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O irrompimento da cisgeneridade

Levando em consideração, a partir das formulações da Análise de Discurso de que a língua é sujeita a falhas e que comporta a lalíngua (a língua que comporta a incompletude do inconsciente e dos sentidos), passo a entender a passagem da utilização do termo cisgênero não como uma criação, mas sim como irrompimento. Aqui no blog já propus que o surgimento do termo se deu na passagem incessante entre a linguagem e o silêncio, a partir de algumas reflexões de Eni Orlandi. Ou seja, o termo cisgênero não foi criado, foi irrompido na cadeia de significantes que simboliza o gênero (e por deslizamentos, a própria sexualidade). Afinal de contas, não se pode “criar” um termo, assumindo o teor de “novidade” que este verbo poderia indicar, que esteja nomeando algo que já está sempre lá, significando de alguma (outra) forma. A questão, de fato, é entender que estas formas de significar o gênero pelo (cis)gênero que “já estão lá desde sempre” acontecem de uma forma especialmente “subterrânea”: no inconsciente e pela interpelação ideológica.

Trata-se de uma aparente sutil diferença entre concepções de linguagem, mas que julgo muito relevantes. A diferença está entre não compreender a língua como um mero repositório de léxicos que serviriam para rotular uma realidade extra-linguística, mas sim compreende-la a partir de sua espessura semântica, sua ordem própria (ordem esta tributária à linguística). Então, entender que a língua possui uma “ordem própria” diz respeito a entendê-la através da relação que os signos mantêm entre outros signos dentro do sistema linguístico.

Para compreender a irrupção do termo cisgênero temos que observar não apenas que o termo refere a certas pessoas no mundo que são/seriam cisgêneras, mas para a relação que o termo estabelece com outros signos, em especial com o termo transgênero. E também dizer que há algo “mais” (ou melhor que “falta”, já diriam os psicanalistas) que o puramente linguístico, ou seja, os significantes deslizam nas cadeias simbólicas de formas não “esperadas”, inusitadas. É quando irrompem enunciados não logicamente estabilizados, já diria Pêcheux. Este é o real da língua que falam os analistas de discurso. Lembro de ter lido em algum lugar que para ser analista de discurso é preciso ser linguista e ao mesmo tempo não ser; acredito que aqui seja bem o caso, já que proponho pensar a irrupção do termo cisgênero como uma falha (ideológica) do gênero.

cis-temÉ a partir desta perspectiva que podemos compreender como a nomeação da cisgeneridade envolve uma estranha-familiaridade. Afinal, é algo que está sempre “já lá” mas a partir do momento em que ela surge como uma materialidade significante em sua total opacidade, há um estranhamento. Por que será que pessoas cis não sabem que são cis? Ou então, mesmo que tenham contato com as “definições” sobre o termo, por que ainda não se identificam como cisgêneros, ou simplesmente não “entendem”? De onde surge esta resistência ao significante? Como é possível um homem-designado-homem ou uma mulher-designada-mulher ao nascerem não se reconhecerem como cisgêneros?

O par estranheza-familiaridade também joga com o absurdo-evidência, como também nos propõe Pêcheux (2009), ao relacionar com a questão do pré-construído. O pré-construído consistiria numa “discrepância pela qual um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado “antes, em outro lugar, independentemente”” (p.142). A evidência sobre homens e mulheres serem homens e mulheres esbarram no seu par estranheza-absurdo quando se deparam com alteridades transgêneras. As determinações “homens nascidos homens”; “mulheres nascidas mulheres”; “homens e mulheres verdadeirxs” e “homens e mulheres biológicxs” mostram bem onde a familiaridade-evidência se choca com o absurdo-estranheza. Em todo caso, o que subjaz a todas essas formulações é o caráter de “absurdo” que uma possível alteridade que viria a se estabelecer entre pessoas cis e trans*, o que nos remete a “evidência” ideológica que alguns homens e mulheres são mais verdadeirxs/biológicxs/nascidxs do que outros.

A cisgeneridade funciona como uma lei em que a identidade do sujeito é simbolizada e determinada em uma cadeia de significantes. Com isso não quero dizer que o significante cisgênero tem que estar necessariamente ocupando seu lugar na cadeia pra que faça sentido. Aliás, ele é muito “produtivo” justamente quando se recalca e produz sentidos em sua ausência necessária. As determinações como “homens e mulheres biológicxs”; “homens e mulheres nascidxs homens e mulheres”; “homens e mulheres verdadeirxs” são formas como o significante cisgênero é irrompido na sua presença pela ausência nas formas de designar “homens” e “mulheres”.

O sujeito cisgênero pensa que domina seu discurso por meio destas designações que busca a completude do mesmo, mas trata-se novamente de uma ilusão: se o sujeito cisgênero é biológico, em que medida o sujeito transgênero não seria? Se o sujeito cisgênero é verdadeiro e nascido como tal, em que medida o sujeito transgênero também não seria? Aqui a língua é impiedosa para o sujeito cisgênero: o equívoco insiste em aparecer, desestruturando o sujeito uno novamente. Para isso as pessoas trans* tomam seu papel, aliando o simbólico com o político: afirmamos que somos também pessoas biológicas (existimos no real), nascidas enquanto tal (o desígnio de gênero no nascimento não é transparente) e tão verdadeiras (ou falsas) quanto às pessoas cisgêneras. Questionamos novamente o mundo semanticamente normal cisgênero (que a cada insistência no equívoco se mostra cada vez menos “normal”, acrescentaria, e mais estranho a si mesmo).

