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O irrompimento da cisgeneridade

Levando em consideração, a partir das formulações da Análise de Discurso de que a língua é sujeita a falhas e que comporta a lalíngua (a língua que comporta a incompletude do inconsciente e dos sentidos), passo a entender a passagem da utilização do termo cisgênero não como uma criação, mas sim como irrompimento. Aqui no blog já propus que o surgimento do termo se deu na passagem incessante entre a linguagem e o silêncio, a partir de algumas reflexões de Eni Orlandi. Ou seja, o termo cisgênero não foi criado, foi irrompido na cadeia de significantes que simboliza o gênero (e por deslizamentos, a própria sexualidade). Afinal de contas, não se pode “criar” um termo, assumindo o teor de “novidade” que este verbo poderia indicar, que esteja nomeando algo que já está sempre lá, significando de alguma (outra) forma. A questão, de fato, é entender que estas formas de significar o gênero pelo (cis)gênero que “já estão lá desde sempre” acontecem de uma forma especialmente “subterrânea”: no inconsciente e pela interpelação ideológica.

Trata-se de uma aparente sutil diferença entre concepções de linguagem, mas que julgo muito relevantes. A diferença está entre não compreender a língua como um mero repositório de léxicos que serviriam para rotular uma realidade extra-linguística, mas sim compreende-la a partir de sua espessura semântica, sua ordem própria (ordem esta tributária à linguística). Então, entender que a língua possui uma “ordem própria” diz respeito a entendê-la através da relação que os signos mantêm entre outros signos dentro do sistema linguístico.

Para compreender a irrupção do termo cisgênero temos que observar não apenas que o termo refere a certas pessoas no mundo que são/seriam cisgêneras, mas para a relação que o termo estabelece com outros signos, em especial com o termo transgênero. E também dizer que há algo “mais” (ou melhor que “falta”, já diriam os psicanalistas) que o puramente linguístico, ou seja, os significantes deslizam nas cadeias simbólicas de formas não “esperadas”, inusitadas. É quando irrompem enunciados não logicamente estabilizados, já diria Pêcheux. Este é o real da língua que falam os analistas de discurso. Lembro de ter lido em algum lugar que para ser analista de discurso é preciso ser linguista e ao mesmo tempo não ser; acredito que aqui seja bem o caso, já que proponho pensar a irrupção do termo cisgênero como uma falha (ideológica) do gênero.

cis-temÉ a partir desta perspectiva que podemos compreender como a nomeação da cisgeneridade envolve uma estranha-familiaridade. Afinal, é algo que está sempre “já lá” mas a partir do momento em que ela surge como uma materialidade significante em sua total opacidade, há um estranhamento. Por que será que pessoas cis não sabem que são cis? Ou então, mesmo que tenham contato com as “definições” sobre o termo, por que ainda não se identificam como cisgêneros, ou simplesmente não “entendem”? De onde surge esta resistência ao significante? Como é possível um homem-designado-homem ou uma mulher-designada-mulher ao nascerem não se reconhecerem como cisgêneros?

O par estranheza-familiaridade também joga com o absurdo-evidência, como também nos propõe Pêcheux (2009), ao relacionar com a questão do pré-construído. O pré-construído consistiria numa “discrepância pela qual um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado “antes, em outro lugar, independentemente”” (p.142). A evidência sobre homens e mulheres serem homens e mulheres esbarram no seu par estranheza-absurdo quando se deparam com alteridades transgêneras. As determinações “homens nascidos homens”; “mulheres nascidas mulheres”; “homens e mulheres verdadeirxs” e “homens e mulheres biológicxs” mostram bem onde a familiaridade-evidência se choca com o absurdo-estranheza. Em todo caso, o que subjaz a todas essas formulações é o caráter de “absurdo” que uma possível alteridade que viria a se estabelecer entre pessoas cis e trans*, o que nos remete a “evidência” ideológica que alguns homens e mulheres são mais verdadeirxs/biológicxs/nascidxs do que outros.

A cisgeneridade funciona como uma lei em que a identidade do sujeito é simbolizada e determinada em uma cadeia de significantes. Com isso não quero dizer que o significante cisgênero tem que estar necessariamente ocupando seu lugar na cadeia pra que faça sentido. Aliás, ele é muito “produtivo” justamente quando se recalca e produz sentidos em sua ausência necessária. As determinações como “homens e mulheres biológicxs”; “homens e mulheres nascidxs homens e mulheres”; “homens e mulheres verdadeirxs” são formas como o significante cisgênero é irrompido na sua presença pela ausência nas formas de designar “homens” e “mulheres”.

O sujeito cisgênero pensa que domina seu discurso por meio destas designações que busca a completude do mesmo, mas trata-se novamente de uma ilusão: se o sujeito cisgênero é biológico, em que medida o sujeito transgênero não seria? Se o sujeito cisgênero é verdadeiro e nascido como tal, em que medida o sujeito transgênero também não seria? Aqui a língua é impiedosa para o sujeito cisgênero: o equívoco insiste em aparecer, desestruturando o sujeito uno novamente. Para isso as pessoas trans* tomam seu papel, aliando o simbólico com o político: afirmamos que somos também pessoas biológicas (existimos no real), nascidas enquanto tal (o desígnio de gênero no nascimento não é transparente) e tão verdadeiras (ou falsas) quanto às pessoas cisgêneras. Questionamos novamente o mundo semanticamente normal cisgênero (que a cada insistência no equívoco se mostra cada vez menos “normal”, acrescentaria, e mais estranho a si mesmo).

