa “cis”. Isso é justamente o que o transfeminismo traz de “novo”. Mas então por que exatamente o uso de cisgênero é tão importante?

Julia Serano neste texto traça um paralelo entre o uso de cisgênero com o de heterossexual e suas consequências políticas, já que se tornou possível não apenas nomear o “normal”, mas também o próprio sistema que gera as “anormalidades”, e com isso, pensar formas de resistência a esse sistema. Respectivamente, o vetor que envolve a orientação sexual e identidade de gênero são o heterosexismo/homofobia e cissexismo/transfobia. Percebam como formas de resistência a essas normatividades se relacionam com o reconhecimento do “Outro”, a alteridade, no que toca diretamente à língua. É através de palavras novas surgidas pelas vozes de pessoas marginalizadas através destes rótulos (homossexuais/transgêneros) que se desmascaram essas relações de poder, ao colocar o “normal” e o “natural” em uma nova relação com o “anormal”, uma relação agora simétrica através de novos rótulos (heterossexuais/cisgêneros).

São estes significantes que tornam possível o reconhecimento do Outro como uma variável tão legítima quanto à norma, que passa agora a ser designada com um rótulo, suprindo uma lacuna que por vezes é/era preenchida com termos naturalizantes. Quando alguém prefere se designar enquanto pessoa “biológica” ou “natural” para se dizer não-trans* (ou no passado, como não-homo) está se tentando preencher essa lacuna por meio de uma identificação delirante. Esta identificação delirante tenta continuar remetendo o Outro (as identidades trans* atualmente, e no passado, xs desviantes da norma heterossexual) ao seu lugar de abjeção.

Neste sentido, apontei neste texto como a luta referente à identidade de gênero está aquém da luta referente à orientação sexual meramente através da constatação na assimetria do uso dos termos cisgênero e heterossexual. Quero apontar como essa inferiorização da luta trans* impacta em nossas vidas e está diretamente relacionada com a (ausência) do reconhecimento e uso do termo cisgênero. Assim como muito provavelmente na época em que se começou a circular o termo heterossexual em que pessoas heterossexuais certamente (puderam) achar essa classificação pouco importante, inútil ou por vezes ofensiva, hoje vemos isso se repetindo, só que agora com o uso do termo cisgênero e seus derivados. O termo heterossexual já se encontra consolidado no léxico da língua, tanto é que já se encontra dicionarizado; já cisgênero (ainda) não.

Hoje em dia soaria absurdo alguém se contra-identificar como “biológico” para se dizer não-hétero e arrisco a dizer que é por isso que a homossexualidade não se encontra mais nos manuais de doenças como uma doença, ao contrário das identidades trans*. Digo também que a possibilidade de uma pessoa cis não se identificar enquanto cis é em si um próprio privilégio cisgênero.

Tentar pensar a transgeneridade em si mesma (recalcando ou não usando o termo cisgênero) é o que fazem, por exemplo, xs psiquiatras/profissionais psi , que essencializam e patologizam as identidades transgêneras, e algumas vertentes do feminismo dito radical. Isso decorre devido a uma falta de reconhecimento do “Outro”, que são as próprias pessoas trans*, produzindo anormalidades e marginalizações que servem a interesses ideologicamente marcados: aos primeiros interessa o controle biopolítico dos corpos e identidades trans e aos segundos, a supremacia das questões referentes às mulheres cisgêneras (e por vezes, de mulheres brancas, ocidentais, heterossexuais e de classe média) pautadas no feminismo.

As pessoas cisgêneras não sentiram e não sentem necessidade de se designarem enquanto cis. São as pessoas trans* que estão apontando e apontaram esta necessidade, e possibilitando, por exemplo, não apenas pensar formas emancipatórias e descolonizadas de se entender a transgeneridade, mas também como meio de se criticar as formas como foram representados os sujeitos “homem” e “mulher” na antropologia, nos estudos de gênero/feminismo e em qualquer outra materialidade discursiva.

Isso significa dizer que é possível fazer uma crítica transfeminista a qualquer estudo/teoria – ou melhor dizendo, a praticamente todos os estudos/teorias já produzidos, no sentido que a categoria cisgênera só começou a ser utilizada recentemente e em pouquíssimos e restritos espaços não legitimados enquanto produtores e legitimadores de conhecimentos e verdades – que envolva gênero/sexo/sexualidade em que não se encontra cisgênero enquanto categoria analítica. Não se trata de jogar fora tudo o que o feminismo, a psicanálise, marxismo, etc. produziram sobre gênero, mas apontar suas lacunas ou colonizações referentes à questão transgênera. Igualmente proporcionar contribuições a todas as áreas de saber e ativismo político (em especial as afeitas aos estudos de gênero e ao feminismo), ao incluir um novo vetor intra-gênero que se referem às questões e existências de pessoas transgêneras, que passarão a integrar as análises intersecionais que levem em conta a classe, raça, gênero, etc.