Se entendemos que a ideologia interpela os indivíduos em (desde já) sujeitos, entendemos que o gênero interpela (os desde já) homens em Homens e mulheres em Mulheres pelo norte da cisgeneridade compulsória. Mas esta interpelação não se dá sob a forma da perfeição, é certo que existem falhas, e isso se observa na hiância entre os homens e mulheres entre letras minúsculas e maiúsculas, ou seja, ao ser interpelado pela forma/ilusão da autonomia do gênero, os homens e mulheres irão manifestar certa estranheza-familiaridade com o próprio gênero. Aqui a metáfora com a “letra maiúscula” para entender a interpelação do sujeito não precisa de maiores explicações: todo mundo sabe o que é “um homem com H maiúsculo”. É dele (ou deste imaginário sobre o homem) que estamos falando, assim como o seu correspondente imaginário do sujeito feminino. O sujeito tende a almejar o Sujeito em um efeito de total encobrimento e univocidade, mas há uma falta neste processo, uma falha dada ao grande Outro que lhe é constitutivo e que ameaça a sua própria coerência.

É nesta hiância entre o sujeito e o Sujeito do (cis)gênero que o gênero como norma cisgênera e heterossexual pode ser contestado (e nomeado). É no entremeio desta falta constitutiva que emerge a cisgeneridade em sua faceta mais opaca: como um significante, como a própria forma de nomeação do hegemônico. O processo de nomeação do hegemônico passa a ser o próprio processo do desvelamento da hegemonia. Aqui talvez podemos observar a ligação material paradoxal entre ideologia e inconsciente: se a cadeia que simboliza o gênero é inconsciente, é certo que a irrupção da cisgeneridade no discurso se dá através da passagem dos sentidos que estão inconscientes e emergem sob determinada forma na pré-consciência ou consciência. É juntamente nesta emergência de significações que vislumbramos o político. Com isso proponho devolver a opacidade aos nossos próprios corpos, corpos esses tão generificados pela ideologia.

Isso diz respeito diretamente a uma “inversão” que estava pensando ultimamente. Não iremos mais entender os motivos biopsicossociais das subversões ou disforias de gênero. Isso pois, nesta proposta de análise, proponho uma “teoria não subjetivista da transgeneridade”. Não vai ser por meio do biologismo, do psicologismo ou do sociologismo que iremos entender as identidades trans*, pois não existe nenhum motivo biológico, psicológico ou social por si só (ou todos inter-relacionados) que poderiam definir e determinar a transgeneridade. O que de fato não existe é motivo para que a cisgeneridade compulsória não seja questionada, a partir do momento que compreendemos que a cisgeneridade funciona como forma de interpelação ideológica (pela falha). Isso significa, por fim, problematizar ou questionar os entendimentos sobre as identidades trans* que são feitos (em especial) pelos discursos da psiquiatria/psicologia e do feminismo radical. Ou seja: transgeneridade não é, em última instância, da ordem do empírico-biológico, não é determinada por razões psicológicas/psiquiátricas (a utilização do termo “autoginecofilia” exemplifica muito bem o furo destas perspectivas psicologistas) ou sociológicas. A(s) transgeneridade(s) é sim um vetor material que desestabiliza as formas de identificações pela cisgeneridade compulsória, ou seja, são múltiplas formas de resistências.

Referência

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. tradução: Eni Orlandi et al. - 4a edição - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.

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Línguas de madeira e vento trans*?

Uma língua de madeira é, como tratam alguns autores da análise do discurso como Michel Pêcheux e Françoise Gadet, uma língua autoritária, na qual os sentidos sobre as palavra são tomadas na sua relação de transparência com o mundo. Se as palavras, a partir desta concepção, referem de forma transparente a relação mundo-linguagem, depreende-se por certo que exista uma forma, em última instância, mais correta e verdadeira de “nomear as coisas”. Em se tratando de sentidos sobre (as “coisas”) “travestis” e “transexuais”, a língua médica/psi é a nossa língua de madeira: estabelece-se quais são os sentidos destes termos por meio da nosologia psiquiátrica (presentes nos manuais como CID e DSM), na qual o (trans)gênero é patologizado. A língua de madeira serve, como definem os mesmos autores, ao mesmo tempo, para “comunicarem e não comunicarem”. Neste caso, a (não) comunicação se dá sob a forma da colonização cisgênera.

O sentido, entendido aqui, não é sempre passível de deslocamento ou falha, trata-se aliás do contrário: do estabelecimento de critérios (que se propõem unívocos ou como a própria tentativa de evitar ao máximo o equívoco) diagnóstico sobre os “transtornos” ou “disforias” de gênero. Todo transtorno deve ser devidamente rotulado, sob a (ilusão da) transparência da linguagem. O corpo disfórico é tido como possuidor de uma verdade biológica escondida, a qual o psiquiatra deve dissecar através de um interrogatório (!) visando o “correto diagnóstico”. Muita tensão aqui: o diagnóstico correto é tido como uma estrita necessidade, já que algum perigo envolvendo o (cis)gênero está iminente: alguma tragédia está prestes a acontecer. Vendem o perigo e cobram a “solução”. Nossos médicos só poderiam estar para nos salvar, não é verdade? Nos salvar (ou seria curar?) do que mesmo?

O discurso do sujeito trans é tido como uma barreira para a prática médica, já que o mesmo poderia estar camuflando a pretensa verdade inscrita no biológico (da disforia). Estaria “simulando”. A razão desta simulação ainda me parece obscura, mas é certo que o sujeito a faz. O bom sujeito trans deve ser um vetor transparente para que a biologia fale a partir dele, sem ambiguidades. Assim, deve-se restituir, a partir da anormalidade trans*, um mundo “semanticamente normal” sobre o gênero e o (cis)gênero. Os “profissionais” e os “especialistas” do gênero necessitam trabalhar neste espaço em que o real do sexo é domesticado. Não se deve, por exemplo, dizer-se enquanto mulher e gostar de cavalos (!). Mas afinal de contas, qual verdade estaria sendo escamoteada?