Se entendemos que a ideologia interpela os indivíduos em (desde já) sujeitos, entendemos que o gênero interpela (os desde já) homens em Homens e mulheres em Mulheres pelo norte da cisgeneridade compulsória. Mas esta interpelação não se dá sob a forma da perfeição, é certo que existem falhas, e isso se observa na hiância entre os homens e mulheres entre letras minúsculas e maiúsculas, ou seja, ao ser interpelado pela forma/ilusão da autonomia do gênero, os homens e mulheres irão manifestar certa estranheza-familiaridade com o próprio gênero. Aqui a metáfora com a “letra maiúscula” para entender a interpelação do sujeito não precisa de maiores explicações: todo mundo sabe o que é “um homem com H maiúsculo”. É dele (ou deste imaginário sobre o homem) que estamos falando, assim como o seu correspondente imaginário do sujeito feminino. O sujeito tende a almejar o Sujeito em um efeito de total encobrimento e univocidade, mas há uma falta neste processo, uma falha dada ao grande Outro que lhe é constitutivo e que ameaça a sua própria coerência.

É nesta hiância entre o sujeito e o Sujeito do (cis)gênero que o gênero como norma cisgênera e heterossexual pode ser contestado (e nomeado). É no entremeio desta falta constitutiva que emerge a cisgeneridade em sua faceta mais opaca: como um significante, como a própria forma de nomeação do hegemônico. O processo de nomeação do hegemônico passa a ser o próprio processo do desvelamento da hegemonia. Aqui talvez podemos observar a ligação material paradoxal entre ideologia e inconsciente: se a cadeia que simboliza o gênero é inconsciente, é certo que a irrupção da cisgeneridade no discurso se dá através da passagem dos sentidos que estão inconscientes e emergem sob determinada forma na pré-consciência ou consciência. É juntamente nesta emergência de significações que vislumbramos o político. Com isso proponho devolver a opacidade aos nossos próprios corpos, corpos esses tão generificados pela ideologia.

Isso diz respeito diretamente a uma “inversão” que estava pensando ultimamente. Não iremos mais entender os motivos biopsicossociais das subversões ou disforias de gênero. Isso pois, nesta proposta de análise, proponho uma “teoria não subjetivista da transgeneridade”. Não vai ser por meio do biologismo, do psicologismo ou do sociologismo que iremos entender as identidades trans*, pois não existe nenhum motivo biológico, psicológico ou social por si só (ou todos inter-relacionados) que poderiam definir e determinar a transgeneridade. O que de fato não existe é motivo para que a cisgeneridade compulsória não seja questionada, a partir do momento que compreendemos que a cisgeneridade funciona como forma de interpelação ideológica (pela falha). Isso significa, por fim, problematizar ou questionar os entendimentos sobre as identidades trans* que são feitos (em especial) pelos discursos da psiquiatria/psicologia e do feminismo radical. Ou seja: transgeneridade não é, em última instância, da ordem do empírico-biológico, não é determinada por razões psicológicas/psiquiátricas (a utilização do termo “autoginecofilia” exemplifica muito bem o furo destas perspectivas psicologistas) ou sociológicas. A(s) transgeneridade(s) é sim um vetor material que desestabiliza as formas de identificações pela cisgeneridade compulsória, ou seja, são múltiplas formas de resistências.

Referência

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. tradução: Eni Orlandi et al. - 4a edição - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.

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O feminismo radical e o barão de Münchhausen

Os relatos acerca do barão de Münchhausen tratam sobre “histórias fantásticas e bastante exageradas, propagadas sobretudo na literatura juvenil” segundo a Wikipédia. A história que irá nos interessar aqui (e que também interessou Michel Pêcheux) se trata sobre a fuga do barão de um pântano, na qual, para não se afundar, ele consegue tirar si próprio do poço puxando seus próprios cabelos. Pêcheux viu nesta história uma metáfora para se pensar certos efeitos ideológicos, o efeito Münchhausen. Trata-se do efeito de ilusão subjetiva a partir do assujeitamento ideológico: ao mesmo tempo em que o sujeito é efeito deste assujeitamento, o sujeito se esquece (trata-se de um esquecimento necessário) deste processo. Agora, o que o efeito Münchhausen tem a ver com o feminismo radical?

Proponho pensar aqui neste texto como o discurso feminista radical acerca da univocidade dos sentidos sobre mulheres se articula como forma de um efeito ideológico que alia ora biologicismo e ora sociologismo no recobrimento das contradições. Afinal de contas, o que seria a “abolição de gênero” se não o próprio efeito ideológico de puxar-se pelos próprios cabelos e se ver livre da ideologia (aqui, do gênero)? Se a revolução culminaria na “abolição de gênero” qual a (não) performance de gênero seria a revolucionária? Quais formas de subjetivação do (não) gênero seriam (mais ou menos) “corretas”? Afinal de contas, quem reproduz os tão temidos “estereótipos de gênero”?

Antes de tudo, me reservo a falar sobre o termo cisgênero. Sem dúvidas, este termo está sempre lá quando falamos destas “polêmicas feministas”. Trata-se de entender que o termo significa diferentemente em diferentes formações discursivas (ou seja, como o termo funciona diferentemente em espaços transfeministas e feministas radicais). Feministas radicais alegam que designar mulheres através da determinação “mulher cisgênera” seria uma forma de desarticular a luta feminista. Tudo isso porque “cisgênero”, ao nomear o hegemônico, e apontar que dentre o grupo de “mulheres” algumas possuem privilégios cisgêneros, cindiria um grupo que deveria ser unívoco. E aqui “a classe unívoca de mulheres” é pré-construído para que a emancipação das mulheres e a luta feminista seja possível.

Primeiro, trata-se de observar que o termo cisgênero, nesta formação discursiva feminista radical, através de um deslizamento metonímico que toma “privilégio cisgênero” para “privilégio absoluto”, estabelecendo redes parafrásticas e metafóricas entre “privilégio cisgênero” e “privilégio masculino” que por sua vez desliza para um simulacro sobre “privilégio feminino” que supostamente as “transativistas” estariam apontando. “Privilégio feminino” definitivamente soa como uma blasfêmia para todxs nós que estamos inseridos no campo do feminismo. É através destes deslizamentos metonímicos e metafóricos que o rechaço ao termo cisgênero se torna possível. Contudo, vale ressaltar que este “privilégio feminino” é tão somente o simulacro que a formação discursiva feminista radical faz do discurso transfeminista através de suas próprias restrições semânticas.