Trata-se sim de apontar certas opacidades da língua que o reconhecimento da cisgeneridade passa a permitir. Por exemplo, quando se usa termos como “mulher” ou “homem” para referenciar sujeitos no mundo como evidência de sentido de um sujeito universal, que é o cisgênero, passamos o questionar a naturalidade desta relação. Neste sentido vale dizer que a língua faz um determinado recorte do real e o termo cisgênero permite um recorte diferente deste real, na medida em que desestabiliza relações de sentido já consolidados das categorias “homem” e “mulher”, proporcionando a inclusão das identidades trans* como hipônimos nestas categorias.

Por fim, quero reforçar a ideia de que não existe mais volta. Não existe mais volta a um passado em que seria possível pensar as identidades trans* como anormalidades distantes e isso passar batido. Nós estamos aqui pelo menos, resistindo. Não existe mais volta quanto ao uso político da categoria cisgênero, assim como aconteceu com a categoria heterossexual. Quero frisar também que qualquer tentativa de rechaço a esse termo trata-se da reprodução da própria supremacia cisgênera e, portanto, um ataque transfóbico. E a própria possibilidade deste rechaço, um privilégio cisgênero, pois quando se rechaça o uso do termo cisgênero, são as vozes subalternizadas que são desqualificadas. São as vozes das pessoas trans* que buscam se libertarem destas formas estigmatizadoras e colonizatórias de entenderem suas existências.

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Sobre ser mulher trans* e bissexual – uma experiência pessoal

Hoje é o dia da visibilidade lésbica e bissexual, e como bissexual desejo comentar brevemente sobre minha identidade – uma identidade que por sinal costuma ser apagada com frequência das discussões gerais sobre sexualidade. Me identifico também como pansexual, mas para fins políticos, desejo falar somente de bissexualidade.

A bissexualidade sempre enfrentou vários mitos, inclusive na interseção monogamia/bissexualidade, onde pessoas bissexuais são vistas como infiéis ou promíscuas por ser capazes/desejarem se relacionar com dois ou mais gêneros. Além disso, o estigma da promiscuidade sempre recaiu mais fortemente às mulheres bissexuais.

Contudo, certamente as mulheres trans* sempre tiveram uma grande dificuldade em se assumir como lésbicas ou bissexuais. Isso acontece porque dentro da norma heterossexual se uma pessoa “deseja ser de outro gênero” automaticamente ela é heterossexual (heterossexualidade compulsória é inclusive uma das premissas dos compêndios médicos que patologizam a transexualidade). Por isso, ser uma mulher trans* que se relaciona com outras mulheres (cis ou trans*) era/é a “prova” de que a pessoa não era/é mulher de verdade, e sim homem. A ideia heteronormativa de “completude” heterossexual, inclusive, se estende aos relacionamentos gays/lésbicos onde sempre se perguntam “quem é o homem/mulher da relação”, mesmo sabendo-se de que se trata de duas mulheres ou dois homens.

Minha experiência pessoal sempre foi que, enquanto eu me identificava como homem (mas não necessariamente me via como homem), eu sempre achei que fosse gay. Sempre tive uma forte atração por homens, desde a adolescência - e enquanto essa é a experiência de muitas mulheres trans*(antes de se identificarem como mulheres), não significa que todas são ou deveriam ser heterossexuais. O estigma da deslegitimação identitária (mulheres trans* não são mulheres ou são menos mulheres porque se relacionam com outras mulheres) sempre foi (e é) muito forte nos espaços médicos e nos grupos trans*. Só comecei a repensar minha sexualidade quando entrei em contato com o feminismo, alguns anos atrás - e então fui me livrando de certos preconceitos, entre eles uma espécie de “translesbofobia” que eu tinha, me impedindo de relacionar com outras mulheres.