O psiquiatra ocupa este lugar social: de dizer a verdade sobre nossas identidades, já que somos despossuídas de auto determinação; nosso lugar enquanto enunciadorxs é sempre a da suspeita, do engodo e da “falsidade ideológica”. Eis que diga o juiz! Este só irá levar em consideração nossa identidade (frente ao jurídico) na medida em que somos mediadas (faladas) por psiquiatras/psicólogos/psicanalistas/endócrinos/cirurgiões/assistentes sociais (cisgêneros). A cisgeneridade é um violento filtro social para pessoas trans, não é a toa que o nosso ingresso no “universo cis” é sempre marcado pela marginalidade e pelo percalço.

Voltando para a língua. Fiz esse texto não para pensar somente na língua de madeira dos médicos, mas também como esta língua é atravessada no próprio discurso das pessoas trans* e também para discutir sobre uma suposta língua de vento que tenho visto circular pelo facebook. Esta língua de vento se dá em resposta à língua de madeira médica/trans*, ela se propõe fluída, como uma crítica e uma saída, às ditas “caixinhas” e às políticas identitárias essencializadas sobre travestis e transexuais. É a língua do “transgênero” e dxs “transgentes”. Mas em que medida essa mesma língua de vento acaba por ser ela mesma uma língua de madeira?

Esta nova língua de vento transgênera parece ter pavor de certas formas de subjetivação que seriam “normativas”: as travestilidades e transexualidades. Paradoxalmente, ao negar o discurso médico, ela precisa negar estas formas de subjetivação. Estas identidades “normativas” precisam ser julgadas, foracluídas do discurso. Só assim chegaríamos à “revolução” (seria, quem sabe, a abolição de gênero de que tantas feministas radicais falam?). O “correto” aqui passa a ser transgênero. Cria-se um efeito de ilusão de unidade, a qual todas as pessoas trans* deveriam (frise bem esta palavra) estar incluídas sob o termo guarda-chuva. Em suma: uma língua que se propõe de vento, mas acaba por se tornar tão autoritária quanto a língua de madeira médica. Uma língua de unificação da nação transgênera à la stalinismo.

O que este discurso parece não conceber é que o próprio gênero funciona através das falhas. E estas falhas se dão sobre a forma da contradição. Ao negar a falha constitutiva do gênero este discurso transgênero se torna surdo para as formas de resistência de travestis e transexuais. Desta forma não se percebe os movimentos de deslocamentos (que se dão pela reprodução) de sentidos. A tensão constitutiva entre paráfrase e polissemia: se tangencia o novo pela repetição.

Por mais que de fato exista um inegável atravessamento do discurso médico normativo no discurso do blog “mundo t-girl”, materializado neste glossário sobre a “Diferenciação básica entre Travestis, Mulheres Transexuais e Homens Trans & Andróginos, Cross Dress, Drag Queen, Drag King, Lady-Boys, She-Males” não podemos nos ensurdercer para os deslocamentos que significam enunciar a partir de um espaço muito diferente do médico: a das próprias travestis, neste caso.

Os (sic) “travestis” dos médicos não são as mesmas travestis do blog/grupo “mundo t-girl”. O (sic) “travestismo bivalente ou de duplo papel” do discurso médico não possui o mesmo sentido das “travestis super femininas”. As travestis são significadas (por elas) de outra forma. Aqui elas questionam justamente o mundo semanticamente normal dos médicos psiquiatras: o fato de eu ter “peito e pau” não é uma incongruência. Sou “super feminina” e isso não significa que eu repudie meu órgão genital, por exemplo. Mesmo as “mulheres do terceiro milênio” não são as mesmas “transexuais male-to-female” do discurso médico. As mulheres (transexuais) também (se) designam de forma diferente. Aqui as formas de determinação não deixam mentir: se tratam de deslocamentos de sentidos, sob a forma da contradição.

A meu ver, é muito mais vantajoso observar estas rupturas de sentido que são reais, dar voz aos sentidos que irromperam do não-sentido que circulam já, do que conceber sentidos a priori e calcificados sobre estas sujeitas travestis e transexuais. Nossa interpretação é política, e a forma como nós interpretamos estas formas de (re)existência significam, trata-se de uma responsabilidade ética. E eu acredito que se trate de uma responsabilidade ética para o transfeminismo a não colonização das subjetividades, sobre as formas de estar no mundo e (nos) significar.

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Sobre o termo cisgênero, o equívoco da língua e o político na sigla LGBT

Escrevo este texto pensando o encontro que a defensoria pública realizou para falar sobre “identidades trans”, em que estavam presentes a psicóloga Bárbara Dalcanale Menêses e o assessor técnico do centro de referência LGBT, Márcio Régis Vacon como palestrantes. Ao se falar sobre transgeneridade, é urgente problematizarmos certas evidências de sentidos, na medida em que considero extremamente importante o não apagamento do político da questão transgênera. Aprendi com a análise de discurso fundada por Michel Pêcheux (AD) que a impressão que as palavras designam inequivocamente coisas e objetos no mundo se dá através de um efeito ideológico; também aprendi, contudo, que a ideologia funciona pela falha. Isso significa dizer, entre outras coisas, que o sentido, apesar de parecer evidente, pode ser sempre outro, a partir do momento em que a língua (para significar) necessita da inscrição da história, e com isso, os sentidos estão sempre já divididos pelas contradições das lutas de classes. Dizemos, portanto, que a linguagem não é transparente, já que ela não designa de forma unívoca; ela é, ao contrário, opaca.