Na formação discursiva transfeminista não existem estes mesmos deslizamentos metonímicos, tampouco o pré-construído sobre a necessidade de unicidade do grupo de mulheres e sua articulação política. Aliás, trata-se justamente do contrário: o feminismo só passa a se tornar possível quando simbolizamos o real pela “diferença”, seja neste vetor intra-gênero como nos vetores de raça e classe, dentre outros possíveis. Aqui “mulheres cisgêneras” não são privilegiadas por serem “mulheres”, mas tão somente por serem “cisgêneras”. E são cisgêneras na exata medida em que não são transgêneras. A cisgeneridade não é, aqui, absoluta e não recobre a identidade de “mulher” por inteiro, justamente pelos efeitos de sentido sobre “mulher”, nesta formação discursiva, não serem unívocos. Finalmente aqui me permito, portanto, uma tautologia: privilégio cisgênero trata-se efetivamente de privilégio cisgênero. Neste processo estou tentando conter, sem dúvida, a polissemia que o termo cisgênero permite e orientar para os sentidos que julgo pertinente politicamente.

Com o termo cisgênero não busco uma ligação ontológica entre um significante e um ser no mundo; o que eu busco é uma relação entre significantes na cadeia simbólica. Quem pensa que a “utilidade” (ou melhor, “perigo”) deste termo se resume a rotular pessoas cisgêneras no mundo está de fato perdendo muita coisa. Tenho que reconhecer que a relação entre significantes está sempre passível de deslocamento (muito diferente de uma concepção referencialista da linguagem na qual a relação entre palavra-mundo é tomada na sua relação de verdade). Ou seja: eu não posso prever todos os sentidos que o termo estabelece na história, tampouco advogar para um uso correto e definitivo sobre a designação do termo cisgênero tomando uma concepção referencialista (a qual definitivamente me distancio).

O que eu posso fazer é apontar certos efeitos de sentidos e suas relações com o político. Ou seja, o que procuro são justamente os efeitos políticos que o termo propicia, mas não meramente enquanto efeitos de construção de referência. O que busco no transfeminismo é, além de devolver a opacidade do texto ax leitorx, devolver a opacidade dos nossos próprios corpos. Assim passamos a estabelecer outras relações possíveis entre corpo-linguagem. De fato, o termo cisgênero estabelece uma construção referencial, mas isso não “esgota” o que estou propondo. Estou falando sobre como simbolizamos nossos corpos e identidades, resignificando-os. Isso se dá na medida em que a cadeia em que o termo cisgênero se encontra lidar intimamente com a constituição dos sentidos de como somos interpelados ideologicamente em nosso sexo/gênero na forma-sujeito histórica atual. Seja na sua presença mostrada, seja na sua ausência necessária (a presença pela ausência), os efeitos de sentidos desta cadeia significante permitem ora a transparência, ora a opacidade.

Vemos muitas pessoas cis (não apenas feministas radicais) se contra-identificarem, negando a cisgeneridade. Neste processo o discurso dessas pessoas é “não sou cisgênero”. Trata-se de um sintoma que desvela certas “causas” subjacentes. Nesta contra-identificação paradoxal (que podemos dizer que beira o delírio, como já propus aqui) remete tanto a uma fossilização do significante (o termo cisgênero remeteria a algo no mundo, e este algo seria inominável, resistente a qualquer simbolização) como também à recusa à alteridade. Neste discurso anti-termo cis, a cisgeneridade não é apenas um rótulo, mas também uma ofensa. Afinal, o que estaria “por trás” dessa recusa? Ou melhor, o que ela significa, em sua materialidade? Quais foram os processos metonímicos (inconsciente) que levaram a nomeação da cisgeneridade para o funcionamento de uma agressão? Esse momento nos parece mostrar a ligação paradoxal e material entre ideologia e inconsciente.

O primeiro efeito de sentido que emerge desta discursividade “anti-cis” é de que seria “inútil criar novas caixinhas” e que isto “reforçaria o binarismo”. Oras, trata-se aqui da materialização não apenas do sujeito intencional-pragmático como do sujeito cisgênero enquanto evidência. Este sujeito, afetado pelo idealismo, acredita ser possível não apenas sair da ordem significante, mas da própria ideologia e do inconsciente. Nomear a cisgeneridade não é “criar um termo novo”, trata-se da irrupção do não-sentido para o sentido. Ou seja, a cisgeneridade já funciona lá, seja ocupando o espaço do significante materialmente, seja na sua presença pela ausência. A forma-sujeito cisgênera não precisa “criar um termo” pra fazer sentido; ela justamente o faz na medida em que o termo se recalca, produz sentidos tanto no espaço em que ocupa quanto no espaço em que se faz ausente. O mais engraçado deste discurso é que as pessoas esquecem que é impossível de se livrar da língua (e também de alíngua/lalangue, diria) no exato momento em que se “incomodam” com o termo cisgênero. Mas enquanto isso, outros binômios tão opacos quanto o binômio cis/trans como homem/mulher; hetero/homo; etc. passam completamente despercebidos como sentidos em evidências, como algo já lá intocável. Enquanto pessoas cis podem ter o privilégio de reivindicarem a transparência do seus próprios gêneros, nós, pessoas trans*, somos rotuladas do pé à cabeça como patologias do gênero; precisamos ser rotuladas (como na materialidade do laudo psi) para (quem sabe) acessarmos direitos humanos fundamentais.