O feminismo foi essencial para essa descoberta, me permiti amar e ser amada por outras mulheres, sentir os prazeres do sexo lésbico, as maravilhas dos “ambientes femme” cheios de carinhos e afetos. Isso não quer dizer que eu ache que esse “ambiente” não possa existir entre homens ou entre pessoas de gêneros diferentes, mas nunca foi essa minha experiência com homens cis – até porque, infelizmente, minha experiência com homens cis sempre foi dentro do espectro fetichista. Os homens cis héteros e inclusive bissexuais sempre me pareceram estar muito mais focados na genitália do que as mulheres - e essas relações genitalizadas sempre me foram muito caras.

Eu escrevi sobre a genitalização dos relacionamentos em outra postagem. A importância que as pessoas dão à genitália de outra, como elemento fundante das relações, elemento essencial dos afetos e do “gostar” romanticamente, é algo que talvez eu jamais entenda – e não acho que isso tem a ver com bissexualidade, mas sim com a importância que colocamos em certos signos corporais que se tornam premissas para nossas relações (inclusive heterossexuais). O que citei brevemente sobre fetiche acima é, inclusive, um bom exemplo. Os homens por quem eu me interessava (com reciprocidade) ora encerravam seu interesse romântico por mim no momento que “descobria” que eu sou trans* (e non-op), ora o interesse se intensificava, pois o que essa pessoa buscava em mim era tão somente essa diferença genitalizada em relação a outras mulheres.

Sempre quis ser vista por mim mesma e não pelo corpo que eu tenho.

No meu mundo ideal todxs seriam bissexuais (e/ou pansexuais). Acredito que as corporalidades são empecilhos que nos previnem de relacionarmos com pessoas maravilhosas. O gênero e o corpo de alguém são, de fato, parte daquela pessoa – mas haveríamos de nos perguntar se isso é tudo o que aquela pessoa é. Desejo conhecer as pessoas – todas elas – em suas particularidades, seus gostos, suas idéias, seus modos. Desejo conhecer as pessoas em outros espectros que não (só) gênero e corpo.

Sou uma mulher trans* e bissexual.

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Categoria Mulher: não se deixe “enganar”

“Mulheres”. O que nos vem à cabeça quando dizemos essa palavra? O quão amplo é a nossa categoria “mulher”? Ela abrange mulheres negras, deficientes, homo/bi/pansexuais, pobres? Até que ponto homogeneizamos essas categorias que, a princípio, devem ser tão amplas? Até que ponto as especificidades estão incluídas no nosso conceito sobre “ser mulher” ou até quanto elas precisam ser explicitamente mencionadas para que o que buscamos referenciar seja inteligível?

Muitas vezes é preciso explicitar sobre qual mulher estamos falando: a negra, a pobre, a deficiente, a não heterossexual, a fim de não apagar certas demandas específicas. Quando nos propomos a lutar pela igualdade entre os gêneros e dizemos que defendemos a “mulher”, devemos incluir todas as mulheres e, consequentemente, todas as suas especificidades. Uma mulher negra não vai ser livre da opressão enquanto não lutarmos contra o racismo, por exemplo.

Mas e se nem ao menos como mulher uma determinada mulher é socialmente reconhecida? Para ela, portanto se trata uma luta em dobro: além da necessidade de darmos visibilidade para determinadas especificidades desse grupo de mulheres, precisamos, sobretudo, incluí-las no próprio conceito sobre o que é ser mulher. É este o caso das mulheres transgêneras.

Nos atentarmos sobre qual é o sujeito representado pelo nosso imaginário é um exercício importante: pode nos revelar o quanto nossa maneira de categorizar o mundo, incluindo aqui pessoas, pode ser excludente. Nesse sentido, o Transfeminismo luta pela defesa dos direitos e da dignidade das pessoas transgêneras. E isso só é possível através da conscientização e problematização acerca da categoria mulher, o que nos leva à luta pelo reconhecimento das mulheres transgêneras como mulheres. Deste modo, mulheres transgêneras e suas vozes deixarão de serem invisibilizadas na sociedade. A disputa por uma palavra, neste caso a palavra “mulher”, é também uma luta política. É uma busca a fim de deslocar os sentidos únicos ditados pela norma cisgênera.

Frequentemente vejo que muitas pessoas se sentem no direito de desqualificar o gênero de pessoas transgêneras. O cissexismo está fortemente enraizado pela crença de que as pessoas nascem homens ou mulheres, sendo isso imutável. A partir desta ideia, as mulheres transgêneras vão ter suas identidades deslegitimadas e, consequentemente, desumanizadas. Não respeitar a identidade de gênero de uma pessoa trans* também é uma violência transfóbica. Temos que alertar para a não existência de uma ordem natural que legitima a identidade de gênero das pessoas cisgêneras.