Para a AD, a falha da língua pela ideologia se denomina equívoco. A ideologia aqui é entendida como necessária para a relação do sujeito com os sentidos, se distanciando, portanto, de concepções de ideologia como “ocultação da verdade”. É a partir de uma formação discursiva que os sentidos vão ser mobilizados através de uma posição de sujeito (um exemplo clássico para entender isso sucintamente quando, a rede Globo, por exemplo, utiliza “invasão” enquanto que um blog de esquerda, para referenciar a mesma situação, irá utilizar o termo “ocupação”; os sentidos estão divididos, e uma posição sujeito determina, neste caso, uma “escolha” diferente do léxico).

Então o que a cisgeneridade diz respeito ao equívoco da língua? O que diz respeito ao (apagamento do) político? Certamente muita coisa. Bárbara começou sua palestra “explicando” quem eram (ou o que eram?) as letrinhas da sigla LGBT. LGB são pessoas não heterossexuais, dizem respeito às orientações sexuais, e o T são pessoas trans*, diz respeito às identidades de gênero. Percebam, contudo, que essa definição, a priori, “correta”, mobiliza certas evidências, pré-construídos. Por que, ao falar sobre pessoas não-heterosexuais, sempre referenciamos pessoas cisgêneras? Quem são os (cisgêneros) gays, lésbicas e bissexuais afinal de contas? Por que o tema da identidade de gênero é sempre secundarizado (e como isso se dá historicamente, na materialização dos discursos?)?

"Por que eu deveria... me designar como cisgênero?". Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

“Por que eu deveria… me designar como cisgênero?”. Fonte: https://xandradurward.wordpress.com/2013/05/31/whats-in-a-name/

Os LGB são sempre os homens e mulheres (cisgêneros) que se atraem por homens e mulheres (cisgêneros); enquanto que o T apenas atrapalha essa cadeia de significações. Essa é uma das evidências de sentido sobre a sigla LGBT: a tensão/contradição entre a reunião entre orientações sexuais desviantes e identidades de gêneros desviantes não é “resolvida” (ou é para mim, enquanto transfeminista, a materialização de um discurso cissexista) de forma satisfatória pela posição de sujeito cisgênera, na medida em que apaga a possibilidade de (existência do) sujeito trans*, e também apaga a própria possibilidade do sujeito trans* de ter uma sexualidade (!). Não somos destituídxs “apenas” da família, do acesso à educação e empregos, mas também da ordem significante que simboliza a sexualidade. Não temos também o direito de termos desejos! A sexualidade de uma mulher trans* em especial é vista de forma abjeta pelo discurso médico. Somos obrigadas a realizar o impossível em busca do laudo: ora performando uma identidade heterossexual legitimada socialmente, ora performando uma identidade assexual na qual nunca é suficiente, já que sempre somos passíveis de sermos desqualificadas enquanto mulher e enquanto ser humano por qualquer sinal (ou ausência) de sexualidade/gênero.

Esses sentidos desarticulam a possibilidade de resistências transgêneras, já que a própria possibilidade de humanidade nos é interditada pela linguagem. É aí que o simbólico diz respeito ao político, aliás. Afinal de contas, quem nunca se deparou com o equívoco (percebam a relação sempre com o linguístico e os significantes) acerca da orientação sexual tanto de pessoas trans* quanto de pessoas (cisgêneras) que se atraem por pessoas trans*? A pessoa (cisgênero) que namora uma mulher trans*/homem trans* é “hétero” ou “homo”? Ou nenhum dos dois? Risos!

A transgeneridade (enquanto cisgeneridade mostrada em sua opacidade significante), portanto, é uma verdadeira arma (aliás, arrisco dizer a maior delas) contra a heteronormatividade. Quem dera os gays (cisgêneros) dessem conta disso e articulassem isso politicamente… mas infelizmente é mais fácil se apegar a certas identidades essencializadas, tomadas como transparência da linguagem. Identidades essas, que dizem respeito à orientação sexual, que pessoas trans* não têm o privilégio de reivindicarem plenamente. Falar sobre tudo isso, portanto, é também falar sobre o impossível da orientação sexual, sobre suas falhas, equívocos.

Os sentidos sobre a sexualidade das pessoas trans* estão interditados na medida em que o sujeito (de orientação sexual neste caso) universal é cisgênero. E isso se dá através das evidências mobilizadas pela posição de sujeito cisgênera. Por que pessoas trans* são sempre o puxadinho (precário) da laje da significação, são sempre o Outro, que, a partir do momento (contraditório) em que se reconhece o real deste grupo até certa medida: até a medida em que a cisgeneridade é posta como ponto incontornável (e insuportável)? São sempre aqueles que sobram, são o Outro não na sua relação de alteridade, mas na sua relação de abjeção. A simbolização da linguagem de tudo o que se refere a transgeneridade (o real) pela posição de sujeito cisgênera é marcada pelo político, pelas relações de poder. Isso significa que há uma “afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos, caracterizada pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real”, como bem define Eduardo Guimarães na sua semântica do acontecimento. E o discurso da biologia também é mobilizado por esse discurso cisgênero (designar pessoas cisgêneras como “biológicas” é um exemplo disso). E inserir o biológico na discussão é o mesmo que retirar-se do debate político.

Que existe um desconforto de pessoas cis com o termo cis não é novidade. Já falei muito disso aqui no blog. O que também é curioso é ver pessoas trans* “defendendo” a não utilização do termo cisgênero. Isso apenas nos mostra que a posição do sujeito não é empírica nem automática: pessoas trans* podem assumir esta posição de sujeito cisgênera, assim como pessoas cis podem assumir uma posição de sujeito trans* (ou transfeminista).

Vejamos certos efeitos de sentidos nos enunciados:

  • As pessoas trans* são aquelas que se identificam com o gênero oposto.
  • O homem que se veste como mulher é uma mulher transexual.
  • O que diferencia uma transexual de uma mulher é o biológico.