O que fundamentalmente diferencia o feminismo radical das outras correntes (em especial, aqui, a transfeminista e as demais correntes intersecionais) é a forma como cada corrente do feminismo lida com a heterogeneidade discursiva. Heterogeneidade discursiva (como nos propõe Authier-Revuz) é a relação que um discurso tem com o que é, ao mesmo tempo, exterior (Outro) e constitutivo do Mesmo (discurso). O feminismo radical trata a heterogeneidade como excrescência que precisa ser negada em prol de uma unicidade (um retorno e reafirmação do Mesmo), enquanto que o feminismo intersecional trata a heterogeneidade como constitutiva e necessária (direciona a uma deriva constitutiva e polissêmica em relação ao Outro).

O que proponho pensar aqui é sobre a construção de um transfeminismo materialista: a tão dita “intersecionalidade” é o lugar material no qual a heterogeneidade (entendida em sua forma contraditória) emerge discursivamente e é simbolizada, textualizada politicamente. A prática feminista é, portanto, a forma como textualizamos politicamente a heterogeneidade das intersecções que cindem contraditoriamente o sexo e o gênero (nas categorias intragênero, de classe, raça, regionalidade, etc.). O feminismo radical, por sua vez, irá apagar o caráter materialmente contraditório do sexo/gênero por meio do idealismo, a partir do desdobramento entre biologicismo e sociologismo. Vamos então observar a cadeia parafrástica presente no discurso feminista radical que parte de evidências que vão do empírico-biológico ao abstrato-sociológico:

1) A biologia diz que pessoas nascem com pênis ou vagina. (Trata-se de uma evidência empírica).

2)Pessoas com pênis são homens e pessoas com vagina são mulheres. (Trata-se de uma evidência sociológica-individual).

3)O gênero é uma estrutura social hierárquica que aprisiona as pessoas em relações rígidas de poder. As mulheres são oprimidas pelos homens opressores pela via do patriarcado. O patriarcado é a forma de opressão primordial, na medida em que engloba e se desdobra em todas as outras formas de opressão. A libertação das mulheres pressupõe a abolição do gênero. (Trata-se de uma evidência sociológica-determinista tangenciando o abstrato).

Portanto, a partir do momento em que os pressupostos (ou melhor, os pré-construídos) apresentados nos 3 itens são contestados (mesmo que parcialmente problematizados) é que as “polêmicas feministas” surgem. O que propomos no transfeminismo é problematizar justamente estas 3 evidências que são tomadas pelo feminismo radical como a ordem natural das coisas.

Em primeiro lugar, a forma como a evidência empírica biológica é atravessada por este discurso biologicizante e sociológico entre um dado da natureza (o sexo macho e fêmea) que é então transposto para o dado do indivíduo (a identidade de homem e mulher) se dá através de um efeito ideológico. Não se tratam de dados da natureza ou da sociologia por si só. Neste discurso feminista radical, em um nível empírico-biológico, há o apagamento das corporeidades intersexuais e neste segundo nível intermediário (de uma passagem metafórica entre “sexo” e “gênero”) se dá o apagamento da interpelação ideológica do indivíduo biopsicossocial em sujeito do gênero.

Já propus diversas vezes aqui neste blog pensar sobre formas de assujeitamento do gênero através da forma-sujeito cisgênera, na medida em que a cisgeneridade é balizadora dos sentidos sobre homens e mulheres; homossexuais e heterossexuais, etc. A cisgeneridade interpela o sujeito em seu desígnio de sexo. Ela fornece as evidências já dadas sobre a realidade e o imaginário que temos de nossa identidade e nosso sexo. Em análise de discurso, trata-se do efeito-sujeito, da ilusão/esquecimento necessários do sujeito sobre o seu próprio dizer que produz a evidência de que sejamos donxs de nossas “próprias” palavras.

Aqui, além das palavras, a forma-sujeito cisgênero acredita que é dona do seu próprio corpo, estabelecendo uma relação de transparência entre “sexo-gênero”. Em contrapartida, na mesma medida em que há a ilusão de um pertencimento/transparência do corpo cisgênero, há o efeito de um não-pertencimento/opacidade em relação aos corpos que desviam da cisgeneridade compulsória (transgêneros). Aqui, articula-se o pré-construído de que pessoas trans* precisam ser tuteladas através do aval-aprovação de pessoas cisgêneras (seja o olhar/julgamento clínico do psiquiatra, psicanalista, psicólogo, assistente social, testemunhas frente ao juiz, etc.). Assim, as performances de gênero de pessoas trans* são interpretadas em sua opacidade, enquanto que as de pessoas cis, são naturalizadas por um efeito de transparência. Quando vemos o discurso feminista radical acusar pessoas trans* de estarem “reforçando os estereótipos de gênero” trata-se deste funcionamento ideológico de recobrimento da cisgeneridade como algo natural.

Portanto, quando dizemos acerca da existência de “mulheres com pênis”, “homens com vagina”, e até mesmo determinações que soam menos “controversas” (!) como “mulheres negras e brancas” e “mulheres trabalhadoras e burguesas” isto irá ser interpretado como uma verdadeira blasfêmia pelo feminismo radical; isso porque irá quebrar a cadeia simbólica que sustenta estas redes parafrásticas do discurso feminismo radical entre os 3 “níveis”. Já o binômio referente à orientação sexual potencialmente polêmico sobre “mulheres heterossexuais e homossexuais” é encoberto pelos efeitos de sentidos sobre a “lesbiandade política”.

Por fim, no último nível da cadeia parafrástica, a relação polêmica que este discurso vai estabelecer com outros discursos não se resume aos discursos transfeministas, mas sobretudo aos marxistas, do movimento negro, de outras correntes feministas e em especial de correntes feministas marxistas, negras e intersecionais. Todas essas discursividades antagônicas ao feminismo radical irão problematizar/contestar o caráter universal que é dado pelo feminismo radical à noção de patriarcado. Nestas outras discursividades, transfobia, opressão de classe e racismo não são completamente encobertos neste guarda-chuva conceitual do patriarcado. Aliás, o pretenso efeito de recobrimento de outras opressões por esta noção de patriarcado trata-se antes de tudo do próprio silenciamento dos outros discursos (sejam marxistas, dos movimentos negros, transfeministas, etc) que estão lá atravessados no discurso feminista radical.