Tanto as pessoas trans* como cis, todas elas possuem identidade de gênero e nenhuma é mais ancorada a uma suposta verdade biológica que a outra. Em termos de verdade ou mentira sobre nossas identidades, pessoas cis e trans* estão no mesmo barco. A mesma certeza ou dúvida a cerca das subjetividades das pessoas trans* está presente nas subjetividades das pessoas cis. Os barcos só se diferenciam na medida em que a identidade trans* é socialmente deslegitimada e isso nada tem de natural. É uma violência e, assim como o racismo, a homofobia e outras formas de opressão, precisa ser desnaturalizada e combatida.

Deslocar o sentido único de “mulheres” (incluindo nessa categoria as mulheres transgêneras) não se resume a uma ação que tem suas consequências apenas no “mundo das ideias”. Pelo contrário, existem muitas implicações práticas e cotidianas. Até mesmo as relações interpessoais não escapam de serem permeadas por relações de poder. Vejo muito sobre a necessidade de uma mulher trans*, ao se engajar em um relacionamento, ser “eticamente” obrigada a deixar explícito a sua identidade de gênero ou a sua morfologia genital. Essa exigência cissexista se liga muito a discursos que freqüentemente acusam pessoas transgêneras (em especial, mulheres) de “enganarem” seus parceiros.

Se entendermos a transgeneridade como mais uma característica qualquer, dentre tantas e quaisquer outras, se compreendemos que pessoas trans* e cis devem ser tratadas de forma simétrica, fica evidente que uma pessoa não é obrigada a fazer de sua transgeneridade seu cartão de visita, da mesma forma que uma pessoa cisgênera não o faz. Uma mulher transgênera não mente se diz que é uma mulher. Ela não é obrigada a falar sobre sua identidade ou genital assim como outra pessoa cisgênera não o é.

Com isso não estou querendo forçar uma obrigatoriedade de que as pessoas se relacionem com mulheres trans*. É evidente que não estou falando disso. Quem acredita neste discurso ou o pratica acaba acusando algo de perigoso nas mulheres trans*, o que reforça que elas são diferentes, aberrações e anomalias da natureza. Se transgeneridade é um fator tão decisivo a ponto de apenas por ele alguém se recusar a entrar em um relacionamento, certamente é porque vivemos em uma sociedade extremamente transfóbica. O discurso da necessidade de uma pessoa trans* ser obrigada a contar sobre sua identidade só se sustenta pela crença de que ser transgênero é uma abominação. Logo, compactuar com essa prática é reproduzir a violência que pessoas trans* sofrem, de que elas não merecem viver. Propaga-se assim a disforia.

Proponho uma lógica diferente: são as pessoas trans* que precisam ser protegidas de relacionamentos abusivos e não pessoas transfóbicas que precisam ser previamente “alertadas” sobre a condição transgênera. É o sentimento das pessoas transgêneras que está em jogo, pois são elas que estão sendo oprimidas. Ironicamente, já me deparei com argumentos que evocavam uma suposta “ética”. Pois bem, minha ética está em proteger quem de fato deve ser protegido. Então eu gostaria muito que essas pessoas que não gostam de se relacionar com pessoas trans* deixassem isso bem claro. Elas que devem estampar isso de antemão já que eu, enquanto mulher trans*, não quero ser enganada por alguma pessoa que pode de repente não gostar de mim apenas pelo fato de eu ser trans*. Afinal, a única excrescência ou anormalidade não está na transgeneridade, mas sim na ojeriza que surge quando se toma conhecimento da transgeneridade alheia. Logo, é o seu “asco” que deve ser mencionado, pelo seu caráter de excepcionalidade. E de uma única tacada, estaremos também deslocando o conceito de normalidade, de modo que ser transgênerx passa a ser encarado como um fato banal. Afinal de contas, quem está enganando, na verdade, é o cissexismo.

Caso contrário, é a transfobia que prevalecerá através do discurso que relega as pessoas trans* a desumanidade. Não vamos continuar reproduzindo a ideia que pessoas trans* são anormais, não-homens, não-mulheres de verdade ou simplesmente não-humanas. Não vamos continuar celebrando dias-das-mulheres sob uma terrível escuridão transfóbica, vamos celebrá-los mais conscientes de que a categoria mulher é mais ampla que a cisnorma pode supor.

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