Nos enunciados há o efeito de pré-construído. Isso significa que algo nos enunciados “disse antes, independentemente” que atravessa o dizer e que, nestes casos, se dá sobre a forma da contradição, gerando um efeito de sentido ora paradoxal, ora transparente. Quando se define que uma “pessoa trans é aquela que se identifica com o gênero oposto” se afirma, por meio do implícito, que a pessoa trans pertence a um gênero (ela “é” alguma coisa) com o qual ela não se identifica. É aí que o equívoco se manifesta: como posso me identificar com algo que desde sempre (desde todos os dizeres, os já-ditos) eu já não seja? Este pré-construído articula dizeres anteriores que afirmam que mulheres trans* não são mulheres e homens trans* não são homens. Qual é o gênero oposto de uma mulher trans*: o feminino ou masculino? Este enunciado afirma o paradoxal: o gênero “oposto” de uma mulher trans*, a partir do seu próprio ponto de vista, é o masculino. Como poderia uma mulher se identificar com o gênero masculino? Sentidos de transparência acerca dos termos “homem” e “mulher” atuam de forma semelhante no segundo enunciado. Esses efeitos de pré-construído se dão através de um atravessamento com o discurso da biologia/medicina, no qual o desígnio de gênero ao nascer é mobilizado como evidência de que “sejamos” homens ou mulheres produzindo coerência para os termos “homens” e “mulheres”. Por isso o terceiro enunciado possui efeito de transparência. Mas aqui vai o equívoco: falar sobre transgeneridade é falar sobre o biológico? Como, então, esses enunciados podem ser tão transparentes? Como essa relação de transparência se deu historicamente? É hora de deixar para trás o “biológico” para se falar sobre (cis)generidade. Isso significa dizer, afinal, que pessoas cis não são biológicas.

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Nota de repúdio à entrevista de Rafael Kalaf Cossi e um convite a se pensar a psicanálise

Nota de repúdio: cansadxs de colonização

Não é novidade alguma a que vamos falar aqui. Cabe ressaltar também que não se trata de nenhum “ataque” ao indivíduo de Rafael Kalaf (mesmo que tenha sido o mote deste texto), mas sim a todo um discurso recorrente no campo dos saberes “psi” sobre transgeneridade que não julgamos apenas inadequado, mas também muito prejudicial. Na entrevista, disponível em http://lacaneando.com.br/rafael-kalaf-cossi/encontramos diversos estereótipos negativos e colonizatórios acerca da transgeneridade que tanto debatemos no transfeminismo. Na segunda parte do texto, logo abaixo, proponho um convite a se pensar deslocamentos na psicanálise, através da forclusão (ou foraclusão) da cisgeneridade. Vamos elencar primeiro aqui trechos da entrevista que considero bastante problemáticos, que serão comentados:

  • “autor do livro Corpo em Obra – Contribuições para a clínica psicanalítica do Transexualismo”.

Transexualismo. Já começa por aí. Não falamos “Transexualismo”, mas sim transgeneridade. A escolha por um termo é uma escolha que desvela uma posição política. Se fosse você, Rafael, mudaria o nome do seu livro. Muito provavelmente mudaria o conteúdo do livro também.

  • “Esse quadro clínico me despertou grande curiosidade e fiquei muito instigado a pesquisar esta questão. Fui amadurecendo a ideia, ao longo de dois anos, até definir o que eu iria estudar, e o tema acabou se tornando uma pesquisa de mestrado. Tema este, até então, bem pouco abordado pela psicanálise.”

Transgeneridade não é nenhum “quadro clínico” que pessoas cis possam sentir “curiosidade” e serem “instigados” a pesquisar. Nós somos pessoas, sujeitos. Não somos cobaias, não somos massas amorfas à espera de sermos “pesquisadxs” e “entendidxs”. Temos voz antes de tudo e repudiamos esta forma de se entender nossos corpos, anseios, identidades, etc. Não somos “tema” de sua pesquisa de mestrado, Rafael. Fique sabendo, no entanto, que o seu discurso cissexista é tema dos meus estudos. Pois é, cisgeneridade ainda é um campo também completamente inexplorado. Me “instiga” bastante.

  • “O que me surpreendeu ao visitar o local foi, justamente, a cautela no trato da questão. Eles não defendem a bandeira de que as pessoas podem fazer o que quiser com o seu corpo. Não há uma apologia às intervenções cirúrgicas, até mesmo porque, o fato de se submeter a uma cirurgia não é garantia para a solução do problema, pois permanecem outras questões e o sofrimento continua. Logicamente, em alguns casos, a intervenção cirúrgica melhorou muito a vida da pessoa. Não que ela tenha se transformado em uma mulher, no caso do Transexual masculino, mas porque tendo um corpo mais coerente com o gênero, ela fica mais apaziguada. Mas há de ser observado que, em alguns casos, a intervenção cirúrgica pode até piorar. É uma terapêutica não para todo mundo. É necessário também um trabalho de apoio psicológico. É curioso observar que já existe até um termo para Transexuais que se arrependem da cirurgia: ‘transregrett’. Existem dois livros publicados a respeito. São depoimentos de Transexuais que fizeram este procedimento e se arrependeram. Em um dos casos, a cirurgia só piorou o quadro clínico, deixando o sujeito ainda mais depressivo. Em outro depoimento, a pessoa viveu 17 anos como mulher, inclusive, com reconhecimento social, bem sucedida financeiramente e na carreira profissional, mas ao longo dos anos acabou ficando muito incomodada com a nova vida, inclusive, tendo problemas hormonais. E, após 17 anos, pediu para fazer a cirurgia de reversão para voltar a ser homem, voltar ao sexo de nascimento. O que comprova que a cirurgia não acarreta o fim dos males do sujeito.”