Por mais incrível que pareça, o feminismo radical por vezes se reivindica materialista (estabelecendo inclusive algumas alianças paradoxais com certo discurso marxista). No entanto, esta pretensa determinação “materialista” se distancia completamente do materialismo histórico e dialético: o que existe, como demostrei, são apropriações do idealismo sob a forma do empirismo e sociologismo, nas quais a categoria da contradição se encontra apagada/encoberta. Este recobrimento ideológico se materializa discursivamente nas formas como “mulheres” é designada de forma (pretensamente) unívoca.

Este desdobramento ideológico se atrela como forma de apagamento do sujeito transgênero, em especial, das mulheres transgêneras, e dos novos sentidos que estão sendo clamados por nós na história. Apagamento, portanto, da materialidade contraditória e paradoxal do gênero. Silenciamento do político: justamente aí que se liga materialmente o ponto-cego da teoria feminista radical sobre a (in)compreensão da opressão de natureza transfóbica, suas especificidades. Tanto na versão explicitamente transfóbica quanto em uma versão mais “moderada” e “sensata” destas discursividades (em que se admite que mulheres trans* seriam oprimidas pelo patriarcado de forma mais ou menos generalizante) o que está em jogo é o silenciamento. Trata-se de um encobrimento ideológico que visa dar uma resposta reacionária frente ao movimento de mulheres transgêneras que começa a se insurgir, a disputar sentidos.

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Por um conceito de sexo transfeminista

Em tempos de carnaval, em que pessoas cisgêneras (em especial, homens) se veem livres para tratar mulheres trans* e travestis com chacotas enquanto enganadoras, acho bastante relevante falar como o aparentemente inocente conceito de sexo implica nestas formas cruéis e opressoras de se compreender as pessoas trans*. Diversos autores – como Judith Butler - vêm questionando e problematizando com bastante minúcia o conceito de sexo e o estatuto de sua materialidade. Essas discussões colaboram para uma perspectiva essencial para compreendermos práticas e teorias transfeministas, pois trazem o caráter político/ cultural do sexo, e não apenas, como tradicionalmente foi entendido, acerca do conceito de gênero. Aqui, neste primeiro momento, não me interesso em aprofundar estes debates sobre as controversas acerca da materialidade do sexo, mas sim, enquanto pessoa trans* transfeminista que está iniciando seus estudos nestes autores e nestes temas, apontar minhas impressões sobre algo que ainda me parece incipiente nestes debates: a representação do sujeito coletivo e político de pessoas trans*.

Acredito que esta falta se dê justamente pelo apagamento/silenciamento das questões tipicamente transfeminista pela brutal violência com a qual são submetidas as pessoas transgêneras, que as impedem de acessar direitos básicos, quem dirá espaços como a academia para discutir estas questões políticas (que trazem implicações nos campos do feminismo, teoria queer, antropologia, etc.). Acho que nem ao menos preciso lembrar sobre como a voz das pessoas trans* é correntemente colonizada por pesquisadores, pois isso já foi denunciado aqui neste blog, dentre outros, e em discussões nos grupos e páginas sobre o tema no facebook.

Eu acredito que o transfeminismo seja capaz de suprir esta falta, enquanto meio efetivo para que as vozes das pessoas trans* sejam efetivamente ouvidas e expostas. E é a partir desta voz, antes não ouvida, que vamos passar a compreender o sujeito político de pessoas trans*. Quero problematizar alguns conceitos sobre sexo que tem suas implicações no meu cotidiano e nas demais pessoas trans* e neste momento não vou me aprofundar nas teorias feministas ou queer, mas desejo que seja feito o convite (mais do que urgente) em se pensar de vez sobre transfeminismo e suas implicações na teoria/prática.

Como disse, existe um debate acadêmico/político acerca do conceito de sexo que visa questionar o estatuto abstrato, biologizante e a-histórico do sexo. Esse debate está imerso em diversas “polêmicas”, pois o que se discute aqui se refere ao caráter contraditório do sexo que se manifesta muitas vezes nas tensões entre áreas de conhecimento ditas “humanas” e “biológicas”. Resumindo as querelas, sexo deixa de ser um dado objetivo e passa a ser cada vez mais compreendido – em diversas nuances - como um dado prescritivo que só pode ser entendido nas relações de poder em que se encontra. Estes apontamentos são essenciais para entendermos o transfeminismo, mas não são suficientes a meu ver.

Tenho a impressão que ainda falta discutimos sobre o sujeito político que é diretamente oprimido, que neste recorte, são as pessoas trans*/mulheres trans*. Se não falarmos sobre quem são as pessoas trans* quando discutimos sobre as relações de poder que envolvem o sexo, parte essencial do debate sobre sexo é violentamente silenciado, pois não se leva em consideração integralmente sexo enquanto sua materialidade contraditória.

Pois acredito, enquanto transfeminista, que pessoas trans* são aquelas que sofrem (materialmente) a faceta transfóbica das normas de gênero/sexo. O feminismo conseguiu/tem conseguido problematizar a faceta misógina das normas de sexo/gênero e proponho que façamos o mesmo para a faceta transfóbica, e para isso, é essencial entendermos qual é o seu sujeito político. Se não dermos “nomes aos bois”, a meu ver, estaremos nos furtando de entender as diversas formas de como sexo enquanto norma se materializa. Isso significa dizer que são as pessoas trans* que sofrem com transfobia, e transfobia decorrendo diretamente das normas cisgêneras que o conceito de sexo pressupõe. A discussão sobre o sujeito político do feminismo também foi feita, a partir da dessencialização da categoria mulher proporcionado por perspectivas intersecionais que levaram em consideração questões como classe, raça e agora, também (assim espero), um recorte intra-gênero que considerará a questão transgênera. E vale a pena também ressaltar que este recorte transgênero se relaciona diretamente com a utilização do termo cisgênero enquanto conceito analítico que questiona as diversas formas de naturalização da supremacia cisgênera.