Te surpreendeu positivamente ou negativamente? Transexual masculino? Sério mesmo que você tá usando essa nomenclatura? Mulheres trans* não são “transexuais masculinos”, assim como homens trans* não são “transexuais femininos”. O que justificaria tal predicação? Certamente apenas uma visão cissexista acerca de nossos corpos e identidades. Não somos “quadro clínico” também.

“Solução do problema”. Que problema exatamente? Transgeneridade em si não é o problema. Pessoas trans* sofrem, sim. Mas focar no nosso sofrimento subjetivo é o mesmo que apagar questões políticas que subjazem este “problema”. É apagar a existência da transfobia, do cistema que engendra abjeções. Assim como focar no “arrependimento”. A “solução” pra isso não deve se restringir no âmbito privado, ou seja, não podemos conceber que o fim da transfobia se dará através de sessões de terapia, como foi postulado (indiretamente) acima. Não precisamos (mesmo!) de pessoas cis dando palpites em como nós entendemos nossos corpos e nossas necessidades. Afinal, não vejo nenhuma pessoa cis tendo que passar pelo crivo psicológico/psiquiátrico a fim de conseguir qualquer tipo de cirurgia ou acesso à saúde.

Agora, sobre o mito do arrependimento. “Transregret”? Essa é até nova pra mim. Não precisamos, novamente, destes entendimentos esdrúxulos sobre nossas vivências. É muito curioso como pessoas cis se focam no arrependimento das pessoas trans* com procedimentos cirúrgicos. Por que existe a necessidade quase doentia nesse aspecto? Por que não falar sobre qualquer outro tipo de arrependimento, incluindo o arrependimento de pessoas cis quando realizam cirurgias? Esta perspectiva, novamente, nos retira da posição de protagonistas, nos retira voz. Dizem por nós que “arrependemos” de algo. É sempre a voz cisgênera a mediadora de representação de certo real. E quando dizem, por nós, que “arrependemos”, é engatada toda uma argumentação sobre “cuidados”, “precauções” acerca desta população. Eu reitero: não precisamos destas formas de cuidado. Elas nem ao menos são o que se propõem. Não precisamos de pessoas cis cuidando paternalisticamente de nossas vidas: isso foi e é muito prejudicial. Não reconhecemos autonomia neste processo, apenas colonização.

  • “Outro fator preocupante em relação aos procedimentos hormonocirúrgicos é que eles se tornem tão corriqueiros como as cirurgias plásticas, as intervenções estéticas, as tatuagens, pois existe a ilusão de que precisamos sustentar a nossa identidade a partir da imagem. E o capitalismo contribui muito para isso. Além do mais, existe a ideia de que o sujeito tem que ter total direito pelo seu corpo.”

Bom… vamos lá. Olha, acho muito fácil botar uma pretensa problematização de sustentar a identidade a partir da “imagem”, falar em “capitalismo, e manter a cisgeneridade intocada né? Não são só pessoas trans* que são “normativas”. Não são só elas que querem ter uma “imagem normativa”, mas também pessoas cis. Aliás, acaba sendo uma análise feita aqui muito limitada (pra não dizer transfóbica) quando apontamos apenas um lado da moeda e esquecemos todas as relações de poder que separam pessoas trans* das cis. Quem, ali, “quer ter direito total pelo corpo”? Pessoas cis já não tem esse direito? Não vamos problematizar isso também? Então vamos tomar muito cuidado nesse sentido, ok amiguinhxs cisgêneros?

  • “É muito comum recebermos em consultório, meninos que só brincam com meninas, que tem preferência por brinquedos de meninas, se comportam como tal, tem trejeitos femininos. Mas esses fatores não são indicativos de que ali exista uma criança que possa vir a se tornar um Transexual. O que podemos perceber é que existe uma incoerência entre sexo e gênero, mas ainda é prematuro fazer qualquer tipo de afirmação, de aposta.”

Transexualidade, transgeneridade ou travestilidade não devem ser entendidas como descompassos entre “sexo e gênero”. Primeiro que a definição destes termos não é algo dado a priori. Butler (dentre outrxs autorxs), por exemplo, problematizou muito os sentidos dessa dicotomia, e não vai entender sexo distinto de gênero. É bastante problemática a divisão entre natural e social que esta dicotomia opera, e isso fica claro quando vemos que as pessoas trans* são sempre aquelas cujos corpos não “sustentam” seu gênero. A incoerência não se dá neste nível, mas sim no nível entre sexo/gênero designado e sexo/gênero identificado.

  • “No travestismo, o travesti fetichista usa o seu órgão sexual com fins de prazer, isso não é um problema para ele. O órgão sexual é libidinizado, é uma zona erógena. Muitos travestis fetichistas usam o órgão sexual em proveito próprio e com fins mercadológicos. Existe aí, também, um misto de masculinidade e feminilidade. Já na transexualidade não há um misto de masculinidade e feminilidade, o sujeito sempre se diz identificado com o gênero oposto ao seu corpo e há uma tendência de que o órgão sexual não seja libidinizado.”

Aqui os erros conceituais são gritantes. Primeiro, a noção de “travesti fetichista” é terrível, pois pouco se sustenta além de mero cissexismo. O “uso” de determinado órgão sexual não diz respeito a nenhuma forma, a priori, de identificação de gênero. Assim como a transexualidade não diz respeito à determinada forma de sentir disforia em relação a partes do corpo. Tanto travestis quanto transexuais podem se identificar com formas “mistas” (ou não tão mistas) de feminilidade e masculinidade. Não existe sentido a priori sobre travestis e transexuais, como já disse aqui no blog: as pessoas são livres enquanto formas de se auto identificarem. Tentar assumir um sentido abstrato e generalizante sobre esses termos é uma típica forma de transfobia.

O convite: a forclusão do nome cisgênero

Agora, me arrisco a entender, pela psicanálise, como a cisgeneridade é produtora de “psicoses”. Aqui proponho pensar a psicanálise através das contribuições transfeministas e passar a compreender como a cisgeneridade enquanto conceito analítico pode ser útil nesta e em futuras análises; um esboço de problematização da questão a fim de se pensar uma forma não normativa e empoderadora da psicanálise. Não se trata aqui de devolver a patologização para pessoas cis, mas deslocar o olhar sobre o problema. Pessoas trans* não são o problema, a transfobia sim.

Nesse sentido, a cisgeneridade compulsória é o bastião de todas as formas de cissexismo, e isso certamente reflete na subjetividade do sujeito (do inconsciente). A cisgeneridade é forcluída (rejeitada) em toda forma de manifestação de ódio transfóbico e toda vez que se articula um discurso cissexista/transfóbico pelo sujeito cisgênero. Isso fica bastante evidente toda vez que uma pessoa cis se incomoda com o termo cisgênero ou o acha pouco importante (ou até mesmo “perigoso”). Nesse processo se retifica a naturalidade da cisgeneridade através dos efeitos de sentidos de evidência sobre o “homem” e a “mulher”.

Quando vejo gente cis atacando a identidade de pessoas trans* ao apontarem comparações que se propõem esdrúxulas, como quando dizem que uma pessoa pode “achar” (ou identificar-se) que é homem ou mulher assim como podem “achar” serem qualquer coisa (como papei noel e o coelhinho cor de rosa, ou qualquer outra coisa que soe esdrúxula) é a própria cisgeneridade que se encontra ameaçada, e portanto, é “defendida” arduamente pelo sujeito cisgênero. É aí que vemos a manifestação de uma subjetividade patológica, o sintoma da cisgeneridade enquanto norma, a volta do recalcamento sobre a própria cisgeneridade (já que a própria nomeação da cisgeneridade é suficiente para contestar a forma de identificação do sujeito). Isso porque, devo dizer, estas comparações esdrúxulas se sustentam, só fazem sentido, por meio das evidências sobre os sentidos de “homem” e “mulher” que são orientadas pela norma cisgênera.

Quem acompanha as discussões transfeministas irá entender como a palavra “cisgênero” é especialmente dramática (posso até dizer traumática) para a forma como muitas pessoas cis se identificam enquanto sujeitos. Isso porque justamente o significante (cisgênero), ao esbarrar com os limites de certas formas de representação e tensionar certas relações de sentidos, põe em jogo a cisgeneridade enquanto opacidade. Nesse processo o sujeito aparece com um sintoma bastante característico, e uma das formas de retorno ao recalcamento é quando vemos as determinações “homem biológico”, “mulher biológica” (ou outras formas parecidas, como “homem/mulher de verdade”), formas estas de identificações que podemos entender como delirantes.

Aqui a cisgeneridade compulsória pode ser entendida como a causa destas formas de identificação e psicanaliticamente, como forclusão. Vemos também como ideologia e inconsciente estão materialmente ligados aqui, na medida em que estes sintomas “psicóticos” da cisgeridade estão ligados com as diversas formas de manifestação da transfobia. Aqui a identidade de gênero não é dada pelo “complexo de Édipo”, mas sim na forma como o sujeito lida com a forclusão cisgênera. Isso porque qualquer forma de se falar em “masculino”, “feminino” (e nas clássicas formas da “explicação” do complexo de Édipo em que se muito usa os termos “menino” e “menina” através dos sentidos se dando de forma apriorística) se pressupõe a cisgeneridade, ela está lá (mesmo que na ausência) produzindo estes sentidos como evidências.

Como já dissemos aqui, não há mais volta quanto ao uso do termo cisgênero. E fica bastante evidente como esse termo pode ser útil para não apenas entendermos a própria cisgeneridade, mas também como forma de resistência por nós, ao nomearmos o “normal”. Isso significa rejeitar qualquer forma cissexista de se entender a transgeneridade, incluindo algumas perspectivas da psicanálise (que infelizmente me parecem, até agora, as perspectivas hegemônicas neste campo).

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Cisgeneridade e silêncio

Judith Butler (2003) problematiza a forma como a categoria de “mulheres” é representada ao apontar para os perigos dessa representação (operada pelo feminismo) ao produzir sujeitos em “conformidade com o eixo diferencial da dominação”, o que certamente acarreta limitações políticas. Isso fica bastante evidente quando vemos como a categoria mulheres é cindida nos vetores de raça, classe, orientação sexual, regionais e a importância do feminismo entender esses vetores intersecionalmente. O que propomos no transfeminismo é justamente isso: entender um vetor intra-gênero que se refere à transgeneridade das mulheres. Mas o que está sendo posto aqui é que esse vetor não é da ordem do já-dado ou natural. Tivemos (e temos) que lutar para essa representação e acredito que, no nosso caso, trata-se de uma luta bastante peculiar, já que justamente mulheres trans* não são entendidas, vistas e designadas (como forma de se simbolizar o real pela linguagem) como mulheres “verdadeiras”. São mulheres vistas enquanto alvos da violência misógina+transfóbica e, ao mesmo tempo, excluídas da “mulheridade”.

Proponho pensar a exclusão das mulheres trans* da mulheridade (os efeitos de sentido que corroboram a construção da “mulher verdadeira/biológica/de nascença”) se dando através da produção de sentidos de evidência acerca dos sujeitos homem e mulher como forma de interpelação ideológica pela cisgeneridade compulsória. Também defendo a importância de se pensar analiticamente o conceito de cisgeneridade para compreender a materialidade do sexo em sua maior totalidade ou complexidade.