Então afinal, o que é sexo enquanto produtor de transfobia? É bastante fácil observar isso no cotidiano. Não se trata de discussões acadêmicas e difíceis de entender. Quando lemos nas matérias de jornais a forma como tratam as pessoas trans* com nomes, pronomes e flexão de gênero com o qual não se identificam, isso é uma manifestação de sexo enquanto supremacia cisgênera. Quando vemos a insistência contraditória de se levar em consideração o (suposto) respeito à identidade das pessoas trans* porém, ao esbarrar no discurso biológico que ditaria que a verdade por trás do “gênero” de uma mulher trans* estaria “escondido” o “sexo” masculino e com homens trans*, o “feminino”, o que de fato estas construções de sentido implicam? Vemos com relativa frequência esse discurso que respeita as identidades trans* até a página dois, até quando falamos em “biologia”, na qual uma suposta verdade objetiva entraria em jogo e imperaria. É sobre dizer e descrever objetivamente alguma coisa no mundo ou, ao contrário, construir um argumento, de que pessoas trans* são, apesar de suas identidades psíquicas, as “falsas”, aquelas cuja, em última instância, não são capazes de sustentar seus gêneros através de seus corpos?

A pergunta aqui foi retórica: a instrumentalização ideológica de conceitos da biologia serve para a perpetuação de pessoas trans* enquanto falsas e abjetas e a destituição de direitos civis. Quando um juiz nega o reconhecimento à retificação dos documentos às pessoas transgêneras, é usado o discurso biológico, de que tais pessoas não seriam verdadeiramente homens ou mulheres. Quando pessoas trans* são exotificadas, objetificadas, transformadas em seres de potencial “engano” e destituídas de consentimento sobre seus próprios corpos também. Quando pessoas cis se sentem no direito de tornar a transgeneridade de alguém objeto de escrutínio público, quando elas se sentem no direito a saberem se uma pessoa é trans*, caso contrário a pessoa trans* é vista enquanto praticante de alguma forma de delito, também. Quando pessoas cis acham que se trata de apenas uma “piada” chamar uma travesti de mulher falsa, tratando-a como motivo de chacota, também. Trata-se da perpetuação de uma opressão e para isso a utilização de conceitos de sexo enquanto pretenso dado biológico, objetivo, abstrato e a-histórico. Pessoas são trans*, portanto, são oprimidas pelo sexo, não apenas pelo “gênero” (entendido em sua faceta social da dicotomia natural-social).

O que eu quero é que tragamos o transfeminismo para a academia, para as discussões teóricas e políticas das questões de gênero e isso irá significar levar em consideração, em última instância, sexo como materialidade contraditória do discurso que poderá ser apreendido e entendido enquanto produtor não apenas em seu vetor de opressão misógina (às mulheres cisgêneras), mas também em seu vetor transmisógino (às mulheres/pessoas transgêneras); sexo não entendido como um produtor de normas em abstrato, mas que se manifesta e se materializa nas vidas destas pessoas. Levar, portanto, a existência dessas pessoas para estas discussões, em especial, as mais subalternizadas e desvelar como essas formas de opressão ocorrem em suas formas concretas.

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Descolonizando os entremeios de Travestis e Transexuais

Este texto faz parte da Blogagem Coletiva pelo dia da Visibilidade Trans*, uma colaboração entre os blogues Transfeminismo, Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras e True Love.

Por Bia Pagliarini Bagagli

Sinto a necessidade de abordar uma velha questão, que mesmo sendo velha, tenho certeza que continuará a ser posta na ordem do dia através de perguntas e controvérsias acerca das diferenças (opacas, já vou adiantando) entre “travestis” e “transexuais”. Acho interessante falarmos sobre isso pensando o dia da visibilidade trans*, já que muitas vezes (senão todas), são a partir destas duas categorias que pessoas trans* são designadas e, portanto, trazidas para a ordem da representação e do cognoscível (e também para uma ordem do político, como espero mostrar). Quando se pergunta acerca do “estatuto” de uma pessoa trans* - se ela é “travesti” ou “transexual” – não está ocorrendo apenas uma mera pergunta se ela “é travesti ou transexual”. Este tipo de pergunta está atrelada a uma memória discursiva sobre os sentidos de “travesti” e “transexual”, que é rememorada no momento da enunciação, tencionando constantemente os sentidos sobre essas duas palavras na enunciação.

Autores como Bruno César Barbosa e Jorge Leite Júnior¹, mostram como essas categorias médicas referentes à transgeneridade mudaram com o passar do tempo. O que parece ocorrer é uma variável flutuação dos termos “travesti” e “travestismo” (sic); “transexual” e “transexualismo” (sic); “transtorno de identidade de gênero” e “disforia de gênero” (dentre outras variações). Ora são termos mais ou menos intercambiáveis, ora não; ora significam mais ou menos a mesma coisa e ora não². Fica bastante evidente que se trata, antes de uma questão meramente médica ou psíquica, afeita aos campos da psiquiatria e psicologia, uma questão linguística, por estarem expostas questões da significação de palavras – e seus equívocos – permeados e indissociáveis de seus contextos históricos. Percebem-se aí como certas palavras tem uma “importância” pela qual o discurso médico insiste, através de inúmeros pequenos e contínuos deslocamentos, uma apreensão definitiva, legitimada e verdadeira do real.