Butler (2003) afirma também que a “categoria mulheres só alcança estabilidade e coerência no contexto de matriz heterossexual”. Bom, não se trata aqui de questionar isso propriamente, mas apontar uma lacuna que passou a ser óbvia a partir dos apontamentos transfeministas: e quanto à matriz cisgênera? É extremamente recorrente ver em textos de teóricxs queer a problematização da heterossexualidade compulsória. Mas jamais (salvo raríssimas e circunscritas exceções) vi autorxs falarem acerca da cisgeneridade compulsória. A que se deve isso?

Certamente o fato delxs serem autorxs cisgênerxs importa, acarretando na restrição da problematização do gênero a conceitos afeitos à orientação sexual. Isso também não está desvinculado do fato de que pessoas homossexuais/bissexuais/não-heterossexuais (cisgêneras) conseguirem acessar a academia e pessoa trans* em sua esmagadora maioria não. Percebam que discussões afeitas à orientação sexual não são diretamente coextensivas às discussões afeitas à identidade de gênero. Com isso não quero resumir o fato dessxs autorxs enquanto pessoas empíricas que são cisgêneras, mas considerar a presença da formação discursiva (o que é possível de ser dito) a que se inscreve o sujeito e a relação dos sentidos a partir de uma posição de sujeito (o sujeito-cisgênero neste caso); conceitos esses formulados pela corrente francesa da Análise do Discurso.

Essa relação de sentido (ou interdição de sentido) me deixa bastante perplexa. Essxs autorxs, ao falar sobre o funcionamento das normas de gênero, utilizam o conceito relacionado à orientação sexual (heterossexualidade) ao invés do conceito relacionado diretamente ao gênero (cisgeneridade). Com isso não quero dizer que não é importante analisarmos como as normas de gênero se intersecionam com questões afeitas à orientação sexual. Mas quero frisar que a impossibilidade destes diversxs autorxs de pensarem numa matriz cisgênera significa através do não-dito. Ou seja, dizer “heterossexualidade compulsória” não significa em si mesmo, também significa pelo fato de não se ter dito outra coisa (“cisgeneridade compulsória”), o que configura um movimento escorregadio “entre a trama das falas” e um traço deixado pelo silêncio. Para tornar o silêncio visível é preciso observá-lo indiretamente por métodos (discursivos) históricos, críticos, desconstrutivistas (ORLANDI, 2007).

Compreender como o silêncio significa me parece extremamente relevante para entendermos a cisgeneridade. Aqui uso o silêncio como forma de significar como formulou Eni Orlandi (2007), não enquanto falta ou ausência de sentido. Também não é o silêncio místico ou mágico (bastante explorado pelas religiões), mas o silêncio em sua materialidade significativa, enquanto presença e não enquanto o inefável.

A cisgeneridade funciona enquanto produtora de normas de gênero/sexo através do silêncio e também só pôde ser pensada/criada (e então dita) porque algo (o gênero/sexo) se significou e se significa no silêncio. O silêncio, segundo Orlandi (2007) não é transparente e atua na passagem entre pensamento-palavra-coisa.

Nesse sentido, quando a autora diz que “o silêncio é fundante”, podemos entender que o silêncio funda a cisgeneridade. Esse silêncio se dá ao mesmo tempo em que produz coerências e inteligibilidades às identidades dos sujeitos cisgêneros e interdições à plena identificação de gênero aos sujeitos transgêneros. Essa interdição é responsável pela produção de abjeções relacionadas à transgeneridade. Mas essa interdição também enseja formas de resistência pelxs subalternxs.

Então quando pensamos sobre formas de quebrar este silêncio (que se deu por um irromper da linguagem dentro do próprio silêncio), através da nomeação da cisgeneridade em um dito, vislumbramos implicações políticas (ou a ligação do simbólico com o político) e de deslizamentos de sentidos sobre “homens” e “mulheres”. Isso porque “o silêncio intervém como parte da relação do sujeito com o dizível, permitindo os múltiplos sentidos ao tornar possível, ao sujeito, a elaboração de sua relação com os outros sentidos” (ORLANDI, 2007, p.89).

Essa quebra de silêncio (a linguagem) funciona como uma forma de “domesticação da significação”. Mas certamente este retorno à linguagem que o termo cisgênero proporciona não se trata de um retorno ao mesmo. Produz-se uma nova identidade através da linguagem, com uma coerência, totalidade e unicidade novas. Vejo que uma passagem pelo silêncio tornou possível uma fala improvável e subalterna de se irromper no silêncio, a fala das pessoas trans* ao nomearem os normais, as pessoas cis. Vozes historicamente silenciadas assim como suas questões, suas vivências, perspectivas e opressões.

Esse novo irromper da linguagem proporciona outras formas de interpretação de algo já aparentemente dado, por exemplo, quando apontei a minha estranheza ao uso de “heterossexualidade” para se compreender o gênero, ao invés de “cisgeneridade”. Nesse processo apontamos as lacunas e os equívocos, questionando a completude do que foi dito.

Cabe aqui a distinção de duas formas de silêncio propostas por Orlandi (2007): o silêncio fundante (necessário para todo o processo de significação) e política do silêncio (o recorte de um sentido a partir de uma posição do sujeito). Assim, como disse, por um lado a opção por se falar acerca da “heterossexualidade compulsória” foi feita a partir de um recorte de acordo a uma posição do sujeito-cisgênero e do outro, a própria possibilidade desta forma de significação (se fundar) se deu através do silêncio fundador. Ambos de certa forma trabalham com o silêncio em torno da cisgeneridade para fazerem sentido. Então, como prática de resistência, através da “passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras”, torna-se possível tanto o surgimento do sentido de cisgeneridade ou do termo cisgênero quanto a ocupação de um lugar emancipatório para o sujeito-transgênero: a relação com o Outro passa a ser redefinida. Aqui está a dimensão política do silêncio, na medida em que recorta o dizer, como define a autora.

Referências

BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade; tradução, Renato Aguillar. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003

ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. - 6ª ed. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

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