Os esforços presentes nas diversas categorizações e subdivisões das identidades transgêneras, tanto inicialmente feitas por Harry Benjamin nos anos 50 e 60 quanto pelos atuais manuais diagnósticos como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e CID (Classificação Internacional de Doenças), operam com o intuito de produzir um norte capaz de conter, pelas palavras e nosologias, a diversidade tida como patológica do gênero. Essas categorizações, com um suposto intuito inicial de descrever objetivamente um “fenômeno”, acabam por prescrever e idealizar, dentro da própria categoria abjeta da transgeneridade, corpos e identidades mais ou menos inteligíveis, utilizando para isso as categorias “travesti” e “transexual” e outros conceitos analíticos como “falso” ou “pseudo”, “diagnósticos diferencias” e “intensidades” (referentes aos tidos “desvios” de gênero).

Afinal de contas, o que está em jogo é o preciso “diagnóstico” capaz não apenas de desvelar uma suposta verdade essencial e anterior sobre corpos, identidades e práticas, mas também capaz de imputar um poder colonizador de natureza biomédica: o “tratamento” tido como correto. Médicos e profissionais psi, ao conceber os sujeitos trans* como completamente incapazes de decidir sobre si mesmos, são tidos como corpos passivos que o conhecimento médico deve preencher. Para isso, o poder médico concebe práticas que julgam proteger os sujeitos trans* de si mesmos. É então, por exemplo, que o mito³ da correlação mágica e completamente linear entre cirurgias de redesignação sexual e suicídios é trazido à tona para alertar sobre os “perigos” de uma maior autonomia para as pessoas trans*. As pessoas trans* são destituídas de autonomia sobre seus corpos, narrativas e identidades através destas formas perversas de controle cispatriarcal. E estas formas de dominação irão articular a dicotomia “travesti-transexual” em seu favor.

Para isso, vão operar discursos que procuram estabelecer uma coerência inequívoca entre as palavras, produzindo então uma verdade essencializada sobre esses dois termos. Essa construção de coerência, que visa esconder, por um processo de naturalização apoiada pelas ciências médicas e psi, o caráter contraditório dos termos, vai conseguir operar um controle biopolítico dos corpos e identidades trans*, na medida em que estes termos são acionados e articulados pelos saberes e poderes da medicina e do jurídico enquanto “mediadores” de direitos civis. Para citar dois exemplos clássicos: as resoluções sobre o “diagnóstico” (que permitirá uma pessoa trans* acessar cuidados básicos de saúde) e dos processos judiciários de retificação de documentos (que são condicionados por laudos psi/médicos/sociais pautados, em sua maioria, na patologização da transexualidade). Este controle está guiado por um processo de legitimação4 da identidade transexual em detrimento da travesti. Isso ocorre através de uma burocratização do acesso a atendimento médico e jurídico, pela estrita necessidade da apresentação do laudo de transexualidade. Percebam que quando falamos sobre o tal “laudo”, enquanto um dispositivo normativo requerido para o acesso à cidadania, não é qualquer laudo, na medida em que um hipotético laudo atestando travestilidade jamais teria o mesmo valor que aquele atestando a transexualidade. Nem ao menos concebemos a ideia de um laudo de travestilidade, pois é a transexualidade a categoria almejada e regulada. Isso se torna especialmente cruel, na medida em que reconhecemos a existência de pessoas travestis que requerem certas demandas que são as mesmas das pessoas transexuais, e que são ameaçadas por este dispositivo de terror que é o laudo médico/psi/social. Em última instância, a exigência do laudo de transexualidade como mediador de direitos humanos é uma forma de excluir pessoas trans*, em especial, travestis, negrxs, deficientes e pobres.

Podemos, a partir do momento que compreendemos as relações de poder que articulam essa dicotomia identitária, fomentar novas formas de se pensar e entender as identidades travesti e transexual: extrapolando o “bom-senso” médico-psiquiátrico e jurídico; reafirmando a humanidade das pessoas trans*, em especial das travestis; exigindo a desburocratização do acesso a direitos civis para a população trans* e o respeito à auto identificação; apontando para a própria relação de poder (que procura em si mesma se mostrar inexistente para garantir sua dominação) que está sendo articulada pelos discursos médicos e jurídicos e denunciar os cinismos políticos no que se referem políticas públicas acerca da transgeneridade; problematizar, questionar e borrar os limites entre as duas categorias, ao apontar para os efeitos de pré-construído (o efeito que produz uma transparência e a necessidade de um já-dito para fazer sentido) delas, elaborar, enfim, formas emancipatórias, descolonizadas, empoderadoras e não prescritivas de “ser” travesti ou transexual e negar os entendimentos cisgêneros e patriarcais sobre nossas identidades trans*/femininas.

Isso significa que não estamos discutindo sobre se travestis fazem a cirurgia de redesignação sexual ou não ou outra coisa parecida (como frequentemente ocorrem em discussões homéricas e desnecessárias), mas sim entender que não existe forma correta e definitiva de ser travesti e transexual. Quero, portanto, acirrar e problematizar esses termos a ponto de extrapolar uma nova perspectiva que pode soar absurda que se refere em última instância para a impossibilidade de uma definição unívoca para tais palavras e que, portanto, “existem” e ao mesmo tempo “não existem” as “diferenças” entre travestis e transexuais.

Vamos entender como se constrói a subalternidade5 da identidade travesti em relação à transexual e não naturalizar esta relação. Trata-se de colocar estas palavras de volta ao lugar em que pertencem ao compreendê-las na história e, portanto, enquanto materialidades contraditórias do discurso. Desta forma, se tornam passíveis de serem contestadas as articulações ideológicas destas palavras que corroboram cissexismo. Por fim, cabe desvelar o absurdo e perversidade que é controlar e oprimir pessoas trans* por meio de suas próprias categorias identitárias (que são também, em última instância, palavras). O empoderamento se dará também através das palavras e acredito que as palavras “travesti” e “transexual” trazem à cena um palco privilegiado e necessário para práticas de resistências transfeministas.

Notas

1. Ver Nossos corpos também mudam: sexo, gênero e a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico, de Jorge Leite Júnior e Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e transexual, de Bruno Cesar Barbosa.

2. Relevante igualmente apontar para, ao mesmo tempo em que um discurso médico de língua inglesa influenciou o discurso médico brasileiro (e consequentemente, influenciando terminologias), produzindo, portanto, algumas correlações de sentidos entre termos traduzidos, é de suma importância notar as incompatibilidades de sentidos produzidas entre as línguas, devido a não possibilidade de intercambialidade transparente entre um termo de uma língua e outro. Posto isto, deve-se levar em consideração não apenas equívocos entre línguas, mas também dentro de uma mesma língua e as relações de sentidos que daí decorre.

3. Sobre esse mito (dentre outros) ser articulado para a permanência do diagnóstico de transexualidade, ver LUTA GLOBALIZADA PELO FIM DO DIAGNÓSTICO DE GÊNERO?, de Berenice Bento.

4. Legitimação precária, uma vez que a categoria transexual está condicionada a uma noção patológica e nosológica, destituindo, portanto, qualquer agenciamento e auto identificação por parte da pessoa trans*. Essa legitimação estará condicionada a um dispositivo normativo, na qual pessoas que apresentem características indesejadas ou ininteligíveis quanto ao gênero (ou outros vetores), vão ser facilmente identificadas como travestis e então marginalizadas.

5. Subalternidade esta que só pode ser entendida através de uma perspectiva intersecional, na qual vetores de classe, raça e (performances de) gênero, dentre outras, são consideradas. No que se refere à construção da subalternidade associada à travestilidade, recomendo a leitura dos autores supracitados.

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Carta Aberta Transfeminismo Fazendo Gênero

Aviso: Este documento foi feito após no encerramento do ST do Transfeminismo ocorrido no Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, em virtude de algumas questões que surgiram durante o referido Seminário. Solicitou-se que tal carta fosse lida no evento de encerramento do Seminário, o que por motivos desconhecidos não ocorreu.

Nós, participantes do pioneiro Simpósio Temático “Feminismo Transgênero e Transfeminismo”, realizado durante o Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 – Desafios Atuais dos Feminismos (FG10), como coletivo auto-organizado e orientado pela agenda transfeminista, discutimos e aprovamos a presente Carta Aberta “Transfeminismo Fazendo Gênero” à comunidade universitária, participantes do evento e, em especial, à organização do Seminário, composta pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas e pelo Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina e pelo Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina.

Reconhecemos a importância da inclusão da teoria e da ação transfeminista na pauta de discussões deste Seminário de impacto internacional, com repercussões estruturais e incontornáveis nos feminismos contemporâneos; nos debates sobre as condições das mulheres e no próprio entendimento de acadêmicas/os, ativistas e demais pensadoras/es sociais acerca do que configura o(s) gênero(s).

Nesse sentido, vimos por meio desta registrar à Coordenação Geral e à Comissão Científica do evento nosso reconhecimento pela abertura para o diálogo sobre o transfeminismo quando o Simpósio Temático foi aprovado – pertinência que foi referendada pela qualidade e quantidade de trabalhos submetidos e aprovados – e pela iniciativa de ter organizado a Mesa Redonda “Transfeminismos no Brasil”, ambos espaços de debate plenamente integrados ao espírito desta edição do FG10, os desafios atuais dos feminismos.

Alertamos, para fins de aprimoramento das futuras edições, que a atualidade do tema e a pouca produção no campo pode ter gerado o desconforto observado na Mesa “Transfeminismos no Brasil”, na qual, apesar da qualidade e importância das pesquisas das palestrantes que se apresentaram, apenas uma delas possuía escopo teórico na questão propriamente dita.

Sugerimos à organização do evento que todas/os as/os debatedoras/es em quaisquer mesas sobre transfeminismo sejam pesquisadoras/es e/ou pessoas com expertise na área.

Ressaltamos que urge uma valorização dos conhecimentos e modos de fazer das pessoas trans, construídos historicamente, por meio de enfrentamentos ao cotidiano de exclusão ao qual a população trans está submetida no Brasil, culminando em um genocídio trans invisibilizado nas estatísticas oficiais ou indevidamente identificado como parte de um processo de homofobia – esta é a nação na qual mais se matam pessoas trans no mundo, conforme dados de pesquisa coletados em 55 países pela Organização Não Governamental Transgender Europe.

Convidando para uma produção solidária de não silenciamento, discordamos de qualquer tentativa de menosprezar as vozes – cada vez mais audíveis – das pessoas trans que denunciam o sexismo, o cissexismo e, em certos casos, a transfobia de quem considera que as pessoas trans devam ser apenas ouvintes ou objetos de estudo, e não sujeitos produtores de saberes.

Em resposta a discursos mal intencionados ou desinformados, destacamos que não buscamos naturalização de identidades por meio do uso do termo “cisgênero”, em contraposição ao de “transgênero”, pretendemos tão-somente localizar as pessoas trans e cis em seus espaços identitários de gênero e forçar o reconhecimento de que há privilégios, constituídos socialmente, para pessoas cisgênero, em detrimento das pessoas transgênero.

Convidamos acadêmicas/os a se mobilizarem favoravelmente pela inclusão efetiva – e não apenas no discurso – da população transgênero nas universidades brasileiras, seja como estudantes, técnicas/os ou professoras/es, sem temores infundados de “invasão” de espaços, mas, isso sim, de diminuição de alguns dos inúmeros obstáculos que impedem ou prejudicam a inserção e a permanência de pessoas trans no Ensino Superior, em quaisquer posições.

Concluindo, exaltamos as/os estudiosas/os e grupos de pesquisa que, apesar da quase ausência de apoio financeiro e infraestrutural aos estudos e pesquisas sobre a realidade das pessoas trans e sua transformação, empreendem trabalhos intelectuais e de intervenção com ousadia e senso de justiça social.

 

Florianópolis, 20 de setembro de 2013.

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